Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
---
Tarde límpida de bonança.
O sol, ainda alto no céu, mas descambando já para o ocaso, era o
imenso e aéreo belmaz flamejante que dir-se-ia manter suspenso e pregado no
Azul o seu infinito e transparente velário de ouro luminoso, envolvendo
deliciosa, fúlgida e calidamente a Terra. A baía de Paranaguá, admirável e
vasta, parecia uma gigantesca e exótica pintura chinesa, em cerúleo e verde,
sobre largo fundo de porcelana fulva, a fulgurar pelas suas águas cobertas de
escamas rútilas.
O Sírio, batendo hélice
à marcha de doze milhas, singrava intrepidamente para a barra, lançando ao ar,
em triunfo, pela sua erguida e grossa chaminé amarela, penachos de fumo negro espiralando
ao vento, com a proa a fabricar e a abrir, em tessitura vertiginosa e
marulhante, peças de infindas e nevadas malines,
que rendavam encantadora e picturalmente a safira líquida das ondas.
No passadiço, por cima da tolda que se estendia até quase a proa,
até mais de meia-nau, por entre ré do mastro do traquete, estavam o comandante
Alcídio Freitas, o imediato e um dos pilotos presidindo a saída, com esses
cuidados e apensionamentos que inspiram sempre aos marujos, mesmo de dia e com
bom tempo, os portos e barras rasos e difíceis. Logo abaixo, no amplo
tombadilho, bem baldeado e varrido, constantemente asseado e numa perene
nitidez de pinho novo, à sombra dos toldos claros, espalhava-se uma multidão de
passageiros, que fora enorme e sobre-excedera mesmo a lotação dos camarotes, à
partida do Rio e antes das ancoragens e desembarques em Santos, e no pequeno
empório comercial marítimo do Paraná, que ora lá se ia popa fora a sumir à
distância.
Esses passageiros, dispostos em grupos, ocupavam-se vivamente, em
alegre e esfuziada palestra, das impressões do último porto visitado, dos
aspectos do mar e do céu daquele dia de esplendor, das ocorrências da viagem,
até ali, das pequeninas e infinitas coisas de bordo e, particularmente, — qual
é indefectível — da brevidade da nova travessia oceânica a fazer e da hora da
chegada ao novo porto de escala, que era Florianópolis, em Santa Catarina.
Como nem sempre sucede em tais viagens, a maioria desses
transeuntes do mar eram pessoas de certa ordem, selecionadas, distintas.
Contavam-se entre elas o contra-almirante Souza Lobo, os capitães de mar e
guerra Garnier e Espíndola, o coronel Bento Porto, o engenheiro eletricista
Alfredo Soares, médicos, advogados, oficiais do Exército, capitalistas,
comerciantes, industriais, o engenheiro de faróis Schultz, o gerente da Messagerie Maritime, em Santos, e
outros, alguns acompanhados das respectivas famílias, com bandos de moças e
crianças que eram o maior encanto de bordo.
O contra-almirante Souza Lobo era um homem baixo, atlético, rosto
ainda moço e rosado, destacando entre barbas e cabelos alvos de algodão, que
lhe davam um grande ar venerando. Ninguém o via na viagem senão em uniforme
branco, abotoado de alto a baixo, com as platinas indicativas do seu alto posto
militar, de uma linha irrepreensível, aristocrática. Viajava sozinho, a
misteres de sua profissão. Permanecia a mor parte do tempo no seu vasto camarim
de luxo, olhando tudo a bordo por uma das amplas vigias retangulares desse
apartamento, onde se postava os dias inteiros, só daí saindo à chegada aos
portos ou, às vezes, para ir observar o mar, o céu, a viagem e seus acidentes,
do alto do passadiço, ao lado do comandante, quando o vapor em singradura.
Destinava-se à capital catarinense. A missão que o levava àquela cidade era a
de verificar quais as causas e os responsáveis do encalhe do couraçado Riachuelo, capitânia da divisão naval
brasileira, então em cruzeiro, exercícios e simulacros de combate em águas de
Santa Catarina, encalhe ocorrido na Ponta Grossa, à entrada da baía do norte de
Florianópolis. — O capitão de mar e guerra Garnier, recém nomeado chefe da
Capitania do Porto do Rio Grande do Sul, seguia a assumir o seu posto na
principal cidade marítima daquele Estado. Acompanhavam-no a esposa e cinco filhos,
entre os quais três inteligentes e graciosas senhoritas, que eram das mais
adoráveis que, ao momento, enxameavam o Sírio.
