Suze
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Oh! dolce,
della soglia del lupanare
mirar le vergini stelle!
Gabriele D'Anunzio — “La meretrice di Pirgo”.
Não posso dormir. Como há mais
de oito dias não recebi carta da Suze, e a minha absurda vaidade se recusa a
crer que ela me esqueça, ponho-me a pensar, com uma perversidade triste, que
tenho escrito loucuras a um cadáver.
Na última contava ela com uma
coragem simples, como o mais fútil incidente, que ia entrar para o hospital
para ser operada. Anunciava-me isto, entre um projeto de vestido gris-taupe,
que iria bem à sua tinta de viciosa pálida, e uma chuva de detalhes sobre a
gata, a amar com romance e com luxúria um gato magro do terceiro andar.
Se tivesse sido operada e
convalescesse, já decerto me teria mandado um telegrama.
É pois forçoso convencer-me
que a minha pobre Suze — “era uma vez”...
Repito alto para mim mesmo:
está morta, está morta a Suze! Logo que o disse alto, todo o meu temperamento
de ator o acreditou, e em todo o meu ser, essa autossugestão ressoou em dobres,
agudamente, por essa rapariga de vinte e três anos com quem vivi dois meses.
A morta (é certo, é positivo
que morreu) era alta e magra.
Aqui mesmo, no meu quarto,
onde certa noite ela tomou chá entre os meus livros, a vejo atirar o chapéu de
rendas caras, em que havia heráldicas tulipas, acender com um gesto fino um dos
Laferme, correr a mão na testa com o gesto da Duse nas catástrofes supremas, e
dar-me fumo e destino e sonho. Aqui mesmo.
Naquele espelho prolongou com
um traço de crayon os olhos vagos, ali palpou as molas do divã, e no toilette atou horas depois, im memoriam, as fitas de seda azul que
lhe prendiam a camisa nas espáduas...
(Mas assim, não consigo dizer
o que ela foi. Preciso acalmar a minha febre e começar pelo começo).
Vi-a a primeira vez este
verão, no teatro, e logo a destaquei.
Os seus cabelos de criança
escandinava, louro cendrado e seda palha em que havia reflexos quase brancos,
tufavam na testa sob o chapéu preto, descaíam à esquerda, subiam à direita
recortando a têmpora em ogiva; inverossímeis como raios de um sol de vício,
químicos, absurdos... Só depois me convenci que eram autênticos.
Os olhos eram claros, cinzento
de água em névoa; a máscara alongava-se num focinhito sonâmbulo; nariz
incorreto, quase grosseiro; boca grande, acolhedora, de comissuras em pontos de
interrogação; e o mento perdia-se na nuvem de tule de um laço, esparso na gola
impecável de um costume tailleur
azul.
Tinha muito da Sarah em nova:
a cabeça de uma madona quatrocento em
que vivesse a alma de Montmartre.
Acompanhava-a outra que mal
vi, fisgado pelo estranho do seu tipo. Toda a noite, ferozmente, a encarcerei
no meu binóculo e ela, exibindo atitudes de indiferença numa galeria intérmina,
nem sequer teve o ar de ver-me.
Aborrecia-se com complacência,
olhando sem fitar, cumprindo com resignação esse destino de, sobre uma plateia
do Porto, num barracão de Folies-Brégeiras, esfolhar a carícia exangue e
lambedora das suas mãos de raça.
No meu grupo faziam-se
hipóteses. Cocotte? Cançonetista?
Talvez seja essa que se estreia amanhã.
Todos a achavam imensamente
estranha e alguma coisa feia.
Quando à saída ela passou,
compondo um ar abstrato e um passo ondeante de serpente-fantasma, excitado e
burro, disse não sei que frase escória e ouvi numa voz de seda que range, esta
coisa justa: imbécile!
Deixei de ir ao teatro. Achei
a vida toda tão imbecil como eu.
