Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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A feiura dos cabelos cortados me fez mal. Não sei que noção
prematura da sordidez dos nossos atos, ou exatamente, da vida, me veio nessa
experiência da minha primeira infância. O que não pude esquecer, e é minha
recordação mais antiga, foi, dentre as brincadeiras que faziam comigo para me
desemburrar da tristeza em que ficara por me terem cortado os cabelos, alguém,
não sei mais quem, uma voz masculina falando: “Você ficou um homem, assim!”.
Ora eu tinha três anos, fui tomado de pavor. Veio um medo lancinante de já ter
ficado homem naquele tamanhinho, um medo medonho, e recomecei a chorar.
Meus cabelos eram muito bonitos, dum negro quente, acastanhado nos
reflexos. Caíam pelos meus ombros em cachos gordos, com ritmos pesados de molas
de espiral. Me lembro de uma fotografia minha desse tempo, que depois destruí
por uma espécie de polidez envergonhada... Era já agora bem homem e aqueles
cabelos adorados na infância, me pareceram de repente como um engano grave,
destruí com rapidez o retrato. Os traços não era felizes, mas na moldura da
cabeleira havia sempre um olhar manso, um rosto sem marcas, franco, promessa de
alma sem maldade. De um ano depois do corte dos cabelos ou pouco mais, guardo
outro retrato tirado junto com Totó, meu mano. Ele, quatro anos mais velho que
eu, vem garboso e completamente infantil numa bonita roupa marinheira; eu, bem
menor, inda conservo uma camisolinha de veludo, muito besta, que minha mãe por
economia teimava utilizar até o fim.
Guardo esta fotografia porque se ela não me perdoa do que tenho
sido, ao menos me explica. Dou a impressão de uma monstruosidade insubordinada.
Meu irmão, com seus oito anos, é uma criança integral, olhar vazio de
experiência, rosto rechonchudo e lisinho, sem caráter fixo, sem malícia, a
própria imagem da infância. Eu, tão menor, tenho esse quê repulsivo do anão,
pareço velho. E o que é mais triste, com uns sulcos vividos descendo das abas
voluptuosas do nariz e da boca larga, entreaberta num risinho pérfido. Meus
olhos não olham, espreitam. Fornecem às claras, com uma facilidade teatral,
todos os indícios de uma segunda intenção.
Não sei por que não destruí em tempo também essa fotografia, agora
é tarde. Muitas vezes passei minutos compridos me contemplando, me buscando
dentro dela. E me achando. Comparava-a com meus atos e tudo eram confirmações.
Tenho certeza que essa fotografia me fez imenso mal, porque me deu muita
preguiça de reagir. Me proclamava demasiadamente em mim e afogou meus possíveis
anseios de perfeição. Voltemos ao caso que é melhor.
Toda a gente apreciava os meus cabelos cacheados, tão lentos! e eu
me envaidecia deles, mais que isso, os adorava por causa dos elogios. Foi por
uma tarde, me lembro bem, que meu pai suavemente murmurou uma daquelas suas
decisões irrevogáveis: “É preciso cortar os cabelos desse menino”. Olhei de um
lado, de outro, procurando um apoio, um jeito de fugir daquela ordem, muito
aflito. Preferi o instinto e fixei os olhos já lacrimosos em mamãe. Ela quis me
olhar compassiva, mas me lembro como se fosse hoje, não aguentou meus últimos
olhos de inocência perfeita, baixou os dela, oscilando entre a piedade por mim
e a razão possível que estivesse no mando do chefe. Hoje, imagino um egoísmo
grande da parte dela, não reagindo. As camisolinhas, ela as conservaria ainda
por mais de ano, até que se acabassem feitas trapos. Mas ninguém percebeu a
delicadeza da minha vaidade infantil. Deixassem que eu sentisse por mim, me
incutissem aos poucos a necessidade de cortar os cabelos, nada: uma decisão à
antiga, brutal, impiedosa, castigo sem culpa, primeiro convite às revoltas
íntimas: “é preciso cortar os cabelos desse menino”.
