Singular
Ocorrência
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
---
Há ocorrências bem singulares. Está vendo
aquela dama que vai entrando na Igreja da Cruz? Parou agora no adro para dar
uma esmola.
— De preto?
— Justamente; lá vai entrando; entrou.
— Não ponha mais na carta. Esse olhar está
dizendo que a dama é uma sua recordação de outro tempo, e não há de ser de
muito tempo, a julgar pelo corpo: é moça de truz.
— Deve ter quarenta e seis anos.
— Ah! conservada. Vamos lá; deixe de olhar
para o chão, e conte-me tudo. Está viúva, naturalmente?
— Não.
— Bem; o marido ainda vive. É velho?
— Não é casada.
— Solteira?
— Assim, assim. Deve chamar-se hoje D. Maria
de tal. Em 1860 florescia com o nome familiar de Marocas. Não era costureira,
nem proprietária, nem mestra de meninas; vá excluindo as profissões e lá
chegará. Morava na Rua do Sacramento. Já então era esbelta, e, seguramente,
mais linda do que hoje; modos sérios, linguagem limpa. Na rua, com o vestido
afogado, escorrido, sem espavento, arrastava a muitos, ainda assim.
— Por exemplo, ao senhor.
— Não, mas ao Andrade, um amigo meu, de vinte
e seis anos, meio advogado, meio político, nascido nas Alagoas, e casado na
Bahia, donde viera em 1859. Era bonita a mulher dele, afetuosa, meiga e
resignada; quando os conheci, tinham uma filhinha de dois anos.
— Apesar disso, a Marocas?...
— É verdade, dominou-o. Olhe, se não tem
pressa, conto-lhe uma coisa interessante.
— Diga.
— A primeira vez que ele a encontrou, foi à
porta da loja Paula Brito, no Rocio. Estava ali, viu a distância uma mulher
bonita, e esperou, já alvoroçado, porque ele tinha em alto grau a paixão das
mulheres. Marocas vinha andando, parando e olhando como quem procura alguma
casa. Defronte da loja deteve-se um instante; depois, envergonhada e a medo,
estendeu um pedacinho de papel ao Andrade, e perguntou-lhe onde ficava o número
ali escrito. Andrade disse-lhe que do outro lado do Rocio, e ensinou-lhe a
altura provável da casa. Ela cortejou com muita graça; ele ficou sem saber o
que pensasse da pergunta.
— Como eu estou.
— Nada mais simples: Marocas não sabia ler.
Ele não chegou a suspeitá-lo. Viu-a atravessar o Rocio, que ainda não tinha
estátua nem jardim, e ir à casa que buscava, ainda assim perguntando em outras.
De noite foi ao Ginásio; dava-se a Dama
das Camélias; Marocas estava lá, e, no último ato, chorou como uma criança.
Não lhe digo nada; no fim de quinze dias amavam-se loucamente. Marocas despediu
todos os seus namorados, e creio que não perdeu pouco; tinha alguns
capitalistas bem bons. Ficou só, sozinha, vivendo para o Andrade, não querendo
outra afeição, não cogitando de nenhum outro interesse.
— Como a Dama
das Camélias.
— Justo. Andrade ensinou-lhe a ler. Estou
mestre-escola, disse-me ele um dia; e foi então que me contou a anedota do
Rocio. Marocas aprendeu depressa. Compreende-se; o vexame de não saber, o
desejo de conhecer os romances em que ele lhe falava, e finalmente o gosto de
obedecer a um desejo dele, de lhe ser agradável... Não me encobriu nada;
contou-me tudo com um riso de gratidão nos olhos, que o senhor não imagina. Eu
tinha a confiança de ambos. Jantávamos às vezes os três juntos; e... não sei
por que negá-lo, — algumas vezes os quatro. Não cuide que eram jantares de
gente pândega; alegres, mas honestos. Marocas gostava da linguagem afogada,
como os vestidos. Pouco a pouco estabeleceu-se intimidade entre nós; ela
interrogava-me acerca da vida do Andrade, da mulher, da filha, dos hábitos
dele, se gostava deveras dela, ou se era um capricho, se tivera outros, se era
capaz de a esquecer, uma chuva de perguntas, e um receio de o perder, que
mostravam a força e a sinceridade da afeição... Um dia, uma festa de São João,
o Andrade acompanhou a família à Gávea, onde ia assistir a um jantar e um
baile; dois dias de ausência. Eu fui com eles. Marocas, ao despedir-se,
recordou a comédia que ouvira algumas semanas antes no Ginásio — Janto com minha mãe — e disse-me que,
não tendo família para passar a festa de São João, ia fazer como a Sofia
Arnoult da comédia, ia jantar com um retrato; mas não seria o da mãe, porque
não tinha, e sim do Andrade. Este dito ia-lhe rendendo um beijo; o Andrade
chegou a inclinar-se; ela, porém, vendo que eu estava ali, afastou-o
delicadamente com a mão.