Até que uma manhã Just irrompe
no meu quarto e preludia felicíssimo: “Foste um doido em não aparecer”. Contou
então: o empresário F. apresentara-o, e como eram duas e eu continuava
incógnito, apresentou por sua vez o conde C., que ao menos não se arranjava
mal. — “A tua, a do conde, chama-se Suzane. A outra, a minha, é Gaby d'Anjou, é
perfeita. Não sei se reparaste: um corpo grego. Há uns poucos de dias que isto
nem parece o Porto”.
E partiu num turbilhão de chance, dizendo apenas quase à porta,
que a Suzane era finíssima, e se tolerava o conde é porque não via melhor, e
porque enfim, o Amieiro o não vestia mal.
Como mesmo escrevendo, estou
morto por chegar ao quarto dela, direi já que almoçamos a sós dias depois, e
nem sei mesmo se comi, porque estendia as mãos em concha aos seus pés magros,
para os sentir crispar-se com luxúria ao ranger da seda em folha seca...
Foi rápido e simples. O meu
amigo apresentou-me: o conde é lorpa, eu sou fino, ela é fina e... voilà!
Aqui começa a feitiçaria, o
encantamento em que essa serpentina bruxa me colheu, polarizando o meu desejo
para o seu corpo elástico e felino, como se as suas mãos de pianista me corressem
na medula, e os seus olhos de névoa me perdessem em hipnose.
De corpo e espírito era
flexível como uma chama ao vento.
Horas e horas, com febre, com
riso, com desespero, vasculho na memória, recomponho o complexo encanto dessa
rapariga que sabia de cor toda a Comédia
Humana; tinha um vício pessoal, erudito, arqui-sutil; cinicamente ingênua,
ingenuamente cínica; amoral e heroica, e que caminhava para o seu leito de cocotte com o ar redolente de Desdemona
na canção do salgueiro...
Oh! A sua canção do salgueiro,
música e versos de Bruant, como eu a trauteio ainda exasperado:
Les ch' veux frisés,
Les seins blasés,
Les reins brisés,
Les pieds usés.
Pierreuses,
Trotteuses,
Ás marchent l'soir
Quand il fait noir
Sur le trottoir.
Os cabelos impossíveis, abusivos,
excessivos, caíam-lhe nos ombros; a robe
empire era ampla e branca, as mangas vibravam em asas de serafim
profissional... Era uma aparição de lenda rociada de água Lubinorvalho caro...
Quando depois mais de perto a
detalhei, achei-lhe um não sei quê de transido, de parado, espécie de kakemono,
espécie de bebe enorme, enigmático, aflitivo, como só um caricaturista-poeta
criaria, num instante de emoção e febre, de quimera e riso. Pobre Suze!
Era pálida, pálida, no seu
roupão de noite, sem as rosas do maquillage
que ela tão sutilmente esmaecia. Pobre Suze!
Nenhum pintor português, desde
o Grão Vasco, viu para além do real como tu viste, nem como tu transfigurou uma
máscara de gesso, patinada a lua, numa obra-prima irradiante.
Tu que eu agora vejo como um
mármore de desgraça, arrepiado, vestido à toa, sem maillot de seda, sobre uma mesa misérrima de morgue; tu que tens já talvez no ventre aberto o esverdear
levíssimo com que a Morte agora te maquilha; tu que depois de tanto te
venderes, cada vez eras mais tu e mais perfeita, — ninguém irá junto do teu
cadáver pôr-te o colar da Ordem do Desprezo que na vida te deu beleza e estilo.
Foste um gênio incompreendido,
Suze. É o único ponto de contato que tiveste com dezenas de idiotas que eu
admiro.
Mas não é isto o que me
aflige, pois sei bem que se da Morte me ouvisses e se da Morte me falasses,
mais uma vez me dirias a tua grande frase, a frase-medalhão, a frase-refrém,
que tão sinteticamente define a tua graça, o teu gênio, o teu vício, o teu desdém:
— Tu sais, ça, c'est un détail.
Para Suze, tudo na vida era um
detalhe.
Ela que se deu a saborear a
tantos homens, duvido bem que conhecesse um ensaísta, espírito de síntese, à
Carlyle, que enquanto eu nesta noite de insônia a recomponho, com uma saudade
sem esperança, friamente medite um grosso tomo, que deveria assim chamar-se: —
a Filosofia de Suze (livro póstumo).
