Sua Excelência
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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O ministro saiu do baile da
Embaixada, embarcando logo no carro. Desde duas horas estivera a sonhar com
aquele momento. Ansiava estar só, só com o seu pensamento, pesando bem as
palavras que proferira, relembrando as atitudes e os pasmos olhares dos
circunstantes. Por isso entrara no coupé
depressa, sôfrego, sem mesmo reparar se, de fato, era o seu. Vinha cegamente,
tangido por sentimentos complexos: orgulho, força, valor, vaidade.
Todo ele era um poço de certeza.
Estava certo do seu valor intrínseco; estava certo das suas qualidades
extraordinárias e excepcionais. A respeitosa atitude de todos e a deferência
universal que o cercava eram nada mais, nada menos, que o sinal da convicção
geral de ser ele o resumo do país, a encarnação dos seus anseios. Nele viram os
doridos queixumes dos humildes e os espetaculosos desejos dos ricos. As
obscuras determinações das coisas, acertadamente, haviam-no erguido até ali, e
mais alto levá-lo-iam, visto que só ele, ele só e unicamente, seria capaz de
fazer o país chegar aos destinos que os antecedentes dele impunham...
E ele sorriu, quando essa frase
lhe passou pelos olhos, totalmente escrita em caracteres de imprensa, em um
livro ou em um jornal qualquer. Lembrou-se do seu discurso de ainda agora:
“Na vida das sociedades como na
dos indivíduos...”
Que maravilha! Tinha algo de
filosófico, de transcendente. E o sucesso daquele trecho? Recordou-se dele por
inteiro:
“Aristóteles, Bacon, Descartes,
Espinosa e Spencer, como Sólon, Justiniano, Portalis e Ihering, todos os
filósofos, todos os juristas afirmam que as leis devem se basear nos
costumes...”
O olhar, muito brilhante, cheio
de admiração — o olhar do leader da
oposição — foi o mais seguro penhor do efeito da frase...
E quando terminou! Oh!
“Senhor, o nosso tempo é de
grandes reformas; estejamos com ele; reformemos!”
A cerimônia mal conteve, nos
circunstantes, o entusiasmo com que esse final foi recebido.
O auditório delirou. As palmas
estrugiram; e, dentro do grande salão iluminado, pareceu-lhe que recebia as
palmas da Terra toda.
O carro continuava a voar. As
luzes da rua extensa apareciam como um só traço de fogo; depois, sumiram-se.
O veículo agora corria
vertiginosamente dentro de uma névoa fosforescente. Era em vão que seus
augustos olhos se abriam desmedidamente; não havia contornos, formas, onde eles
pousassem.
Consultou o relógio. Estava
parado? Não; mas marcava a mesma hora e o mesmo minuto da saída da festa.
— Cocheiro, onde vamos?
Quis arriar as vidraças. Não
pôde; queimavam.
Redobrou os esforços, conseguindo
arriar as da frente. Gritou ao cocheiro:
— Onde vamos? Miserável, onde me
levas?
Apesar de ter o carro algumas
vidraças arriadas, no seu interior fazia um calor de forja. Quando lhe veio
esta imagem, apalpou bem, no peito, as grã-cruzes magníficas. Graças a Deus,
ainda não se haviam derretido. O leão da Birmânia, o dragão da China, o lingão
da Índia estavam ali, entre todas as outras, intactas.
— Cocheiro, onde me levas?
Não era o mesmo cocheiro, não era
o seu. Aquele homem de nariz adunco, queixo longo com uma barbicha, não era o
seu fiel Manoel.
— Canalha para, para, senão caro
me pagarás!
O carro voava e o ministro
continuava a vociferar:
— Miserável! Traidor! Para! Para!
Em uma dessas vezes voltou-se o
cocheiro; mas a escuridão que se ia, aos poucos, fazendo quase perfeita, só lhe
permitiu ver os olhos do guia da carruagem, a brilhar de um brilho brejeiro,
metálico e cortante. Pareceu-lhe que estava a rir-se.
O calor aumentava. Pelos cantos o
carro chispava. Não podendo suportar o calor, despiu-se. Tirou a agaloada
casaca, depois o espadim, o colete, as calças...
Sufocado, estonteado, parecia-lhe
que continuava com vida, mas que suas pernas e seus braços, seu tronco e sua
cabeça dançavam, separados.
Desmaiou; e, ao recuperar os
sentidos, viu-se vestido com uma reles libré e uma grotesca cartola, cochilando
à porta do palácio em que estivera ainda há pouco e de onde saíra
triunfalmente, não havia minutos.
Nas proximidades um coupé estacionava.
Quis verificar bem as coisas
circundantes; mas não houve tempo. Pelas escadas de mármore, gravemente,
solenemente, um homem (pareceu-lhe isso) descia os degraus envolvido no fardão
que despira, tendo no peito as mesmas magníficas grã-cruzes.
Logo que o personagem pisou na
soleira, de um só ímpeto aproximou-se e, abjetamente, como se até ali não
tivesse feito outra coisa, indagou:
— Vossa Excelência quer o carro?
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