Suje-se gordo!
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
Uma noite, há muitos anos, passeava eu com um amigo no terraço do Teatro de São Pedro de Alcântara. Era entre o segundo e o terceiro ato da peça A Sentença ou o Tribunal do Júri. Só me ficou o título, e foi justamente o título que nos levou a falar da instituição e de um fato que nunca mais me esqueceu.
— Fui sempre contrário ao júri, — disse-me
aquele amigo, — não pela instituição em si, que é liberal, mas porque me
repugna condenar alguém, e por aquele preceito do Evangelho; “Não queirais
julgar para que não sejais julgados”. Não obstante, servi duas vezes. O
tribunal era então no antigo Aljube, fim da Rua dos Ourives, princípio da Ladeira
da Conceição.
Tal era o meu escrúpulo que, salvo dois,
absolvi todos os réus. Com efeito, os crimes não me pareceram provados; um ou
dois processos eram mal feitos. O primeiro réu que condenei era um moço limpo,
acusado de haver furtado certa quantia, não grande, antes pequena, com
falsificação de um papel. Não negou o fato, nem podia fazê-lo, contestou que
lhe coubesse a iniciativa ou inspiração do crime. Alguém, que não citava, foi
que lhe lembrou esse modo de acudir a uma necessidade urgente; mas Deus, que
via os corações, daria ao criminoso verdadeiro o merecido castigo. Disse isso
sem ênfase, triste, a palavra surda, os olhos mortos, com tal palidez que metia
pena; o promotor público achou nessa mesma cor do gesto a confissão do crime.
Ao contrário, o defensor mostrou que o abatimento e a palidez significavam a
lástima da inocência caluniada.
Poucas vezes terei assistido a debate tão
brilhante. O discurso do promotor foi curto, mas forte, indignado, com um tom
que parecia ódio, e não era. A defesa, além do talento do advogado, tinha a
circunstância de ser a estreia dele na tribuna. Parentes, colegas e amigos
esperavam o primeiro discurso do rapaz, e não perderam na espera. O discurso
foi admirável, e teria salvo o réu, se ele pudesse ser salvo, mas o crime
metia-se pelos olhos dentro. O advogado morreu dois anos depois, em 1865. Quem
sabe o que se perdeu nele! Eu, acredite, quando vejo morrer um moço de talento,
sinto mais que quando morre um velho... Mas vamos ao que ia contando. Houve
réplica do promotor e tréplica do defensor. O presidente do tribunal resumiu os
debates, e, lidos os quesitos, foram entregues ao presidente do Conselho, que
era eu.
Não digo o que se passou na sala secreta;
além de ser secreto o que lá se passou, não interessa ao caso particular, que
era melhor ficasse também calado, confesso. Contarei depressa; o terceiro ato
não tarda.
Um dos jurados do Conselho, cheio de corpo e
ruivo, parecia mais que ninguém convencido do delito e do delinquente. O
processo foi examinado, os quesitos lidos, e as respostas dadas (onze votos
contra um); só o jurado ruivo estava inquieto. No fim, como os votos
assegurassem a condenação, ficou satisfeito, disse que seria um ato de
fraqueza, ou coisa pior, a absolvição que lhe déssemos. Um dos jurados, certamente
o que votara pela negativa, — proferiu algumas palavras de defesa do moço. O
ruivo, — chamava-se Lopes, — replicou com aborrecimento:
— Como, senhor? Mas o crime do réu está mais
que provado.
— Deixemos de debate, disse eu, e todos
concordaram comigo.
— Não estou debatendo, estou defendendo o meu
voto, continuou Lopes. O crime está mais que provado. O sujeito nega, porque
todo o réu nega, mas o certo é que ele cometeu a falsidade, e que falsidade!
Tudo por uma miséria, duzentos mil-réis! Suje-se gordo! Quer sujar-se? Suje-se
gordo!
“Suje-se gordo!” Confesso-lhe que fiquei de
boca aberta, não que entendesse a frase, ao contrário, nem a entendi nem a
achei limpa, e foi por isso mesmo que fiquei de boca aberta. Afinal caminhei e
bati à porta, abriram-nos, fui à mesa do juiz, dei as respostas do Conselho e o
réu saiu condenado. O advogado apelou; se a sentença foi confirmada ou a
apelação aceita, não sei; perdi o negócio de vista.
Quando saí do tribunal, vim pensando na frase
do Lopes, e pareceu-me entendê-la. “Suje-se gordo!” era como se dissesse que o
condenado era mais que ladrão, era um ladrão reles, um ladrão de nada. Achei
esta explicação na esquina da Rua de São Pedro; vinha ainda pela dos Ourives.
Cheguei a desandar um pouco, a ver se descobria o Lopes para lhe apertar a mão;
nem sombra de Lopes. No dia seguinte, lendo nos jornais os nossos nomes, dei
com o nome todo dele; não valia a pena procurá-lo, nem me ficou de cor. Assim
são as páginas da vida, como dizia meu filho quando fazia versos, e
acrescentava que as páginas vão passando umas sobre outras, esquecidas apenas
lidas. Rimava assim, mas não me lembra a forma dos versos.