E em subtítulo, dum chic transcendente: — ensaio sobre a supra-mulher. Dir-se-ia
no futuro: — isso é um detalhe, como
outrora se disse: — penso, logo existo,
como hoje se diz: — o homem é uma ponte para os sobre-humano.
Se Eça de Queiroz fosse ainda
vivo, eu que nunca o conheci, havia de apresentar-lhe a Suze, e juro, juro, que
a acharia bem mais sutil, bem mais complexa e humanamente fascinante, que o seu
extraordinário figurino — carlos Fradique, dândi e epistológrafo.
Fialho, mais feliz, pôde
falar-lhe; viu-lhe gestos que valiam máximas, e ouviu-lhe memórias e anedotas
bem mais significativas que parábolas. Mas por mais que insistentemente lho
pedisse, nunca escreveu sobre ela: recusou-se.
Não posso eu, como quem
empalha uma asa, amortalhar o gênio da Suze em frases sábias, articular-lhe em
sistema as formas típicas, erguer enfim essa arquitetura metafísica, que
ficaria na névoa das idades, como um farol para sempre...
Não, não posso. Sinto ainda
correr-me o corpo todo, em ondas lentas, o afago dos seus cabelos, dos seus
dedos, que eram vivos, enervantes como línguas...
E não é assim, a arder em
desejo póstumo, que eu posso lançá-la à posteridade... De resto, Suze, que era
para ti a posteridade? Um detalhe, um
detalhe apenas...
Mas quero afirmar que nessa
frase — que nem sequer para muitos que a beijaram, foi mais que uma ironia sem
estilo — se condensa o estoicismo, o galbo heroico, que fez desta parisiense
tão estranha na sua vida de cocotte
nobilíssima, uma neta espiritual de Marco Aurélio.
Foi nobre e foi cocotte. Não estranhem.
Viver, para uma mulher, na
sociedade de hoje, é quase sempre prostituir-se. Mesmo as que casam, e que casando
amavam os maridos, quantas vezes não sofrem sem desejo, um cio incontinente,
numa humilhação de prostitutas, até que toda a emoção se lhes estanque e o
hábito lhes embote o corpo e o espírito?...
Depois da primeira frase, em
que a sede de amor lhes doura a vida, quantas não reconhecem no convívio que o
seu ídolo moral é um canalha, e que o amoroso é só o macho sórdido, sem
delicadeza, sem ternura — contundente, ferocíssimo, legal...
As outras, são apenas fêmeas
broncas presas à canga do lar animalmente, ou semiloucas resignadas que um
catolicismo castrador perdeu, ou índoles lunares de amorosas espairecendo de
martírio e tédio. E consciente ou inconscientemente, todas vão afinal
prostituir-se. Só a moeda diferere:
nada mais.
Mas se viver, para uma mulher,
é quase sempre prostituir-se, não o é menos afinal para um homem.
Prostituir-se é deformar, ou
anular mesmo, o que em nós há de individual e caracterizante, pela necessidade
de captar alguém, patrão ou mestre, rico ou superior hierárquico, e até mesmo o
pobre, que nos dá a ilusão de sermos bons e a consideração hipócrita dos
outros.
Cada um de nós, ao entrar na
aula ou na oficina, no escritório ou na repartição, no salão ou na taberna, é
postiço, é convencional, é um outro; ao princípio confrangidamente, através de
mil torturas; depois inconscientemente: mecanizado, deformado, quinquilharia
andante e cérebro de lixos, contribuindo assim para esse ideal que nos empala,
e os moralistas chamam — solidariedade humana.
Era fácil mostrar como,
violentando o temperamento, esta prostituição se repercute até nos gestos, na
nossa maneira de andar e de vestir. E isto em todas as classes, porque ninguém
é suficientemente forte para se bastar a si mesmo; todos precisam da
consideração dos outros, da opinião pública, e vão vivendo sob a garra do
preconceito, que os desengonça e deforma, que os raquitiza e anula, como os
saltimbancos às crianças.