— Gosto desse gesto.
— Ele não gostou menos. Pegou-lhe na cabeça
com ambas as mãos, e, paternalmente, pingou-lhe o beijo na testa. Seguimos para
a Gávea. De caminho disse-me a respeito da Marocas as maiores finezas,
contou-me as últimas frioleiras de ambos, falou-me do projeto que tinha de
comprar-lhe uma casa em algum arrabalde, logo que pudesse dispor de dinheiro;
e, de passagem, elogiou a modéstia da moça, que não queria receber dele mais do
que o estritamente necessário. Há mais do que isso, disse-lhe eu, e contei-lhe
uma coisa que sabia, isto é, que cerca de três semanas antes, a Marocas
empenhara algumas joias para pagar uma conta da costureira. Esta notícia
abalou-o muito; não juro, mas creio que ficou com os olhos molhados. Em todo
caso, depois de cogitar algum tempo, disse-me que definitivamente ia
arranjar-lhe uma casa e pô-la ao abrigo da miséria. Na Gávea ainda falamos da
Marocas, até que as festas acabaram, e nós voltamos. O Andrade deixou a família
em casa, na Lapa, e foi ao escritório aviar alguns papéis urgentes. Pouco
depois do meio-dia apareceu-lhe um tal Leandro, ex-agente de certo advogado a
pedir-lhe, como de costume, dois ou três mil-réis. Era um sujeito reles e
vadio. Vivia a explorar os amigos do antigo patrão. Andrade deu-lhe três
mil-réis, e, como o visse excepcionalmente risonho, perguntou-lhe se tinha
visto passarinho verde. O Leandro piscou os olhos e lambeu os beiços: o
Andrade, que dava o cavaco por anedotas eróticas, perguntou-lhe se eram amores.
Ele mastigou um pouco, e confessou que sim.
— Olhe; lá vem ela saindo; não é ela?
— Ela mesma: afastemo-nos da esquina.
— Realmente, deve ter sido muito bonita. Tem
um ar de duquesa.
— Não olhou para cá; não olha nunca para os
lados. Vai subir pela Rua do Ouvidor...
— Sim, senhor. Compreendo o Andrade.
— Vamos ao caso. O Leandro confessou que
tivera na véspera uma fortuna rara, ou antes única, uma coisa que ele nunca
esperara achar, nem merecia mesmo, porque se conhecia e não passava de um
pobre-diabo. Mas, enfim, os pobres também são filhos de Deus. Foi o caso que,
na véspera, perto das dez horas da noite, encontrara no Rocio uma dama vestida
com simplicidade, vistosa de corpo, e muito embrulhada num xale grande. A dama
vinha atrás dele, e mais depressa; ao passar rentezinha com ele, fitou-lhe
muito os olhos, e foi andando devagar, como quem espera. O pobre-diabo imaginou
que era engano de pessoa; confessou ao Andrade que, apesar da roupa simples,
viu logo que não era coisa para os seus beiços. Foi andando; a mulher, parada,
fitou-o outra vez, mas com tal instância, que ele chegou atrever-se um pouco;
ela atreveu-se o resto... Ah! um anjo! E que casa, que sala rica! Coisa
papa-fina. E depois o desinteresse... "Olhe, acrescentou ele, para V. Sa é
que era um bom arranjo". Andrade abanou a cabeça; não lhe cheirava o
comborço. Mas o Leandro teimou; era na Rua do Sacramento, número tantos...
— Não me diga isso!