— Também em missão do ministério da marinha dirigia-se a Florianópolis o
comandante Espíndola, engenheiro naval, encarregado de examinar a reconstrução
e rearmamento do forte de Anhatomirim, havia pouco transferido do departamento
administrativo da guerra para o da marinha. — A visitar os parentes e a
estância que deixara na sua amada terra natal, a grande terra gaúcha, demandava
Porto Alegre o coronel Bento Porto, ultimamente residente no Rio, mas que fora
chefe político ali e sobretudo bravo capitão de guerrilhas legais na derradeira
revolução sulista, que fizera toda como vanguardeiro da coluna do general
Pinheiro Machado, comandando ele próprio, em pessoa, a terrível escaramuça em
que perecera o famoso cabecilha federalista Gumercindo Saraiva, lamentável
perda, mas que deu o golpe de misericórdia, pôde dizer-se, naquela tremenda
guerra civil. — Os demais passageiros iam a passeio ou a interesses políticos,
comerciais, industriais e outros.
Entretanto é justo destacar ainda, em meio dessa sociedade
itinerante, o Viriato Vidal, burocrata e residente da capital da República
fazia vinte anos e que ia, após tanto tempo de ausência, rever agora o torrão
do seu berço, o seu pequeno mas idolatrado Estado catarinense. Muito
comunicativo e amigo do Mar e da vida de bordo, pela qual se apaixonara desde
menino, e mais dos seus tempos de aspirante e de praticante de piloto na
marinha de comércio, a breves e longas derrotas de pequena e grande cabotagem,
deliciava-se com aquela esplêndida viagem depois de quatro lustres em terra,
passando as horas, durante as travessias de porto a porto, umas vezes com o
comandante e oficiais de quarto, no passadiço, outras a parolar amistosamente
com os passageiros, à tolda ou nos salões da câmara, nessa fácil, suave e
característica familiaridade que reina sempre entre todos — oficiais e
passageiros — de princípio a fim das viagens. O Viriato ia louco por avistar as
suas plagas natais e delas fazia, quanto possível, o assunto primordial das
suas constantes palestras, traçando entusiástica e pitorescamente, no seu inato
pendor descritivo, esquissos e quadros da paisagem e marinha, como da vida costumes
catarinenses, os quais logravam sempre interessar e distrair os que o ouviam e
cercavam, amenizando assim a imensa solidão e monotonia de bordo.
Esses “cavacos bairristas e náuticos”, como humoristicamente e em
gracejo cavalheiroso denominara tais palestras o simpático gaúcho coronel Bento
Porto, tinham despertado particular encanto no comandante Espíndola e nos
engenheiros Alfredo Soares e Hermann Schultz, que constantemente rodeavam o
Viriato Vidal, de quem se tornaram verdadeiros amigos; e, à sua vez, esses três
cidadãos haviam atraído, mais que os outros passageiros, o moço catarinense,
que os procurava assiduamente, pagando-lhes em igual moeda semelhantes
distinções e afetos...
Mas o Sírio transpunha
já a barra de Paranaguá. E embora o tempo andasse de bonança, os vagalhões do
largo entraram a sacudir o paquete em fortes balanços de roulis.
Então grande parte dos passageiros, e sobretudo matronas e
senhoritas, desceram apressadamente para os camarins ou para os salões da
câmara a recostar-se nos seus beliches, nas suas cadeiras de viagem ou sobre os
longos divãs das anteparas, procurando resistir ao enjoo.
A ampla tolda balouçante parou-se, pois, quase de todo deserta, só
contando, num ou noutro banco, às amuradas, alguns dos viajantes mais afoitos e
afeitos ao mar. Entretanto, não somente a vaga alta e embaladora fazia desejar
os aninhados recantos da câmara, mas ainda a aragem do norte que, agora,
soprava, fresca e arrepiadora sob um repentino acúmulo de nuvens escuras,
prometendo aguaceiro a oeste. Lufadas rijas batiam de vez em quando o navio,
rumorejando nos toldos que estalavam e ondulavam em bolsos apesar de bem
tesados os fiéis no longo cabo de arame passado em varões de ferro aprumo, onde
a sua amura dava volta e esticava a beijar.
Por isso e seguindo os desertores da tolda, o Viriato Vidal, o
comandante Espíndola, o Soares e o Schultz desceram também, vindo sentar-se os
três para um dos ângulos da antecâmara — o de boreste — de onde se
descortinavam, de instante a instante, nos balanços, pela porta escancarada
sobre o convés, retalhos de céu e mar já envoltos no vento de oeste, que
começava a cair violentamente com o nevoeiro que o acompanhava e grossas
bátegas d’água.