Quantos resistem íntegros ao
regime penitenciário que é a vida de hoje em sociedade? Alguns pelo isolamento;
— bem poucos dos que ficam.
Não riam portanto ao ouvir que
a Suze, a minha pobre Suze, foi nobre e foi cocotte.
Cocotte, sim. Como nós todos. Porque,
em suma, eu sou cocotte, tu és cocotte, ele é cocotte...
Que horas serão? Deve ser
quase madrugada.
Eu bem queria nestas palavras
de febre, silhuetar a Suze, ter um pouco de método, monografá-la. Mas não
posso, não posso.
Tenho aqui na minha mesa de
trabalho o seu retrato, e nem sei como tenho coragem para escrever, como posso
desviar os olhos da névoa abismal dos seus, que me transem de irremediável e me
enlouquecem de desejo. Desejo absurdo, que o impossível hiperestesia, e me
impregnou célula a célula.
Sinto no corpo todo a carícia
opiada dos seus dedos, a sua carne sortílega, embruxada; a sua pele afim da minha,
e que com ela dialogava em silêncio, nas horas de esgotamento, rememorando
sensações agudas, fulgurantes...
Vejo-a, vejo-a!
Passa a teoria das nossas
noites (em que os seus tiques profissionais me confrangiam) e ela era sempre
duma envolvência fluida, de uma estesia de atriz inconsciente, uma viciosa
triste, insaciada, e uma boa e uma pobre rapariga.
De começo podiam julgá-la
artificial, tão estilizada era a sua graça, tanto o seu requinte parecia
consciente e erudito, traindo-se em tudo: no andar elástico, no dandismo
sóbrio, e até no ruge-ruge da sua voz de alcova e confidência. Mas não: viam-na
mal. Ela era assim sem esforço, naturalmente: ela nascera uma obra de arte. E
todo o meu trabalho de esta noite me parece o de um doido que quisesse com poeira
reconstruir uma obra prima...
Muitas vezes já, aludi ao seu
cinismo. Mas entendam-me: cinismo, disse-o o forçado genial de Reading—é a
coragem de dizer as coisas como são e não como deviam ser. E a Suze era assim,
quando falava a alguém que a compreendia.
Esses porém, eram raros, muito
raros. Com uma intuição divinatória, balzaquiana, a Suze adivinhava às
primeiras palavras o seu caso, lisonjeava-lhe os instintos, e assim durante o
dia era, conforme o macho em catequese, canalha ou ducal, obscena ou protocolar.
Um deles, com quem viveu muito
tempo, não via na Suze um animal de vício em quintessência, e, estúpido, não
lhe sentia a graça esparrinhando gênio: era apenas sentimental e jogador.
Outra qualquer, para o
prender, faria comédias românticas, e decerto orientaria o seu comércio por
esse fundo fadista e namorisqueiro. A Suze não. Parecia-lhe demasiado reles,
insuportavelmente folhetim. E foi por o jogo que o laçou.
Pouco a pouco, por sugestões
dominadoras, foi-o convencendo de que ganhava sempre quando cedia passivamente
aos seus caprichos, quando lhe dava mais vestidos, mais dinheiro: e em pouco
tempo, ela era para esse jogador supersticioso, um ícone sagrado, tutelar,— nossa
Senhora da Sorte ao seu alcance...
Dominava-o por completo. Se o
traía, explicava-lhe com um ar vago e superior... que era para lhe dar chance; e todas as noites o desgraçado
vinha implorar da Suze, aninhada num divã, com um pequenino ar de sibila
délfica, um pouco de sorte por amor de Deus!...
Teve este espetáculo hiperdantesco:
os Poderes Constituídos — em cuecas!... Ela os viu, aos redentores da pátria:
viu como era piloso o sacro onde tem o fogo os oradores: foi caloteada por
economistas: sofreu contra a pele fina a camisola de flanela dos guerreiros.