Tudo o mais são memórias confusas ritmadas por gritos horríveis,
cabeça sacudida com violência, mãos enérgicas me agarrando, palavras aflitas me
mandando com raiva entre piedades infecundas, dificuldades irritadas do
cabeleireiro que se esforçava em ter paciência e me dava terror. E o pranto,
afinal. E no último e prolongado fim, o chorinho doloridíssimo, convulsivo,
cheio de visagens próximas atrozes, um desespero desprendido de tudo, uma
fixação emperrada em não querer aceitar o consumado.
Me davam presentes. Era razão pra mais choro. Caçoavam de mim:
choro. Beijos de mamãe: choro. Recusava os espelhos em que me diziam bonito. Os
cadáveres de meus cabelos guardados naquela caixa de sapatos: choro. Choro e
recusa. Um não-conformismo navalhante que de um momento pra outro me virava
homem-feito, cheio de desilusões, de revoltas, fácil para todas as ruindades.
De-noite fiz questão de não rezar; e minha mãe, depois de várias tentativas,
olhou o lindo quadro de Nossa Senhora do Carmo, com mais de século na família
dela, gente empobrecida mas diz-que nobre, o olhou com olhos de imploração. Mas
eu estava com raiva da minha madrinha do Carmo.
E o meu passado se acabou pela primeira vez. Só ficavam como
demonstrações desagradáveis dele, as camisolinhas. Foi dentro delas, camisolas
de fazendinha barata (a gloriosa, de veludo, era só para as grandes ocasiões),
foi dentro ainda das camisolinhas que parti com os meus pra Santos, aproveitar
as férias do Totó sempre fraquinho, um junho.
Havia aliás outra razão mais tristonha pra essa vilegiatura
aparentemente festiva de férias. Me viera uma irmãzinha aumentar a família e
parece que o parto fora desastroso, não sei direito... Sei que mamãe ficara
quase dois meses de cama, paralítica, e só principiara mesmo a andar premida
pelas obrigações da casa e dos filhos. Mas andava mal, se encostando nos
móveis, se arrastando, com dores insuportáveis na voz, sentindo puxões nos
músculos das pernas e um desânimo vasto. Menos tratava da casa que se iludia,
consolada por cumprir a obrigação de tratar da casa. Diante da iminência de
algum desastre maior, papai fizera um esforço espantoso para o seu ser que só
imaginava a existência no trabalho sem recreio, todo assombrado com os
progressos financeiros que fazia e a subida de classe. Resolvera aceitar o
conselho do médico, se dera férias também, e levara mamãe aos receitados banhos
de mar.
Isso foi, convém lembrar, ali pelos últimos anos do século
passado, e a praia do José Menino era quase um deserto longe. Mesmo assim, a
casa que papai alugara não ficava na praia exatamente, mas numa das ruas que a
ela davam e onde uns operários trabalhavam diariamente no alinhamento de um dos
canais que carreavam o enxurro da cidade para o mar do golfo. Aí vivemos perto
de dois meses, casão imenso e vazio, lar improvisado cheio de deficiências, a
que o desmazelo doentio de mamãe ainda melancolizava mais, deixando pousar em
tudo um ar de mau trato e passagem.
É certo que os banhos logo lhe tinham feito bem, lhe voltaram as
cores, as forças, e os puxões dos nervos desapareciam com rapidez. Mas ficara a
lembrança do sofrimento muito grande e próximo, e ela sentia um prazer
perdoável de representar naquelas férias o papel largado da convalescente. A
papai então o passeio deixara bem menos pai, um ótimo camarada com muita fome e
condescendência. Eu é que não tomava banho de mar nem que me batessem! No
primeiro dia, na roupinha de baeta calçuda, como era a moda de então, fora com
todos até a primeira onda, mas não sei que pavor me tomou, dera tais gritos,
que nem mesmo o exemplo sempre invejado de meu mano mais velho me fizera mais
entrar naquelas águas vivas. Me parecia morte certa, vingativa, um castigo
inexplicável do mar, que o céu de névoa de inverno deixava cinzento e mau,
enfarruscado, cheio de ameaças impiedosas. E até hoje detesto banho de mar...
