Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
O chá foi servido na saleta das palestras
íntimas às quatro visitas do casal Vasconcelos. Eram estas o Sr. Bento Soares,
sua esposa D. Maria do Céu, o bacharel Antunes e o desembargador Cruz. A
conversa, antes do chá, versava sobre a última soirée do desembargador; quando
o criado entrou, passaram a tratar da morte de um conhecido, depois das almas
do outro mundo, de contos de bruxas, finalmente de lobisomem e das abusões dos
índios.
— Pela minha parte, disse o Sr. Bento Soares,
nunca pude compreender como o espírito humano pôde inventar tanta tolice e crer
no invento. Vá que uma ou outra criança dê crédito às suas próprias ilusões;
para isso mesmo é que são crianças. Mas, que um homem feito...
— Que tem isso? observou o desembargador
apresentando a xícara ao criado para que lhe repetisse o chá; a vida do homem é
uma série de infâncias, umas menos graciosas que as outras.
— Queres mais chá, Maria? perguntou a dona da
casa à esposa de Bento Soares, que acabava de beber a última gota do seu.
— Aceito.
O bacharel Antunes apressou-se a receber a
xícara de D. Maria do Céu, com uma cortesia e graça, que lhe rendeu o mais doce
dos sorrisos.
— Eu acompanho o desembargador, disse Bento
Soares.
Enquanto o bacharel Antunes ampliava ao
marido de Maria do Céu o obséquio que acabava de prestar a esta, com a mesma
solicitude, mas sem receber o mesmo nem outro sorriso, e passava ao criado a
xícara vazia, Bento Soares prosseguia em suas ideias acerca das abusões
humanas. Bento Soares estava profundamente convencido que o mundo todo tinha
por limites os do distrito em que ele morava, e que a espécie humana aparecera
na terra no primeiro dia de abril de 1832, data de seu nascimento. Esta
convicção diminuía ou antes eliminava certos fenômenos psicológicos e reduzia a
história do planeta e de seus habitantes a uma certidão de batismo e vários
acontecimentos locais. Não havia para ele tempos pré-históricos, havia tempos
pré-soáricos. Daí vinha que, não crendo ele em certas lendas e contos da
carocha, mal podia compreender que houvesse homem no mundo capaz de ter crido
neles uma vez ao menos.
A conversa, porém, bifurcou-se; enquanto o
desembargador referia a Bento Soares e ao dono da casa algumas notícias
relativas a crenças populares antigas e modernas, as duas senhoras conversavam
com o bacharel, sobre um ponto de toilette...
Maria do Céu era uma mulher bela, ainda que baixinha, ou talvez por isso mesmo,
porquanto as feições eram consoantes à estatura: tinha uns olhos miúdos e
redondos, uma boquinha que o bacharel comparava a um botão de rosa, e um nariz
que o poeta bíblico só por hipérbole poderia comparar à torre de Galaad. A mão,
que essa, sim, era um lírio dos vales — lilium
convalium —, parecia arrancada a alguma estátua, não de Vênus, mas de seu
filho; e eu peço perdão desta mistura de coisas sagradas com profanas, a que
sou obrigado pela natureza mesma de Maria do Céu. Quieta, podiam pô-la num
altar; mas, se movia os olhos, era pouco menos que um demônio. Tinha um jeito
peculiar de usar deles que enfeitiçou alguns anos antes a gravidade de Bento
Soares, fenômeno que o bacharel Antunes achava o mais natural do mundo. Vestia
nessa noite um vestido cor de pérola, objeto da conversa entre o bacharel e as
duas senhoras. Antunes, sem contestar que a cor de pérola ia perfeitamente à
esposa de Bento Soares, opinava que era geral acontecer o mesmo às demais
cores; donde se pode razoavelmente inferir que em seu parecer a porção mais
bela de Maria não era o vestido, mas ela mesma.
Uma contestação, em voz mais alta, chamou a
atenção deles para o grupo dos homens graves. Bento Soares dizia que o
desembargador mofava da razão, afiançando acreditar em almas do outro mundo; e
o desembargador insistia em que a existência dos fantasmas não era coisa que
absolutamente se pudesse negar.
— Mas, desembargador, isto é querer supor que
somos uns beócios. Pois fantasmas...
— Não me dirá nada de novo, interrompeu Cruz;
sei o que se pode dizer contra os fantasmas; não obstante, existem.