Mas o que mais magoou o seu desprezo, foi a secura e a egolatria dos artistas.
para todos a sua arte era
perfeita, radiando ilusão, hipnotizando.
Mais flexível que as nuvens
são para o vento, o seu proteísmo teatral de prostituta mimava a cada um o seu
ideal...
Ah! Mas como ela ficava, a
minha Suze, a sua fadiga nervosa aniquilante, o seu imenso tédio neurastênico,
querendo desertar de si, da sua alma e da sua pele enojada, para sempre!...
E caída num estofo,
amarfanhada, era às vezes triste como uma coisa morta, como uma asa ferida
nalgum charco... Curtia assim consigo mesma horas de miséria moral e de
exaspero, sem uma queixa, sem uma lágrima, num orgulho de sozinha, donde só
ressumava o sofrimento, num gesto, num olhar, numa ironia.
Uma manhã em Lisboa,
acabávamos de almoçar no nosso quarto, com a janela aberta para a Avenida.
Ela fumava um Laferme,
devagar, no prazer sutil de soprar nuvens. E de repente, como a uma lembrança
súbita, disse-me isto baixinho, num tom que nunca esquecerei:
— Tu sabes: não gosto de falar
da minha vida. Nunca me queixei. Se agora te falo, é porque é para dizer bem...
Neste horror, tenho tido dias de uma volúpia imensa. Nem sei como te diga.
Começo por me sentir doente, exasperada, sem poder mais... Eles veem e eu penso
que vou morrer de nojo. Vem um, veem muitos... veem todos... Então, não sei
porquê, sinto um bem-estar, um gozo doido; acho prazer a que me humilhem;
parece-me que nasci para isto, que não há destino melhor... e gozo... gozo.
Depois, num riso seco:
— Sinto a volúpia de um cristão
às feras...
Parou. Eu recebi num beijo o
fumo do Laferme, e a Suze concluiu:
— Que importa isto! É um detalhe...
As outras, as vulgares,
bestializavam-se; passada a crise horrível de adaptação, vendiam beijos, como
um mercieiro vende arroz, um advogado eloquência, ou um diplomata uma colônia.
A Suze não; era escultada em lava: era alguém. Prostituta ou esposa, seria
sempre infeliz, seria sempre ela, seria sempre só. Pobre Suze!
Alma apolínea, foi esboteada
por fadistas que tem o nome em crônicas heroicas; sofreu-lhes, em noites de
orgia besta, o suor e o vomito; e com uma clarividência trágica, pressentiu
muita vez os haustos da manhã subindo, a olhar com a pele arrepiada a máscara
boçal de algum cliente.
Teve amantes ricos,
equipagens, e as suas melhores horas eram quando sozinha, abandonada a si
mesma, ouvia numa noite de inverno, como uma confidência, o crepitar da lenha
num fogão...
Teve paixões sensuais que a
torturaram, foi roubada impunemente muitas vezes, e uma noite em Moscou— caía
neve — velando uma companheira moribunda, sem nada para empenhar e sem
recursos, foi pôr no prego, joia grotesquíssima!— a própria dentadura da doente
que. Deus louvado, era montada em ouro... Assim puderam comer aquela noite.
É de estourar a rir — não lhes
parece?...
Sabia de cor toda a Comédia humana: viveu toda a comédia
humana. Pobre Suze!
Tu ao menos, não precisaste de
ser louca para seres santa: ergueste-te sempre corajosa e simples, sem um
abatimento ou uma queixa; e através de insultos e torpezas, conservaste
puríssima, apolínea, uma alma aberta ao sol como uma rosa!
Quantas vezes, calçada de
verniz, tiveste fome, e com teu passo elástico de espetro, nem um só Cireneu
topaste que ao estender-te a mão, te não pedisse gozo...
Tu, Suze, sabias bem toda a
piedade humana e como ela é antes... e depois. Se algum príncipe Nekhuladoff
tentasse redimir-te, como a tua palidez riria de alto ao pobre místico, a ele
que te falava de perdão e arrependimento, quando os teus olhos de névoa viam
claro, com um determinismo lúcido, fatal, que a tua vida era assim,
irremediável, e nem tinhas ódios nem sede de justiça, pois bem sabias que é
inútil tê-la para morrer à sede...