Odiei o mar, e tanto, que nem as caminhadas na praia me agradavam, apesar da
companhia agora deliciosa e faladeira de papai. Os outros que fossem passear,
eu ficava no terreno maltratado da casa, algumas árvores frias e um capim
amarelo, nas minhas conversas com as formigas e o meu sonho grande. Ainda
apreciava mais, ir até à borda barrenta do canal, onde os operários me
protegiam de qualquer perigo. Papai é que não gostava muito disso não, porque
tendo sido operário um dia e subido de classe por esforço pessoal e Deus sabe
lá que sacrifícios, considerava operário má companhia pra filho de negociante
mais ou menos. Porém mamãe intervinha com o “deixe ele!” de agora, fatigado, de
convalescente pela primeira vez na vida com vontades; e lá estava eu dia
inteiro, sujando a barra da camisolinha na terra amontoada do canal, com os
operários.
Vivia sujo. Muitas vezes agora até me faltavam, por baixo da
camisola, as calcinhas de encobrir as coisas feias, e eu sentia um esporte de
inverno em levantar a camisola na frente pra o friozinho entrar. Mamãe se
incomodava muito com isso, mas não havia calcinhas que chegassem, todas no
varal enxugando ao sol fraco. E foi por causa disso que entrei a detestar minha
madrinha, Nossa Senhora do Carmo. Não vê que minha mãe levara pra Santos aquele
quadro antigo de que falei e de que ela não se separava nunca, e quando me via
erguendo a camisola no gesto indiscreto, me ameaçava com a minha encantadora
madrinha: “Meu filho, não mostre isso, que feio! repare: sua madrinha está te
olhando na parede!”. Eu espiava pra minha madrinha do Carmo na parede, e descia
a camisolinha, mal convencido, com raiva da santa linda, tão apreciada noutros
tempos, sorrindo sempre e com aquelas mãos gordas e quentes. E desgostoso ia
brincar no barro do canal, botando a culpa de tudo no quadro secular. Odiei
minha madrinha santa.
Pois um dia, não sei o que me deu de repente, o desígnio explodiu,
nem pensei: largo correndo os meus brinquedos com o barro, barafusto porta a
dentro, vou primeiro espiar onde mamãe estava. Não estava. Fora passear na
praia matinal com papai e Totó. Só a cozinheira no fogão perdida, conversando
com a ama da Mariazinha nova. Então podia! Entrei na sala da frente, solene,
com uma coragem desenvolta, heroica, de quem perde tudo mas se quer liberto.
Olhei francamente, com ódio, a minha madrinha santa, eu bem sabia, era santa,
com os doces olhos se rindo pra mim. Levantei quanto pude a camisola e
empinando a barriguinha, mostrei tudo pra ela. “Tó! que eu dizia, olhe! olhe
bem! tó! olhe bastante mesmo!”. E empinava a barriguinha de quase me quebrar
pra trás.
Mas não sucedeu nada, eu bem imaginava que não sucedia nada...
Minha madrinha do quadro continuava olhando pra mim, se rindo, a boba, não
zangando comigo nada. E eu saí muito firme, quase sem remorso, delirando num
orgulho tão corajoso no peito, que me arrisquei a chegar sozinho até a esquina
da praia larga. Estavam uns pescadores ali mesmo na esquina, conversando, e me
meti no meio deles, sempre era uma proteção. E todos eles eram casados, tinham
filhos, não se amolavam proletariamente com os filhos, mas proletariamente
davam muita importância pra o filhinho de “seu dotô” meu pai, que nem era
doutor, graças a Deus.
Ora se deu que um dos pescadores pegara três lindas
estrelas-do-mar e brincava com elas na mão, expondo-as ao solzinho. E eu fiquei
num delírio de entusiasmo por causa das estrelas-do-mar. O pescador percebeu
logo meus olhos de desejo, e sem paciência pra ser bom devagar, com
brutalidade, foi logo me dando todas.
— Tome pra você, que ele disse, estrela-do-mar dá boa-sorte.
— O que é boa-sorte, hein?
Ele olhou rápido os companheiros porque não sabia explicar o que
era boa-sorte. Mas todos estavam esperando e ele arrancou meio bravo:
— Isto é... não vê que a gente fica cheio de tudo... dinheiro,
saúde...