— Como as bexigas; também se diz muita coisa
contra elas.
— Fantasmas! exclamou Maria do Céu. Pois há
quem tenha visto fantasmas?
— É o desembargador quem o diz, observou
Vasconcelos.
— Deveras?
— Nada menos.
— Na imaginação, disse o bacharel.
— Na realidade.
Os ouvintes sorriram; Maria fez um gesto de
desdém.
— Se a entrada na Relação dá em resultado
visões dessa natureza, declaro que vou cortar as asas às minhas ambições,
observou o bacharel olhando para a esposa de Bento Soares, como a pedir-lhe
aprovação do dito.
— Os fantasmas são fruto do medo, disse esta,
sentenciosamente. Quem não tem medo não vê fantasmas.
— Você não tem medo? perguntou a dona da
casa.
— Tanto como deste leque.
— Sempre há de ter algum, opinou Vasconcelos.
— Não tenho medo de nada nem de ninguém.
— Pode ser, interveio o desembargador; mas se
visse o que eu vi uma vez, estou certo de que ficaria apavorada.
— Alguma bruxa?
— O diabo?
— Um defunto à meia-noite?
— Um duende?
Cruz empalidecera.
— Falemos de outra coisa, disse ele.
Mas o auditório tinha a curiosidade aguçada,
e o próprio mistério e recusa do desembargador faziam crescer o apetite. Os
homens insistiram; as senhoras fizeram coro com eles. Cruz imolou-se ao
sufrágio universal.
— O que eu vi foi há muitos anos, disse ele;
ainda assim conservo a memória fresca do que me aconteceu. Não sei se poderia
ir até o fim; e desde já estou certo de que vou passar uma triste noite...
Uma risadinha de Maria do Céu interrompeu o
desembargador.
— Prepare o auditório! disse ela. Vamos ver
que a montanha dá à luz um ratinho.
Alguns sorriram; mas o desembargador estava
sério e pálido. Bento Soares ofereceu-lhe uma pitada de rapé, enquanto
Vasconcelos acendia um charuto. Fez-se grande silêncio; só se ouvia o tic-tac
do relógio e o movimento do leque de Maria do Céu. O desembargador olhou para
os interlocutores, como a ver se era possível evitar a narração; mas a
curiosidade estava tão pendente de todos os olhos, que era impossível resistir.
— Vá lá! disse ele. Contarei isto em duas
palavras.
Quando eu estudava em São Paulo raras vezes
gozava as férias todas na fazenda de meu pai; ia a Cantagalo passar algumas
semanas e voltava logo para o Rio de Janeiro, aonde me chamava o meu primeiro e
último namoro, paixão de quatro anos, que a Igreja consagrou e só a morte
extinguiu. Nas férias do terceiro ano fui morar no primeiro andar de uma casa
da Rua da Misericórdia. No segundo morava um homem de quarenta anos que parecia
ter mais de cinquenta, tão alquebrado e encanecido estava. Éramos os dois
moradores únicos, salvo o meu pajem, que fazia o número três. O vizinho de cima
não tinha criado.
A primeira vez que o vi foi logo no dia
seguinte da minha entrada na casa. Ao passar pelo corredor dei com ele na
escada, que ia do primeiro para o segundo andar, de pé, com um livro aberto nas
mãos. Tinha um pé no quinto e outro no sexto degrau. Fiquei a olhar de baixo
para ele durante algum tempo; não o conhecendo, entrei a suspeitar se seria
algum ladrão. O pajem explicou-me que era o morador de cima.
Dois dias depois, estando eu à noite em casa,
perto das onze horas a ler na minha sala, senti alguém bater-me à porta; fui
abrir; era o vizinho, que descera, com um livro na mão, talvez o mesmo que lia
dois dias antes na escada, não sei.
— Venho incomodá-lo, não? disse ele.
Fiz um gesto duvidoso, e fiquei a olhar para
ele como quem espera uma explicação.
— O morador da loja, continuou ele, disse-me
hoje que o senhor é estudante. Talvez me possa explicar uma coisa. Sabe
hebraico?
— Não.
— É pena! disse ele consternado.
Ficou alguns instantes silencioso, a olhar
para o livro e para o teto. Depois fitou-me, e disse:
— Ando a ver se meto dente numa passagem de
Jonas.