Conheceste príncipes, é certo,
mas nem um místico: só mais ou menos imbecis... Não te fossem falar do céu,— a
ti que tantos viras de platina na boca de gozadores com avarias.
Por isso não tiveste gritos,
não te estorceste: nem sei mesmo se choraste.
Posta em teatro, não farias
uivar as galerias nessa paródia de circo tão grotesca que é um quinto ato para
burgueses e povinho; eras para os raros
apenas como o matoidismo poético da minha terra. Na tua voz de folha seca,
dizias de todo o teu calvário apenas isto: é
um detalhe.
Mas para mim, Suze, o teu
corpo serpentino, que ora começa a decompor-se, o teu gênio a fagulhar num
incêndio murmuro de élitros e, sobretudo, o supremo encanto da tua dor heroica,
sem desfalências e sem queixas, para sempre ficarão no meu espírito, como
qualquer coisa de belo, de perfeito, pois que correste os bastidores da vida,
todo o egoísmo, toda a lama, toda a infâmia, em vítima serena — tão serena como
essas que na Grécia iam hirtas de dor entre colunas...
E amaste sempre o sol! E
amaste sempre o sol!
Deixa-me lembrar-te: é a
última carta que te escrevo. Desta vez serei sincero, porque estás morta,
porque a não lerás...
Espera!... As nossas tardes no
Rio Doce, em Leça... Os olhos dos mortos ainda refletem, ainda veem... Pudesse
eu ir arrancar-tos, trazê-los nas mãos com cautela, como dois pássaros mortos,
e dar-lhes ainda a beber, pobrezinhos!— sol, mar, areias ruivas, águas
correntes...
Pudesse eu beijar-te os olhos
mortos!
Chamava-se Sol o nosso barco.
Eu levava-o à vara, lentamente. Tiravas o chapéu, estendias-te à popa e nem
falavas. De quando em quando, ia colar à tua a minha boca: beijava-te as
pálpebras de manso.
Parava sob um chorão, à sombra
dos seus cabelos verdes. Cingia-te. Pousava a cabeça nos teus seios, que eram
lindos, tersos como de virgem. Todo o teu corpo desfalecia, se humilhava no teu
vestido de seda crua como o duma criança adormecida... E era então que eu
sentia, que eu palpava, que eu vivia a vida divina do silêncio.
Era mais vago o marulhar da
ramaria e fazia mais silêncio, como faz mais silêncio, à noite, o acorde das
ondas numa praia...
Sentia-se cair silêncio como
se sente cair névoa.
As nossas bocas colavam-se num
beijo úmido, calado, duma volúpia tristíssima, confrangida. Era como uma
despedida sem palavras, muito lenta, de dois suicidas...
Eu não te via os olhos, mas
adivinhava-os: estavam maiores, mais nevoentos, como janelas deitando para o silêncio
que se cavava em torno, fazendo leito ao nosso pensamento pelo espaço...
E confusamente sentíamos que o
tempo passava, passava sempre entre os nossos corpos enlaçados....
Por fim — era à boca da noite —
voltávamos.
Devagarzinho, dizias tu,
devagarzinho...
Eu ia levando o Sol na água
mortuária, e à nossa passagem, partiam sempre, iam partindo, pássaros mal
adormecidos nos salgueirais das margens, refletiam-se no rio em fugas de asas,
e era tudo mais triste como se esse voo fosse o adeus de tudo...
Quantas vezes te olhei com os
olhos rasos! Disfarçava, não queria nunca que os visses. E de repente,
apertava-te os braços, sacudia-te para me aturdir, para espancar a emoção que
me afogava numa maré de lágrimas represas.
Queria gritar, queria
chamar-te meu amor e... odiava-te. Queria beijar-te as mãos, vestir-te de
meiguice, e dizer-te a ânsia, o sonho doido de viver contigo sem palavras — como
as estátuas dos túmulos nas criptas...