Pigarreou fatigado. E depois de me olhar com um olho
indiferentemente carinhoso, acrescentou mais firme:
— Seque bem elas no sol que dá boa-sorte.
Isso nem agradeci, fui numa chispada luminosa pra casa esconder
minhas estrelas-do-mar. Pus as três ao sol, perto do muro lá no fundo do quintal
onde ninguém chegava, e entre feliz e inquieto fui brincabrincar no canal. Mas
quem disse brincar! me dava aquela vontade amante de ver minhas estrelas e
voltava numa chispada luminosa contemplar as minhas tesoureiras da boa-sorte. A
felicidade era tamanha e o desejo de contar minha glória, que até meu pai se
inquietou com o meu fastio no almoço. Mas eu não queria contar. Era um segredo
contra tudo e todos, a arma certa da minha vingança, eu havia de machucar
bastante Totó, e quando mamãe se incomodasse com o meu sujo, não sei não... mas
pelo menos ela havia de dar um trupicão de até dizer “ai!”, bem feito! As
minhas estrelas-do-mar estavam lá escondidas junto do muro me dando boa-sorte.
Comer? pra que comer? elas me davam tudo, me alimentavam, me davam licença pra
brincar no barro, e se Nossa Senhora, minha madrinha, quisesse se vingar
daquilo que eu fizera pra ela, as estrelas me salvavam, davam nela, machucavam
muito ela, isto é... muito eu não queria não, só um bocadinho, que machucassem
um pouco, sem estragar a cara tão linda da pintura, só pra minha madrinha saber
que agora eu tinha a boa-sorte, estava protegido e nem precisava mais dela, tó!
ai que saudades das minhas estrelas-do-mar!... Mas não podia desistir do almoço
pra ir espiá-las, Totó era capaz de me seguir e querer uma pra ele, isso nunca!
— Esse menino não come nada, Maria Luísa!
— Não sei o que é isso hoje, Carlos! Meu filho, coma ao menos a
goiabada...
Que goiabada nem mané goiabada! eu estava era pensando nas minhas
estrelas, doido por enxergá-las. E nem bem o almoço se acabou, até disfarcei
bem, e fui correndo ver as estrelas-do-mar.
Eram três, uma menorzinha e duas grandonas. Uma das grandonas
tinha as pernas um bocado tortas para o meu gosto, mas assim mesmo era muito
mais bonita que a pequetitinha, que trazia um defeito imenso numa das pernas,
faltava a ponta. Essa decerto não dava boa-sorte não, as outras é que davam: e
agora eu havia de ser sempre feliz, não havia de crescer, minha madrinha
gostosa se rindo sempre, mamãe completamente sarada me dando brinquedos, com
papai não se amolando por causa dos gastos. Não! a estrela pequenina dava
boa-sorte também, nunca que eu largasse de uma delas!
Foi então que aconteceu o caso desgraçado de que jamais me
esquecerei no seu menor detalhe. Cansei de olhar minhas estrelas e fui brincar
no canal. Era já na hora do meio-dia, hora do almoço, da janta, do
não-sei-o-quê dos operários, e eles estavam descansando jogados na sombra das
árvores. Apenas um porém, um portuga magruço e bárbaro, de enormes bigodões,
que não me entrava nem jamais dera importância pra mim, estava assentado num
monte de terra, afastado dos outros, ar de melancolia. Eu brincava por ali
tudo, mas a solidão do homem me preocupava, quase me doía, e eu rabeava umas
olhadelas para a banda dele, desejoso de consolar. Fui chegando com ar de quem
não quer e perguntei o que ele tinha. O operário primeiro deu de ombros,
português, bruto, bárbaro, longe de consentir na carícia da minha pergunta
infantil. Mas estava com uns olhos tão tristes, o bigode caía tanto, desolado,
que insisti no meu carinho e perguntei mais outra vez o que ele tinha. “Má
sorte” ele resmungou, mais a si mesmo que a mim.