Dizendo isto, sentou-se abrindo o livro sobre
os joelhos. Joelhos chamo eu, porque é esse o nome daquela região; mas o que
ele tinha naquele lugar das pernas eram dois verdadeiros pregos, tão magro
estava. A cara angulosa e descarnada, os olhos cavos, o cabelo hirsuto, as mãos
peludas e rugosas, tudo fazia dele um personagem fantástico. Esteve algum tempo
ainda silencioso, até que continuou:
— Há aqui um versículo de Jonas, é o 11 do
cap. IV, em que leio: “E então eu não perdoarei a grande cidade de Nínive, onde
há mais de cento e vinte mil homens, que não sabem discernir entre a sua mão
direita e a sua mão esquerda?”. Como entende o senhor este versículo?
A ideia que o vizinho era doido apoderou-se
logo de meu espírito. Que outra coisa seria, vindo consultar a semelhante hora,
a um vizinho de três dias, sobre um texto de Jonas? Também eu não tinha medo
nesse tempo — tal qual como a Sra. D. Maria do Céu —, deixei-me estar quieto na
cadeira, a olhar sem responder, contendo uma grande vontade de rir.
— Que lhe parece? repetiu o vizinho.
— Que quer o senhor que me pareça?
— “Homens que não sabem discernir a mão
direita da esquerda”; — frase que, geralmente, tem um sentido óbvio, e vem a
ser nada menos que isto: o profeta refere-se às crianças ninivitas. Jeová quer
perdoar a cidade por amor dos meninos que ela encerra. Mas eu dou do texto uma
interpretação que vai assombrar o mundo.
— Sim?
— Jonas não alude às crianças, mas aos
canhotos que são os homens que não podem discernir a direita da esquerda. Sendo
assim, veja o senhor a importância da minha interpretação. Duas coisas se
concluem dela: 1ª que os ninivitas eram geralmente canhotos; 2ª que o ser
canhoto era no entender dos hebreus um grande mérito. Desta última conclusão
nasceu uma terceira, a saber, que chamar canhoto ao diabo é estar fora do
espírito bíblico. Isto é claro como água e evidente como a luz.
A profunda convicção com que ele disse tudo
isto, e o ar de triunfo com que ficou a olhar para mim, confesso que me
impressionaram singularmente. Não sabia que dizer; o melhor era concordar,
declarando que a sua opinião era por força verdadeira.
— Não lhe parece? disse ele. Contudo, não
sendo eu forte no hebraico, desejava consultar alguém que me dissesse se o
texto original está bem traduzido na Vulgata, e se a expressão bíblica é essa
ou outra diferente. Liquidado este ponto, escreverei um livro. Afiança-me que
não sabe hebraico?
— Não sei sequer o alfabeto.
— Nesse caso há de perdoar.
Dizendo isto, ergueu-se, fez-me uma cortesia
e deu um passo para a porta. Ali parou e voltou-se.
— Esquecia-me dizer-lhe o meu nome; devia de
ser a primeira coisa. Chamo-me Damasceno Rodrigues, moro há três anos aqui em
cima, onde estou às suas ordens. Viva!
Não esperou que lhe dissesse o meu nome;
curvou-se e saiu. Imaginem facilmente como fiquei; a vontade de rir foi o
primeiro efeito; o segundo foi uma mistura de pena, receio e curiosidade. No
dia seguinte, disse ao pajem que tirasse informações acerca de Damasceno
Rodrigues. Tirou-as, e o que liquidei delas foi que o meu vizinho morava aí
havia três anos, como dissera; que era um velho médico, sem clínica; que vivia
pacificamente, saindo apenas para ir comer a uma casa de pasto da vizinhança ou
ler duas horas na biblioteca pública; enfim, que no bairro ninguém o tinha por
doido, mas que algumas velhas o supunham ligado ao diabo. Esta crença,
comparada com a ideia que o homem tinha a respeito do Canhoto, dava bem para
uma anedota romântica, que eu podia escrever logo depois que voltasse a São
Paulo; tal foi o motivo que me levou a visitá-lo alguns dias depois.
O segundo andar era antes um sótão puxado à
rua; compunha-se de uma sala, uma alcova e pouco mais. Subi. Achei-o na sala,
estirado em uma rede, a olhar para o teto. Tudo ali era tão velho e alquebrado
como ele; três cadeiras incompletas, uma cômoda, um aparador, uma mesa, alguns
farrapos de um tapete, ligados por meia dúzia de fios, tais eram as alfaias da
casa de Damasceno Rodrigues. As janelas, que eram duas, adornavam-se com umas
cortinas de chita amarela, rotas a espaços. Sobre a cômoda e a mesa havia
alguns objetos disparatados; por exemplo, um busto de Hipócrates ao pé de um
bule de louça, três ou quatro bolos, meio pote de rapé, lenços e jornais. No
chão também havia jornais e livros espalhados. Era ali o asilo do vizinho
misterioso.
