Solfieri
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)0
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...Yet one kiss on
your pale clay
And those lips once so warm — my heart! My heart.
And those lips once so warm — my heart! My heart.
Byron, Caim.
Sabeis-lo. Roma é a cidade do
fanatismo e da perdição: na alcova do sacerdote dorme a gosto a amásia; no
leito da vendida se pendura o crucifixo lívido.
É um requintar de gozo
blasfemo que mescla o sacrilégio à convulsão do amor, o beijo lascivo à
embriaguez da crença.
Era em Roma. Uma noite, a lua
ia bela como vai ela no verão por aquele céu morno. O fresco das águas se
exalava como um suspiro do leito do Tibre. A noite ia bela. Eu passeava a sós
pela ponte. As luzes se apagaram uma por uma nos palácios, as ruas se faziam
ermas e a lua de sonolenta, se escondia no leito das nuvens.
Uma sombra de mulher apareceu
numa janela solitária e escura. Era uma forma branca. — A face daquela mulher
era como de uma estátua pálida à lua. Pelas faces dela, como gotas de uma taça
caída, rolavam fios de lágrimas.
Eu me encostei à aresta de um
palácio. A visão desapareceu no escuro da janela... E daí um canto se
derramava. Não era só uma voz melodiosa: havia naquele cantar um como choro de
frenesi, um como gemer de insânia: aquela voz era sombria como a do vento à
noite nos cemitérios cantando a nênia das flores murchas da morte.
Depois, o canto calou-se. A
mulher apareceu na porta. Parecia espreitar se havia alguém nas ruas. Não viu
ninguém: saiu. Eu segui-a.
A noite ia cada vez mais alta:
a lua sumira-se no céu e a chuva caía às gotas pesadas: apenas eu sentia nas
faces caírem grossas lágrimas de água, como sobre um túmulo prantos do órfão.
Andamos longo tempo pelo
labirinto das ruas: enfim, ela parou; estávamos num campo.
Aqui, ali, além, eram cruzes
que se erguiam entre o ervaçal. Ela ajoelhou-se. Parecia soluçar: em torno dela
passavam as aves da noite.
Não sei se adormeci: sei,
apenas, que quando amanheceu achei-me a sós no cemitério. Contudo, a criatura
pálida não fora uma ilusão: as urzes, as cicutas do campo santo estavam
quebradas junto a uma cruz.
O frio da noite, aquele sono
dormido à chuva, causaram-me uma febre. No meu delírio passava e repassava
aquela brancura de mulher, gemiam aqueles soluços e todo aquele devaneio se
perdia num canto suavíssimo...
Um ano depois voltei a Roma.
Nos beijos das mulheres, nada me saciava; no sono da saciedade me vinha aquela
visão...
Uma noite e após uma orgia, eu
deixara dormida no leito a bela condessa Bárbara. Dei um último olhar àquela
forma nua e adormecida com a febre nas faces e a lascívia nos lábios úmidos,
gemendo ainda nos sonhos como na agonia voluptuosa do amor. Saí. Não sei se a
noite era límpida ou negra; sei apenas que a cabeça me escaldava de embriaguez.
As taças tinham ficado vazias na mesa: aos lábios daquela criatura eu bebera
até à última gota do vinho do deleite...
Quando dei acordo de mim,
estava num lugar escuro: as estrelas passavam seus raios brancos entre as
vidraças de um templo. As luzes de quatro círios batiam num caixão entreaberto.
Abri-o. Era o de uma moça. Aquele branco da mortalha, as grinaldas da morte na
fronte dela, naquela tez lívida e embaçada, o vidrento dos olhos
mal-apertados... Era uma defunta! E aqueles traços todos me lembraram uma ideia
perdida... Era o anjo do cemitério! Cerrei as portas da igreja que, ignoro
porque, eu achara abertas.
Tomei o cadáver nos meus
braços para fora do caixão. Pesava como chumbo...
Sabeis a história de Maria
Stuart degolada e do algoz, do cadáver
sem cabeça e do homem sem coração, como a conta Branthôme? — Foi uma ideia
singular, a que eu tive.
Tomei-a no colo. Preguei-lhe
mil beijos nos lábios. Ela era bela assim. Rasguei-lhe o sudário, despi-lhe o
véu e a capela, como o noivo os despe à noiva. Era mesmo uma estátua: tão
branca era ela. A luz dos tocheiros dava-lhe aquela palidez de âmbar que lustra
os mármores antigos. O gozo foi fervoroso — cevei-lhe em perdição aquela
vigília. A madrugada passava já frouxa nas janelas. Àquele calor de meu peito,
à febre de meus lábios, à convulsão de meu amor, a donzela pálida parecia
reanimar-se. Súbito, abriu os olhos empanados. Luz sombria alumiou-os como a de
uma estrela entre névoa, apertou-me em seus braços, um suspiro ondeou-lhe nos
beiços azulados... Não era já a morte: era um desmaio. No aperto daquele abraço
havia, contudo, alguma coisa de horrível.