Eu porém é que ficara aterrado. Minha Nossa Senhora! aquele homem
tinha má sorte! aquele homem enorme com tantos filhinhos pequenos e uma mulher
paralítica na cama!... E no entanto eu era feliz, feliz! e com três
estrelinhas-do-mar pra me darem boa-sorte... É certo: eu pusera imediatamente
as três estrelas no diminutivo, porque se houvesse de ceder alguma ao operário,
já de antemão eu desvalorizava as três, todas as três, na esperança desesperada
de dar apenas a menor. Não havia diferença mais, eram apenas três
“estrelinhas”-do-mar. Fiquei desesperado. Mas a lei se riscara iniludível no
meu espírito: e se eu desse boa-sorte ao operário na pessoa da minha menor
estrelinha pequetitinha?... Bem que podia dar a menor, era tão feia mesmo,
faltava uma das pontas, mas sempre era uma estrelinha-do-mar. Depois: operário
não era bem-vestido como papai, não carecia de uma boa-sorte muito grande não.
Meus passos tontos já me conduziam para o fundo do quintal fatalizadamente. Eu
sentia um sol de rachar completamente forte. Agora é que as estrelinhas ficavam
bem secas e davam uma boa-sorte danada, acabava duma vez a paralisia da mulher
do operário, os filhinhos teriam pão e Nossa Senhora do Carmo, minha madrinha,
nem se amolava de enxergar o pintinho deles. Lá estavam as três estrelinhas,
brilhando no ar do sol, cheias de uma boa-sorte imensa. E eu tinha que me desligar
de uma delas, da menorzinha estragada, tão linda! justamente a que eu gostava
mais, todas valiam igual, porque a mulher do operário não tomava banhos de mar?
mas sempre, ah meu Deus que sofrimento! eu bem não queria pensar mas pensava
sem querer, deslumbrado, mas a boa mesmo era a grandona perfeita, que havia de
dar mais boa-sorte pra aquele malvado de operário que viera, cachorro! dizer
que estava com má sorte. Agora eu tinha que dar pra ele a minha grande, a minha
sublime estrelona-do-mar!...
Eu chorava. As lágrimas corriam francas listrando a cara sujinha.
O sofrimento era tanto que os meus soluços nem me deixavam pensar bem. Fazia um
calor horrível, era preciso tirar as estrelas do sol, senão elas secavam
demais, se acabava a boa-sorte delas, o sol me batia no coco, eu estava tonto,
operário, má sorte, a estrela, a paralítica, a minha sublime estrelona-do-mar!
Isso eu agarrei na estrela com raiva, meu desejo era quebrar a perna dela
também pra que ficasse igualzinha à menor, mas as mãos adorantes desmentiam
meus desígnios, meus pés é que resolveram correr daquele jeito, rapidíssimos,
pra acabar de uma vez com o martírio. Fui correndo, fui morrendo, fui chorando,
carregando com fúria e carícia a minha maiorzona estrelinha-do-mar. Cheguei pro
operário, ele estava se erguendo, toquei nele com aspereza, puxei duro a roupa
dele:
— Tome! eu soluçava gritado, tome a minha... tome a
estrela-do-mar! dá... dá, sim, boa-sorte!...
O operário olhou surpreso sem compreender. Eu soluçava, era um
suplício medonho.
— Pegue depressa! faz favor! depressa! dá boa-sorte mesmo!
Aí que ele entendeu, pois não me aguentava mais! Me olhou, foi
pegando na estrela, sorriu por trás dos bigodões portugas, um sorriso
desacostumado, não falou nada felizmente que senão eu desatava a berrar. A mão
calosa quis se ajeitar em concha pra me acarinhar, certo! ele nem media a
extensão do meu sacrifício! e a mão calosa apenas roçou por meus cabelos
cortados.
Eu corri. Eu corri pra chorar à larga, chorar na cama, abafando os
soluços no travesseiro sozinho. Mas por dentro era impossível saber o que havia
em mim, era uma luz, uma Nossa Senhora, um gosto maltratado, cheio de
desilusões claríssimas, em que eu sofria arrependido, vendo inutilizar-se no
infinito dos sofrimentos humanos a minha estrela-do-mar.
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