Achei-o, como lhes disse, estirado na rede, a
olhar para o teto. Não me sentiu entrar; mas eu falei-lhe e ele ergueu um pouco
a cabeça.
— Quem é? disse ele.
— Eu.
— O senhor?
— Seu vizinho de baixo.
— Ah! disse ele erguendo-se; pode entrar.
— Não se incomode; vinha apenas pagar-lhe a
visita.
Damasceno tinha-se levantado; e das cadeiras
ofereceu-me a melhor, isto é, a que não tinha costas, porque das outras duas,
uma estava exausta de palhinha e a outra possuía três pés somente.
O riso de Damasceno era pior que a seriedade;
sério, dava ares de caveira; rindo, havia nele um gesto diabólico; a tudo
resiste porém ambição do escritor juvenil. Eu queria uma novela, e estava
disposto a conversar com o diabo em pessoa. Para dizer alguma coisa, falei-lhe
na passagem de Jonas.
— Descobriu alguma coisa? perguntei-lhe.
— Nada, tornou ele, mas cuida que pensei mais
em semelhante assunto?
— Supunha.
— Qual! No dia seguinte deixei-o de lado.
— Entretanto, creio que era importante
decidir se realmente o nome de Canhoto dado ao diabo...
Damasceno interrompeu-me com uma risadinha
sardônica e gelada que me tapou a boca. Não tive ânimo de continuar e
faltava-me assunto para entretê-lo. Ele, entretanto, meteu as mãos na algibeira
das calças e começou a andar de um para outro lado, ora cabisbaixo e
silencioso, ora olhando para o teto e murmurando alguma coisa que eu não podia
perceber. Havia no rosto daquele homem, além da velhice precoce, uma expressão
de tristeza e amargura que os olhos não podiam contemplar impunemente. Ao mesmo
tempo era tão extraordinária a figura e tão singulares os costumes dele, que a
gente tinha prazer em o conversar e atrair, quando menos por sair um pouco da
vulgaridade dos outros homens.
Damasceno passeou cerca de oito minutos, sem
me dizer palavra. Ao cabo deles, parou defronte de mim.
— Mancebo, disse ele, quais são as suas ideias
a respeito da lua?
— Poucas... algumas notícias apenas.
— Sei, disse ele desdenhosamente; o que anda
nos compêndios. Pífia ciência é a dos compêndios! O que eu lhe pergunto...
— Adivinho.
— Diga.
— Quer saber se também suponho que o nosso
satélite seja habitado?
— Qual! são devaneios, são conjecturas... A
lua, meu rico vizinho, não existe, a lua é uma hipótese, uma ilusão dos
sentidos, um simples produto da retina dos nossos olhos. É isto que a ciência
ainda não disse; é isto o que convém proclamar ao mundo. Em certos dias do mês,
o olho humano padece uma contração nervosa que produz o fenômeno lunar. Nessas
ocasiões, ele supõe que vê no espaço um círculo redondo, branco e luminoso; o
círculo está nos próprios olhos do homem.
— Pode ser.
— Nem é outra coisa.
— Donde se conclui que todos somos lunáticos,
aventurei eu galhofeiramente.
— Talvez, redarguiu, ele, rindo muito.
Depois de rir, caiu na rede; as pernas, que
andavam à larga nas calças, aliás estreitas, cruzavam-se à maneira oriental, e
ele ficou sentado defronte de mim.
— Lunáticos! repetiu ele.
— Dada a sua teoria, expliquei eu.
— Teoria de lunático?
— Perdão.
Já me não ouvia; com os dedos no ar fazia
figuras extravagantes, retas, curvas, ângulos e triângulos, rindo à toa, com o
riso pálido e sem expressão dos mentecaptos. Não havia dúvida; era uma alma sem
consciência. Arrependi-me de alguma coisa que disse menos pensada, e procurei
ao mesmo tempo um meio de sair dali sem o irritar. Não me foi difícil; três
vezes me despedi, sem que ele me respondesse; saí sem objeção.