Queria bater-te, cuspir-te,
demolir-te, como faz um tufão a uma árvore sozinha, e a puxar-te os cabelos de
criança, ir gritando, gritando sempre: prostituta... prostituta...
Hoje tenho remorsos. Mas tu
compreendes, tu bem sabes: era quase loucura.
Não podia perdoar à tua graça
ter-se deixado poluir, não podia perdoar ao teu gênio a tua derrota, não podia
perdoar-te, Suze, que fosses vítima.
Ah! ter piedade, ter
piedade... Mas isso é pouco, muito pouco: é um sentimento consolador só para
eunucos. E eu queria amar-te ao sol, Suze, olhando as árvores irmãmente, todo o
nosso desejo a escorrer luz...
A noite vinha. Seguíamos
enlaçados, e eu cansava-me no esforço imenso de te não magoar... Tu bem sabias,
tu bem sabias... Segundo a segundo, o meu martírio pesava o tempo como se uns
ponteiros de relógio me ferissem os nervos... Tu bem sabias. Tanto sabias, que
por fim me beijavas na testa, quase maternal, e a tua voz de folha seca rangia
este refrém de outono: “Isso passa. E um instante, é um detalhe.
Minha pobre Suze, como tu eras
justa, como tu adivinhavas, bruxa de vinte anos, para além da hora que passa, o
nada que virá.
A tua desgraça era suprema,
porque tu eras aquela que não se ilude
nunca.
Ainda assim, penso comigo:
quem sabe! quem sabe! Se ela me visse como eu sou, se eu não fosse com ela
sempre ator, se eu não fosse o ser falso, o clown céptico mascarrando com riso
o sentimento; se eu não me amordaçasse a cada instante, e tivesse podido ser eu
mesmo... Se visses, Suze, a criatura que eu escondo; se soubesses que afinal eu
sou bem simples e como eu amo a vida toda de mãos postas...
Se em vez de analisar, eu me
entregasse; se eu esquecesse os livros e os outros e te falasse tão
naturalmente como o meu sangue fala nas artérias... Quem sabe!... Talvez, Suze,
se eu fosse o que não viste, o que te fala agora... Porque eu lembro-me, eu
lembro-me. Duas horas houve que nós vivemos um no outro, fora do espaço, fora
do tempo... Tu bem sabes, tu lembras-te.
Era madrugada. Estávamos
deitados.
Todo o meu ser vivia de ti,
morria em ti. O nosso desejo ardera, estava morto. Que fadiga a nossa, que
fadiga!...
A rua despertava, ouviam-se
pregões, o sol luzia nas frinchas: eu tinha a cabeça contra o teu peito,
perdidamente, como contra a esperança, como contra o futuro...
Embebia-me em ti, aspirava o
teu corpo, a tua carne, a sua tristeza imensa, a sua saudade de tudo o que não
teve, de tudo o que não foi... e juro — que em nenhum jardim, em nenhuma
aurora, uma flor com orvalho me ungiu assim de sonho, me fez assim vibrar no
impossível dum amor perfeito.
Levantamo-nos, saímos, e logo
a rua, os outros, a vida dos outros, se apossou de mim, me perverteu, me
obrigou a mentir, a torcer-me... e eu ri, eu ri imbecilmente, de nós, da nossa
vida, e dessas horas em que auscultei contra o teu peito — o impossível de um
sonho sempre erguido!...
Pois se esta noite mesmo, ao
começar a escrever, ao pensar em ti — na tua morte, Suze!— eu fui palhaço, eu
quebrei em esgares a emoção, e mimei um ar gelado, irônico, impossível, quando
queria chorar perdidamente, quando queria beijar os pés ao teu cadáver... É que
tinha medo, um medo horrível de que os outros me vissem, porque para eles é uma
torpeza amar-te assim...
Eu podia dormir contigo,
dar-te dinheiro... só não podia amar-te. Para todos os crimes há uma
indulgência feita de cumplicidade, menos para um crime assim: não tem remissão:
é imoral e é grotesco.