— Olhem o belo dia em que deu! disse repentinamente o comandante
Espíndola, meio erguido no divã em frente à vigia próxima, cortando de súbito a
conversa e dirigindo-se ao Vidal, ao Soares e ao Schultz, com os seus olhos
pequeninos mas de grande visão alvejando lá fora as águas e o nevoeiro.
Felizmente, porém, — concluiu — é um desses aguaceiros de verão que caem e
passam logo sem causar quase danos...
E o bravo e amável marinheiro reatou imediatamente a bela narração
que fazia, ao instante, perante aqueles três amigos, de alguns dos principais
episódios da sua vida, desde aspirante até capitão de mar e guerra, passada em
frequentes cruzeiros e longas viagens pelas costas do Brasil e pelo
estrangeiro.
Inopinadamente, e conforme o prognosticara o comandante Espíndola,
o tempo escampou, retomando quase o esplendor de duas horas antes, mas um
esplendor já agora melancólico, saudoso, espiritualíssimo, de sol no poente. E
da linha afastada e nostálgica do horizonte a oeste, por onde se afundava já o
seu disco imenso e flamejante, cor de gema de ovo, o sol lançou, como em
despedida aos de bordo, naquele dia, uma deliciosa faixa de luz que, penetrando
pela porta aberta de par em par e pelas grandes vigias retangulares, encheu
toda a antecâmara e salões de uma maravilhosa apoteose de ouro...
O Vidal, ao ver aquele mágico golpe de luz crepuscular, ergueu-se
inesperadamente, de um salto, e gritou, voltado para boreste e para aquela
feérica iluminação, sacudido por incomparável entusiasmo e júbilo:
— Salve, sol da minha terra natal! Salve, sol da minha alegre e
saudosíssima infância!... E voltando-se para os companheiros: — Este já não é
mais, meus amigos, o sol do Rio de Janeiro, nem de São Paulo, nem do Paraná:
este é o divino sol catarinense... Conheço-o perfeitamente. A sua luz tem, para
mim, um especial encanto, um excepcional esplendor, uma nunca vista magia!...
E, olhando de novo o sol, já quase a sumir-se de todo no horizonte: — Bendito
sejas, sol da minha meninice, da minha alegria, da minha vida de outrora!...
Mil vezes bendito sejas, sol das brancas praias onde nasci!... Infinitamente,
eternamente, bendito sejas!...
O Soares e o Schultz acompanharam prazenteiramente aquela
estranha, bairrista e votiva saudação ao grande astro que desaparecia. E o
comandante Espíndola, sempre amável e a sorrir, pousando uma mão paternal no
ombro do moço fanático pela sua terra, disse-lhe então:
— Mas, como adivinhou, meu amigo? Parece incrível, sobretudo não
viajando por estas costas há cerca de vinte anos... Pois acertou perfeitamente!
Já estamos, com efeito, em águas de Santa Catarina... Vamos aqui, agora, pela
altura de São Francisco... Não deve tardar a ver-se o farol da ilha da Paz, no
grupo das Graças... Saia fora ao convés, às amuradas, e vê-lo-á já, talvez,
reluzir, ao longe, pelo través, nestas primeiras sombras das ave-marias...
O Vidal correu logo à borda e pôs-se a olhai embevecidamente a
costa distante, a costa norte da sua terra querida, vaga e tenuemente esboçada
sob a névoa violácea e longínqua.
Fechara a noite, no entanto. Mar e céu, já lavados e sem nuvens,
tinham-se pouco a pouco irmanado, unindo-se, confundindo-se na mesma negrura,
na mesma azulada escuridão marinha. Dir-se-ia que um imenso crepe envolvia
então funerariamente as águas e a alta abóbada infinita; Através dele as
estrelas, as lindas estrelas, começaram a radiar inefável e misteriosamente. E
tão formosa quanto elas, e quanto elas fascinante, e mais humana decerto,
entrou a fulgir, por entre a profusão infinita dos seus miudinhos pontilhados
de prata, na linha rasa do horizonte, a grande estrela rotativa, com eclipses de
espaço a espaço e transmutante de cor, do belo farol da Paz.
E o Vidal, algemado à borda, com os olhos perdidos, como a sua
própria alma, através da escuridão do céu e do mar, no “astro” flamejante do
grande foco de ouro do farol, enlevava-se docemente, a saciar pouco a pouco a
sua longa e profunda nostalgia, à primeira aparição da sua terra amada...
No outro dia, ao raiar triunfante e glorioso do sol, o Sírio largava ferro no porto de
Florianópolis, a pequenina capital catarinense que, situada sobre uma pitoresca
península, se balouçava sobre as águas azuis do seu golfo, como uma sereia, uma
ondina, uma graciosa e encantadora filha do Mar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...