Chegando ao meu aposento, senti alguma coisa
semelhante ao prazer de um homem que foge de um perigo ou a um incidente
desagradável. Efetivamente a conversa de um homem sem juízo não era segura. Eu
cuidava ter diante de mim um espírito original; saía-me um louco; o interesse
diminuía ou mudava de natureza. Determinei acabar ali as minhas relações com
Damasceno.
Durante quinze dias encontrei-o duas vezes, na
escada; cumprimentou-me e falou-me como se tivera intactas todas as molas do
cérebro. Queixou-se-me apenas de alguma dor de cabeça e palpitações do coração.
— Temo que isto vá a acabar, disse ele a
segunda vez.
— Não diga isso!
— Verá; estou à beira da eternidade; vou dar
o salto mortal.
Não alimentei a conversa e saí. Nessa noite
contou-me o pajem que Damasceno Rodrigues me procurara com muitas instâncias
dizendo que desejava confiar-me um segredo. Era provavelmente alguma nova
fantasia semelhante à de Jonas e à da lua, e eu não queria animar os desvarios
de um pobre velho. Não lhe mandei dizer que estava em casa nem o procurei. Alta
noite, e estando a ler, ouvi um gemido no andar de cima. Subi devagarinho,
colei o ouvido à porta da sala de Damasceno, mas nada mais ouvi.
Soube no dia seguinte que Damasceno adoecera.
Fui vê-lo pela volta do meio-dia. Como ele nunca fechava a porta, não foi
preciso incomodá-lo, para lá entrar. Achei-o deitado na cama, com os olhos
cerrados e os braços estendidos ao longo do corpo e por fora da coberta. Abriu
os olhos, e sorriu ao ver-me.
— Que tem? perguntei.
— Uma opressão no peito.
— Tomou alguma coisa?
— Que me fizesse mal?
— Não; algum remédio.
— Não tomei nada.
— Bem; é preciso ver o que isso é; vou mandar
vir um médico.
Damasceno tinha os olhos cravados na parede;
não me respondeu. Ia sair, para dar ordens ao meu criado, quando vi o enfermo
sentar-se na cama, e olhando para a parede que lhe ficava ao lado dos pés,
clamar aflito:
— Não! ainda não! Vai-te! Depois, daqui a um
ano!... a dois... a três... Vai-te, Lucinda! Deixa-me!
Corri a Damasceno, falei-lhe, apalpei-lhe a
testa, que estava quente, e obriguei-o a deitar-se. Uma vez deitado, ficou
arquejante, a olhar para a sala, sem querer dirigir os olhos para os pés da
cama.
— O que é que sente? perguntei.
Não disse nada; talvez me não ouvisse. Saí
para mandar chamar um médico, e voltei ao quarto do enfermo. Estava dormindo. O
médico veio, examinou-o, interrogou-o, receitou enfim alguma coisa, que
imediatamente mandei preparar na mais próxima botica. Mandei a uma casa da
vizinhança arranjar caldos e galinha; finalmente dispus-me a não sair de casa
nesse dia.
Não contava com o amor; duas linhas escritas
em uma folha de papel bordado, como se usava no meu tempo, vieram mudar a
resolução em que eu assentara. Saí, depois de fazer muitas recomendações ao
criado e prometendo voltar cedo. Às oito horas da noite achava-me em casa; fui
ter logo com o doente. Achei-o sossegado.
— Entre, entre, meu amigo, disse ele;
deixe-me chamar-lhe assim, porque não tenho ninguém mais a quem dê esse doce
nome.
— Está melhor?
— Estou; mas são melhoras passageiras.
— Não diga isso.
— São. Isso há de acabar cedo. Sabe o que é a
morte?
— Imagino.
— Não sabe. A morte é um verme, de duas
espécies, conforme se introduz no corpo ou na alma. Mata em ambos os casos. Em
mim não penetrou no corpo; o corpo geme porque a doença reflete nele; mas o
verme está na alma. Nela é que eu o sinto a roer todos os dias.
— Pois matemos o verme, disse eu,
apresentando-lhe uma colher do remédio.
Damasceno olhou para o remédio e para mim, e
sorriu, com uma expressão de tranquilo ceticismo.
— Pobre moço! disse ele, depois de alguns
instantes de silêncio.
— Vamos!
— Logo mais, amanhã, ou depois que eu morrer.
Talvez ainda possa fazer algum benefício ao meu cadáver. A alma não bebe água.