É preciso que a dor me abale
todo, me fite bem de frente, e me hipnotize o seu olhar de chama, para eu poder
dizer como te amava, como te amo.
Perdoa, perdoa. Aqui me tens
aos pés do teu cadáver.
Toda a vida morreu para mim: a
seiva gelou nas veias das árvores; o mar que eu amei tanto, não me importa.
A vida agora é este horror:
uma sala de morgue, mesas ovais de mármore, cadáveres sem nome, já esquecidos,
e entre eles, Suze, o teu cadáver.
Como irás tu para cova? Quem
te vestiu?... Foram mãos sem carinho, mercenárias.
Vejo-te, digo-te adeus,
Suze... O teu cadáver transe, empedra de martírio. Pareces mais alta, mais
comprida. Não te souberam pentear; deixaram-te o cabelo em desalinho e, não sei
porquê, está mais claro, de uma seda mais pura, mais de infância...
Tens um vestido preto (com que
me foste esperar: há quanto tempo?...) sapatos de verniz, pontiagudos...
fivelas de ouro... meias de seda nos teus artelhos finos de cegonha.
Cruzaram-te decerto as mãos no
peito, mas escorregaram, descaíram, e amarelas, outonais, dizem ainda: “é um detalhe apenas, um detalhe...”
E o que mais me entristece é
que tens frio: as mãos da podridão vão-te gelando. Oh! As tuas noites na cova,
Suze!...
Abriram-te o ventre no
hospital. Suturaram-to apressa, sem cuidado. Se te tirassem os nervos... Bem
sei que é doido, mas que querem?... Ficava assim mais sossegado.
É amanhã que te enterram?...
Hoje mesmo? Deve ser quase dia, minha Suze.
Deixa beijar-te as mãos
geladas, de mansinho, enquanto falo... Assim. A minha febre aquece-tas:
verás...
Não te descerro as pálpebras.
Para quê? Está ainda escuro.
Tens saudades do sol, minha
pobrezinha?... A última vez, quando almoçamos na praia, ao pé de Leça,
olhaste-o tanto que logo pensei que ias morrer... Todo o teu corpo diz adeus ao
sol. A mais ninguém.
Família?... Nunca quis saber
de ti: contaste-mo sem queixa, simplesmente. Disseste como sempre: é um detalhe...
Que fica de ti, Suze? A
memória da pele é passageira, e é muito incerto que a tua graça vá dourar uma
saudade.
Ninguém irá ao teu enterro, e
ainda bem!
Por tua causa, ninguém se
irritará jantando à pressa; ninguém irá, de sobrecasaca e mau humor, fazer-te o
necrológio ao cemitério.
Não terás latim grunhido por
um clérigo, nem essa coisa triste e tão grotesca — um círio laico em ar solene,
com fungagá e arenga humanitária.
Vais para cova só, como
viveste; e depois de te teres dado a tantos homens, vai parecer-te natural que
te amem vermes... Até na morte és discreta, minha Suze, pois nem sequer virás
numa gazeta.
Foste perfeita: és perfeita.
Amaste a beleza sempre com loucura: nas nuvens, nos maquereaux, nas pupilas das joias, nos crepúsculos...
Ensinaste-me o desprezo sem
palavras, a dor sem confidência, feita orgulho. Deixa beijar-te ainda as mãos
geladas.
Quem mas dera guardar para
sempre, em mármore; suspendê-las como um ex-voto
à cabeceira, as tuas pobres mãos tão humilhadas, esfolhando eternamente sobre a
vida, o perdão dos que a entendem: — o desprezo.
... Ouço horas. Uma, duas...
oito. Oito horas! Se eu pudesse dormir!
E agora mesmo, ao enfiar-me na
cama extenuado, eu ouço a voz da Suze, voz de seda que range, a segredar-me:
— Mon pauvre ami! Quoi?! Qu'est-ce qui t'attriste? Ma mort?... Mais, tu
sais, ça c'est un detail.
Sim, um detalhe... como tudo,
terminando no mármore frio de uma morgue, ou a uma esquina de rua banalmente.
Como tudo.
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