O leito de lajes, onde eu
passara uma hora de embriaguez, me resfriava. Pude, a custo, soltar-me naquele
aperto do peito dela... Nesse instante, ela acordou...
Nunca ouvistes falar de
catalepsia? É um pesadelo horrível aquele que gira ao acordado que emparedam
num sepulcro; sonho gelado em que sentem-se os membros tolhidos e as faces
banhadas de lágrimas alheias, sem poder revelar a vida!
A moça revivia a pouco e
pouco. Ao acordar, desmaiara.
Embucei-me na capa e tomei-a
nos braços coberta com seu sudário, como uma criança. Ao aproximar-me da porta,
topei num corpo. Abaixei-me e olhei: era algum coveiro do cemitério da igreja,
que aí dormira de ébrio, esquecido de fechar a porta...
Saí. Ao passar a praça
encontrei uma patrulha.
— Que levas aí?
A noite era muito alta: talvez
me cressem um ladrão.
— É minha mulher, que vai
desmaiada...
— Uma mulher!... Mas, essa
roupa branca e longa? Serás, acaso, roubador de cadáveres?
Um guarda aproximou-se. Tocou-lhe
a fronte: era fria.
— É uma defunta!...
Cheguei meus lábios aos dela.
Senti um bafejo morno.
— Era a vida, ainda.
— Vede — disse eu.
O guarda chegou-lhe os lábios:
os beiços ásperos roçaram pelos da moça. Se eu sentisse o estalar de um
beijo... O punhal já estava nu em minhas mãos frias...
— Boa-noite, moço. Podes
seguir — disse ele.
Caminhei. Estava cansado.
Custava a carregar o meu fardo e eu sentia que a moça ia despertar.
Temeroso de que ouvissem-na
gritar e acudissem, corri com mais esforço...
Quando eu passei a porta, ela
acordou. O primeiro som que lhe saiu da boca foi um grito de medo...
Mal eu fechara a porta,
bateram nela. Era um bando de libertinos, meus companheiros, que voltavam da
orgia.
Reclamaram que abrisse.
Fechei a moça no meu quarto e
abri.
Meia hora depois eu os deixava
na sala, bebendo ainda. A turvação da embriaguez fez que não notassem a minha
ausência.
Quando entrei no quarto da
moça, vi-a erguida. Ria de um rir convulso, como a insânia, e frio como a folha
de uma espada. Trespassava de dor ouvi-la.
Dois dias e duas noites levou
ela de febre, assim...
Não houve sanar-lhe aquele
delírio, nem o rir do frenesi. Morreu depois de duas noites e dois dias de
delírio.
À noite, saí. Fui ter com um
estatuário que trabalhava perfeitamente em cera e paguei-lhe uma estátua dessa
virgem.
Quando o escultor saiu,
levantei os tijolos de mármore do meu quarto e, com as mãos, cavei aí um
túmulo. Tomei-a, então, pela última vez nos braços, apertei-a a meu peito, muda
e fria, beijei-a e cobri-a, adormecida no sono eterno, com o lençol de seu
leito. Fechei-a no seu túmulo e estendi meu leito sobre ele.
Um ano — noite a noite — dormi
sobre as lajes que a cobriam... Um dia, o estatuário me trouxe a sua obra
aguei-lhe e paguei o segredo...
— Não te lembras, Bertram, de
uma forma branca de mulher que entreviste pelo véu do meu cortinado? Não te
lembras que eu te disse que era uma virgem que dormia?
— E quem era essa mulher,
Solfieri?
— Quem era? Seu nome?
— Quem se importa com uma
palavra quando sente que o vinho queima assaz os lábios? Quem pergunta o nome
da prostituta com quem dormiu e sentiu morrer a seus beijos, quando nem há dele
mister por escrever-lhe na lousa?
Solfieri encheu uma taça e
bebeu-a. Ia erguer-se da mesa, quando um dos convivas tomou-o pelo braço.
— Solfieri, não é um conto,
isso tudo?
— Pelo inferno, que não! Por
meu pai, que era conde e bandido! Por minha mãe que era a bela Messalina das
ruas! Pela perdição que não! Desde que eu próprio calquei aquela mulher com meus
pés na sua cova de terra, eu vo-lo juro! — guardei-lhe como amuleto a capela de
defunta. Ei-la!
Abriu a camisa e viram-lhe ao
pescoço uma grinalda de flores mirradas.
— Vedes? Murcha e seca, como o
crânio dela!
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