Insisti, mas foi baldado. Damasceno resistiu
intrepidamente. Quando as minhas instâncias lhe pareceram excessivas começou a
irritar-se, e eu, receoso de algum novo delírio, proveniente da exacerbação,
cedi; fui ter com o criado que me referiu haver Damasceno tomado apenas uma
colher do remédio e um caldo. Voltei ao quarto, achei-o tranquilo.
A luz do quarto era pouca, e esta
circunstância, ligada ao espetáculo da doença e às feições do pobre velho
alienado, não menos que às recordações que já me prendiam a ele, tornara a situação
por extremo penosa. Sentei-me ao pé da cama e tomei-lhe o pulso; batia
apressado; a testa estava quente. Ele deixou que eu fizesse todos esses exames
sem dizer nada. Tinha os olhos no teto e parecia alheio de todo à minha pessoa
e à situação. Pouco depois chegou o médico, soube da resistência do enfermo em
continuar a tomar o remédio, examinou-o, fez um gesto de desânimo, e ao sair
disse-me que o homem estava perdido.
A perspectiva não era para mim agradável. Não
podia razoavelmente desampará-lo e tinha talvez de assistir à sua morte naquela
noite. Chamei o criado e escrevi um bilhete a dois colegas de São Paulo,
residentes na Corte, pedindo-lhes que viessem passar a noite comigo. O criado
saiu e eu sentei-me outra vez ao pé da cama.
No fim de alguns minutos, vi que Damasceno se
agitava. Perguntei-lhe o que tinha.
— Nada, respondeu ele, mudo de posição. Que
horas são?
— Nove e um quarto.
— E o senhor pretende passar a noite comigo?
— Naturalmente.
O rosto do enfermo iluminou-se.
— Boa alma! exclamou ele.
Depois procurou a minha mão e teve-a presa
entre as suas algum tempo, olhando para mim com uma expressão de agradecimento,
que lhe parecia tornar bela a fisionomia seca e dura.
— Que lhe fiz eu para merecer tanta
dedicação? perguntou ele ao cabo de alguns minutos de silêncio.
— Não falemos disso.
Damasceno calou-se.
— Que idade tem?
— Vinte e dois anos.
— Feliz! feliz!
Calou-se outra vez e pareceu concentrar-se de
novo. Pensei que iria dormir, mas ele voltou-se para mim dizendo:
— Quero pagar-lhe os seus benefícios.
— Pagará depois.
— Não; há de ser já.
Ergueu o corpo, apoiando o cotovelo na cama,
pegou-me na mão e cravou em mim os olhos, acesos de uma luz repentina e única.
— Mancebo, disse ele, com a voz cava; não
olhe nunca para a mulher do seu próximo.
— Sossegue, disse eu.
— Sobretudo não a obrigue a que ela olhe para
o senhor. Comprará por esse preço a paz de sua vida toda.
A gravidade com que ele proferiu estas
palavras excluía toda a ideia de loucura. A própria fisionomia parecia revelar
o regresso da consciência. Olhei para ele algum tempo sem responder, nem ousar
pedir-lhe explicação. Damasceno fitou o ar com expressão melancólica, abanou a
cabeça três vezes e suspirou. Depois a cabeça caiu sobre o ombro, e ele ficou
algum tempo quieto. Ouvindo o sino das dez horas, abriu os olhos e voltou-se
para mim.
— Por quê se não vai deitar?
— Não tenho sono.
— Perder uma noite por causa de um
desconhecido!
— Não se preocupe comigo; descanse, que é
melhor.
Damasceno meteu a mão debaixo do travesseiro,
como procurando alguma coisa. Era uma chave. Deu-ma.
— Abra-me a gavetinha da cômoda, a do lado da
rua.
— E depois?
— Tire de lá uma caixinha.
A caixinha era de couro e teria um palmo de
comprimento. Quando lha levei, ele pô-la sobre a cama e olhou mudo para ela.
Depois, tocou em uma pequena mola; a caixa abriu-se, e ele tirou de dentro um
pequeno maço de papéis.
— Se eu morrer, disse ele, queime isto.
— Feche tudo, é melhor.
— Não é preciso. O que aí está é um segredo,
mas eu não quero morrer sem lho revelar. Não lhe disse há pouco que não
consentisse nunca em olhar ou ser olhado pela mulher de seu próximo? Pois bem;
saberá o resto.