— Imagine como não ficou o Andrade. Ele mesmo
não soube o que fez nem o que disse durante os primeiros minutos, nem o que
pensou nem o que sentiu. Afinal teve força para perguntar se era verdade o que
estava contando; mas o outro advertiu que não tinha nenhuma necessidade de
inventar semelhante coisa; vendo, porém, o alvoroço do Andrade, pediu-lhe
segredo, dizendo que ele, pela sua parte, era discreto. Parece que ia sair;
Andrade deteve-o, e propôs-lhe um negócio; propôs-lhe ganhar vinte mil-réis.
—"Pronto!" — "Dou-lhe vinte mil-réis, se você for comigo à casa
dessa moça e disser em presença dela que é ela mesma".
— Oh!
— Não defendo o Andrade; a coisa não era
bonita; mas a paixão, nesse caso, cega os melhores homens. Andrade era digno,
generoso, sincero; mas o golpe fora tão profundo, e ele amava-a tanto, que não
recuou diante de uma tal vingança.
— O outro aceitou?
— Hesitou um pouco, estou que por medo, não
por dignidade, mas vinte mil-réis... Pôs uma condição: não metê-lo em barulhos...
Marocas estava na sala, quando o Andrade entrou. Caminhou para a porta, na
intenção de o abraçar; mas o Andrade advertiu-a, com o gesto, que trazia
alguém. Depois, fitando-a muito, fez entrar o Leandro; Marocas empalideceu. —
"É esta senhora?" perguntou ele. — "Sim, senhor", murmurou
o Leandro com voz sumida, porque há ações ainda mais ignóbeis do que o próprio
homem que as comete. Andrade abriu a carteira com grande afetação, tirou uma
nota de vinte mil-réis e deu-lha; e, com a mesma afetação, ordenou-lhe que se
retirasse. O Leandro saiu. A cena que se seguiu, foi breve, mas dramática. Não
a soube inteiramente, porque o próprio Andrade é que me contou tudo, e,
naturalmente, estava tão atordoado, que muita coisa lhe escapou. Ela não
confessou nada; mas estava fora de si, e, quando ele, depois de lhe dizer as
coisas mais duras do mundo, atirou-se para a porta, ela rojou-se-lhe aos pés,
agarrou-lhe as mãos, lacrimosa, desesperada, ameaçando matar-se; e ficou
atirada ao chão, no patamar da escada; ele desceu vertiginosamente e saiu.
— Na verdade, um sujeito reles, apanhado na
rua; provavelmente eram hábitos dela?
— Não.
— Não?
— Ouça o resto. De noite seriam oito horas, o
Andrade veio à minha casa, e esperou por mim. Já me tinha procurado três vezes.
Fiquei estupefato, mas como duvidar, se ele tivera a precaução de levar a prova
até à evidência? Não lhe conto o que ouvi, os planos de vingança, as
exclamações, os nomes que lhe chamou, todo o estilo e todo o repertório dessas
crises. Meu conselho foi que a deixasse; que, afinal, vivesse para a mulher e a
filha, a mulher tão boa, tão meiga... Ele concordava, mas tornava ao furor. Do
furor passou à dúvida; chegou a imaginar que a Marocas, com o fim de o
experimentar, inventara o artifício e pagara ao Leandro para vir dizer-lhe
aquilo; e a prova é que o Leandro, não querendo ele saber quem era, teimou e
lhe disse a casa e o número. E agarrado a esta inverossimilhança, tentava fugir
à realidade; mas a realidade vinha, — a palidez de Marocas, a alegria sincera
do Leandro, tudo o que lhe dizia que a aventura era certa. Creio até que ele
arrependia-se de ter ido tão longe. Quanto a mim, cogitava na aventura, sem
atinar com a explicação. Tão modesta! maneiras tão acanhadas!
— Há uma frase de teatro que pode explicar a
aventura, uma frase de Augier, creio eu: "a nostalgia da lama".