Em prosa disse-me ele, muito tempo depois,
que eu não devia faltar ao júri, para o qual acabava de ser designado. Respondi-lhe
que não compareceria, e citei o preceito evangélico; ele teimou, dizendo ser um
dever de cidadão, um serviço gratuito, que ninguém que se prezasse podia negar
ao seu país. Fui e julguei três processos.
Um destes era de um empregado do Banco do
Trabalho Honrado, o caixa, acusado de um desvio de dinheiro. Ouvira falar no
caso, que os jornais deram sem grande minúcia, e aliás eu lia pouco as notícias
de crimes. O acusado apareceu e foi sentar-se no famoso banco dos réus. Era um
homem magro e ruivo. Fitei-o bem, e estremeci; pareceu-me ver o meu colega
daquele julgamento de anos antes. Não poderia reconhecê-lo logo por estar agora
magro, mas era a mesma cor dos cabelos e das barbas, o mesmo ar, e por fim a
mesma voz e o mesmo nome: Lopes.
— Como se chama? perguntou o presidente.
— Antônio do Carmo Ribeiro Lopes.
Já me não lembravam os três primeiros nomes,
o quarto era o mesmo, e os outros sinais vieram confirmando as reminiscências;
não me tardou reconhecer a pessoa exata daquele dia remoto. Digo-lhe aqui com
verdade que todas essas circunstâncias me impediram de acompanhar atentamente o
interrogatório, e muitas coisas me escaparam. Quando me dispus a ouvi-lo bem,
estava quase no fim. Lopes negava com firmeza tudo o que lhe era perguntado, ou
respondia de maneira que trazia uma complicação ao processo. Circulava os olhos sem medo nem ansiedade; não sei até se com uma pontinha de riso nos cantos da
boca.
Seguiu-se a leitura do processo. Era uma
falsidade e um desvio de cento e dez contos de réis. Não lhe digo como se
descobriu o crime nem o criminoso, por já ser tarde; a orquestra está afinando
os instrumentos. O que lhe digo com certeza é que a leitura dos autos me
impressionou muito, o inquérito, os documentos, a tentativa de fuga do caixa e
uma série de circunstâncias agravantes; por fim o depoimento das testemunhas.
Eu ouvia ler ou falar e olhava para o Lopes. Também ele ouvia, mas com o rosto
alto, mirando o escrivão, o presidente, o teto e as pessoas que o iam julgar;
entre elas eu. Quando olhou para mim não me reconheceu; fitou-me algum tempo e
sorriu, como fazia aos outros.
Todos esses gestos do homem serviram à
acusação e à defesa, tal como serviram, tempos antes, os gestos contrários do
outro acusado. O promotor achou neles a revelação clara do cinismo, o advogado
mostrou que só a inocência e a certeza da absolvição podiam trazer aquela paz
de espírito.
Enquanto os dois oradores falavam, vim
pensando na fatalidade de estar ali, no mesmo banco do outro, este homem que
votara a condenação dele, e naturalmente repeti comigo o texto evangélico: “Não
queirais julgar, para que não sejais julgados”. Confesso-lhe que mais de uma
vez me senti frio. Não é que eu mesmo viesse a cometer algum desvio de
dinheiro, mas podia, em ocasião de raiva, matar alguém ou ser caluniado de
desfalque. Aquele que julgava outrora, era agora julgado também.
Ao pé da palavra bíblica lembrou-me de
repente a do mesmo Lopes: “Suje-se gordo!” Não imagina o sacudimento que me deu
esta lembrança. Evoquei tudo o que contei agora, o discursinho que lhe ouvi na
sala secreta, até àquelas palavras: “Suje-se gordo!” Vi que não era um ladrão
reles, um ladrão de nada, sim de grande valor. O verbo é que definia duramente
a ação. “Suje-se gordo!” Queria dizer que o homem não se devia levar a um ato
daquela espécie sem a grossura da soma. A ninguém cabia sujar-se por quatro
patacas. Quer sujar-se? Suje-se gordo!
Ideias e palavras iam assim rolando na minha
cabeça, sem eu dar pelo resumo dos debates que o presidente do tribunal fazia.
Tinha acabado, leu os quesitos e recolhemo-nos à sala secreta. Posso dizer-lhe
aqui em particular que votei afirmativamente, tão certo me pareceu o desvio dos
cento e dez contos. Havia, entre outros documentos, uma carta de Lopes que
fazia evidente o crime. Mas parece que nem todos leram com os mesmos olhos que
eu. Votaram comigo dois jurados. Nove negaram a criminalidade do Lopes, a
sentença de absolvição foi lavrada e lida, e o acusado saiu para a rua. A
diferença da votação era tamanha que cheguei a duvidar comigo se teria
acertado. Podia ser que não. Agora mesmo sinto uns repelões de consciência.
Felizmente, se o Lopes não cometeu deveras o crime, não recebeu a pena do meu
voto, e esta consideração acaba por me consolar do erro, mas os repelões
voltam. O melhor de tudo é não julgar ninguém para não vir a ser julgado.
Suje-se gordo! suje-se magro! suje-se como lhe parecer! o mais seguro é não
julgar ninguém... Acabou a música, vamos para as nossas cadeiras.
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