A curiosidade pendurou-se-me dos olhos e,
apesar da pouca luz da alcova, é possível que ele reparasse nisto, porque vi-o
sorrir com uma expressão maliciosa e discreta.
— São papéis de família, continuou Damasceno;
coisas que só a mim interessam. Há aqui, porém, uma coisa que o senhor pode ver
desde já.
Dizendo isto, destacou do maço de papéis uma
miniatura e deu-ma pedindo que a visse. Aproximei-me da luz e vi uma formosa
cabeça de mulher, e os mais expressivos olhos que jamais contemplei na minha
vida. Ao restituir a miniatura reparei que ele a desviou apressadamente dos
olhos metendo-a logo, com a mão trêmula, entre os papéis.
— Viu-a?
— Vi.
— Não me diga nada do que lhe parece. Imagino
qual será a sua impressão. Calcule qual seria a minha há quinze anos, diante do
original. Ela tinha vinte anos; e eu vinte e cinco...
Damasceno interrompeu-se; arrependia-se
talvez; e eu não ousava, em tal situação, mostrar-me indiscreto e curioso. Ele
entretanto atava o maço de papéis e a miniatura com um cadarço velho, e
entregou-me tudo.
— Guarde. Jura que queimará isso?
— Juro.
Guardei no bolso o maço enquanto ele,
reclinando o corpo, ficou tranquilo. Durante cinco minutos nada disse; começou
a murmurar palavras sem sentido, com esgares próprios de louco. Esta
circunstância chamou-me à realidade. Não seriam os papéis e o retrato coisas
sem valor, a que ele em seu desvario atribuía tamanha importância? Damasceno
falou de novo.
— Guardou?
— Guardei.
— Deixe ver.
— Está aqui, disse-lhe eu, mostrando o
embrulho.
— Está bem.
E depois de uma pausa:
— Eu era moço, ela moça; ambos inocentes e
puros. Sabe o que nos matou? Um olhar.
— Um olhar?
— Era no interior da Bahia. Lucinda casara-se
na capital com o Dr. Adr... Não importa o nome; era médico como eu, mas rico e
dado a estudos de botânica e mineralogia. Andava por Jeremoabo naquele tempo.
Eu encontrei-o num engenho e travei relações com ele. A mulher era linda como o
senhor viu aí. Ele era sábio, taciturno e ciumento. Havia nela tanta modéstia e
recato — talvez medo — que o ciúme dele podia dormir com as portas abertas. Mas
não era assim; o marido era cauteloso e suspeitoso; ameaçava-a e fazia-a
padecer. Eu percebi isso, e a compaixão apoderou-se de mim. A compaixão é um
sentimento pérfido; abstenha-se dele ou combata-o. Quem sabe se a que sente
agora por mim não lhe dará mau resultado?
Estremeci ouvindo esta última palavra. Ele
parou um instante e continuou:
— Lucinda não me olhava nunca. Era medo, era
talvez intimação do marido. Se me falava alguma vez era secamente e por
monossílabos. Meu coração deixou-se ir da compaixão ao amor pelo mais natural
dos declives, amor silencioso, cauto, sem esperança nem repercussão. Um dia, em
que a vi mais triste que de costume, atrevi-me a perguntar-lhe se padecia. Não
sei que tom havia em minha voz, o certo é que Lucinda estremeceu, e levantou os
olhos para mim. Cruzaram-se com os meus, mas disseram nesse único minuto — que
digo? nesse único instante, toda a devastação de nossas almas; corando, ela
abaixou os seus, gesto de modéstia, que era a confirmação de seu crime; eu
deixei-me estar a contemplá-la silenciosamente. No meio dessa sonolência moral
em que nos achávamos, uma voz atroou e nos chamou à realidade da vida. Ao mesmo
tempo achou-se defronte de nós a figura do marido. Nunca vi mais terrível
expressão em rosto humano! A cólera fazia dele uma Medusa. Lucinda caiu
prostrada e sem sentidos. Eu, confuso, não me atrevia a explicar nem a pedir
explicações. Ele olhou para mim e para ela. Sucedera à primeira manifestação
silenciosa da cólera uma coisa mais apagada e mais terrível, uma resolução fria
e quieta. Com um gesto despediu-me; quis falar, ele impôs silêncio com os
olhos. Quase a sair voltei e, apesar da oposição, expus-lhe toda a
singularidade de seu procedimento. Ouviu-me calado. Vendo que nada alcançava e
não querendo que sobre a infeliz pairasse a menor suspeita, nem que ela
padecesse sem outro motivo, mais grave, expus-lhe francamente os meus
sentimentos em relação a ele e a ela, a afeição que Lucinda me inspirara,
protestando com todas as forças pela inteira dignidade da infeliz. Riu-se, e
não me disse nada. Despedi-me e saí...