— Acho que não; mas vá ouvindo. Às dez horas
apareceu-nos em casa uma criada de Marocas, uma preta forra, muito amiga da
ama. Andava aflita em procura do Andrade, porque a Marocas, depois de chorar
muito, trancada no quarto, saiu de casa sem jantar, e não voltara mais. Contive
o Andrade, cujo primeiro gesto foi para sair logo. A preta pedia-nos por tudo,
que fôssemos descobrir a ama. "Não é costume dela sair?" perguntou o
Andrade com sarcasmo. Mas a preta disse que não era costume. "Está
ouvindo?" bradou ele para mim. Era a esperança que de novo empolgara o
coração do pobre-diabo. "E ontem?..." disse eu. A preta respondeu que
na véspera sim; mas não lhe perguntei mais nada, tive compaixão do Andrade,
cuja aflição crescia, e cujo pundonor ia cedendo diante do perigo. Saímos em
busca da Marocas; fomos a todas as casas em que era possível encontrá-la; fomos
à polícia; mas a noite passou-se sem outro resultado. De manhã voltamos à
polícia. O chefe ou um dos delegados, não me lembra, era amigo do Andrade, que
lhe contou da aventura a parte conveniente; aliás a ligação do Andrade e da
Marocas era conhecida de todos os seus amigos. Pesquisou-se tudo; nenhum
desastre se dera durante a noite; as barcas da Praia Grande não viram cair ao
mar nenhum passageiro; as casas de armas não venderam nenhuma; as boticas
nenhum veneno. A polícia pôs em campo todos os seus recursos, e nada. Não lhe
digo o estado de aflição em que o pobre Andrade viveu durante essas longas
horas, porque todo o dia se passou em pesquisas inúteis. Não era só a dor de a
perder; era também o remorso, a dúvida, ao menos, da consciência, em presença
de um possível desastre, que parecia justificar a moça. Ele perguntava-me, a
cada passo se não era natural fazer o que fez, no delírio da indignação, se eu
não faria a mesma coisa. Mas depois tornava a afirmar a aventura, e provava-me
que era verdadeira, com o mesmo ardor com que na véspera tentara provar que era
falsa; o que ele queria era acomodar a realidade ao sentimento da ocasião.
— Mas, enfim, descobriram a Marocas?
— Estávamos comendo alguma coisa, em um
hotel, eram perto de oito horas, quando recebemos notícia de um vestígio: — um
cocheiro que levara na véspera uma senhora para o Jardim Botânico, onde ela
entrou em uma hospedaria, e ficou. Nem acabamos o jantar; fomos no mesmo carro
ao Jardim Botânico. O dono da hospedaria confirmou a versão; acrescentando que
a pessoa se recolhera a um quarto, não comera nada desde que chegou na véspera;
apenas pediu uma xícara de café; parecia profundamente abatida. Encaminhamo-nos
para o quarto, o dono da hospedaria bateu à porta; ela respondeu com voz fraca,
e abriu. O Andrade nem me deu tempo de preparar nada; empurrou-me, e caíram nos
braços um do outro. Marocas chorou muito e perdeu os sentidos.
— Tudo se explicou?
— Coisa nenhuma. Nenhum deles tornou ao
assunto; livres de um naufrágio, não quiseram saber nada da tempestade que os
meteu a pique. A reconciliação fez-se depressa. O Andrade comprou-lhe, meses
depois, uma casinha em Catumbi; a Marocas deu-lhe um filho, que morreu de dois
anos. Quando ele seguiu para o Norte, em comissão do governo, a afeição era
ainda a mesma, posto que os primeiros ardores não tivessem já a mesma
intensidade. Não obstante, ela quis ir também; fui eu que a obriguei a ficar. O
Andrade contava tornar ao fim de pouco tempo, mas, como lhe disse, morreu na
província. A Marocas sentiu profundamente a morte, pôs luto, e considerou-se
viúva; sei que nos três primeiros anos, ouvia sempre uma missa no dia
aniversário. Há dez anos perdi-a de vista. Que lhe parece tudo isto?
— Realmente, há ocorrências bem singulares,
se o senhor não abusou da minha ingenuidade de rapaz para imaginar um romance...
— Não inventei nada; é a realidade pura.
— Pois, senhor, é curioso. No meio de uma
paixão tão ardente, tão sincera... Eu ainda estou na minha; acho que foi a
nostalgia da lama.
— Não: nunca a Marocas desceu até os
Leandros.
— Então por que desceria naquela noite?
— Era um homem que ela supunha separado, por
um abismo, de todas as suas relações pessoais; daí a confiança. Mas o acaso,
que é um deus e um diabo ao mesmo tempo... Enfim, coisas!
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...