Estas recordações pareciam abater o enfermo.
A voz, ao chegar àquela palavra, era fraca e rouca; ele fez uma longa pausa,
cobrindo os olhos com as mãos ocas e transparentes. Alguns minutos depois
continuou:
— Passaram-se algumas semanas. Um dia, levado
por necessidade de ofício, fui a Jeremoabo, pensando em Lucinda e um pouco
receoso de algum sucesso desagradável. Lucinda havia morrido; e a pessoa que
deu esta notícia benzeu-se supersticiosamente e não revelou mais nada, apesar
das minhas instâncias. Que teria havido? A ideia de que o marido a houvesse
assassinado, apoderou-se de meu espírito; mas eu não ousava formular a
pergunta. Indagando mais, ouvi de uns que ela cometera suicídio, de outros que
desaparecera; enfim alguns criam que estava apenas doente às portas da morte.
Esta diversidade de notícias era claro indício de que alguma coisa grave se
passava ou estava passando. Fui ter à propriedade do marido, resoluto a saber
tudo e a salvar a vida da inocente, se fosse possível...
Damasceno interrompeu-se de novo. Estava
cansado e opresso. Pedi-lhe que suspendesse por algum tempo a narração e
guardasse o fim para o dia seguinte, apesar da curiosidade que me picava
interiormente. Ao mesmo tempo admirava a perfeita lucidez com que ele me
referia aquelas coisas, a comoção da palavra, que nada tinha do vago e
desalinhado da palavra dos loucos. Era aquele mesmo o homem que me consultara
acerca de Jonas e me expusera uma teoria nova acerca da lua? Enquanto em meu
espírito resolvia esta dúvida, Damasceno agitava-se no leito, como buscando
melhor cômodo. A vela estava a extinguir-se, acendi outra e fui até à janela
ansioso pelo criado e os dois amigos a quem escrevera. A rua estava deserta;
apenas ao longe se ouvia o passo de um ou outro transeunte. Voltei ao quarto.
Damasceno estava então sentado na cama, um pouco reclinado sobre os
travesseiros.
— Não tenha medo, disse ele, venha ouvir o
resto, que é pouco, mas instrutivo. Fui ter com o médico. Logo que soube que eu
o procurara veio receber-me contente. Disse-lhe francamente o que ouvira dizer
a respeito da mulher, as opiniões e versões diferentes, a necessidade que havia
de instruir o povo da verdade e retirar de sobre ele alguma suspeita terrível.
Ouviu-me calado. Logo que acabei, disse-me que eu fizera bem em ir vê-lo; que
Lucinda estava viva, mas podia morrer no dia seguinte; que, depois de cogitar
na punição que daria ao olhar da moça resolvera castigar-lhe simplesmente os
olhos... Não entendi nada; tinha as pernas trêmulas e o coração batia-me
apressado. Não o acompanharia decerto, se ele, apertando-me o pulso com a mão
de ferro, me não arrastasse até uma sala interior... Ali chegando... vi... oh!
É horrível! vi, sobre uma cama, o corpo imóvel de Lucinda, que gemia de modo a
cortar o coração. “Vê, disse ele, só lhe castiguei os olhos”. O espetáculo que
se me revelou então, nunca, oh! nunca mais o esquecerei! Os olhos da pobre moça
tinham desaparecido; ele os vazara, na véspera, com um ferro em brasa... Recuei
espavorido. O médico apertou-me os pulsos clamando com toda a raiva concentrada
em seu coração: “Os olhos delinquiram, os olhos pagaram!”
A cabeça do enfermo rolou sobre os
travesseiros, enquanto eu, aterrado do que ouvia e da expressão de sincero
horror e aparente veracidade com que ele falava, olhei em volta de mim como
procurando fugir. Damasceno ficou longo tempo arquejante.
De repente, dando um estremeção ergueu a
cabeça e olhou para a parede que ficava do lado inferior da cama:
— Vai-te! exclamou ele aflito. Vai-te! ainda
não!... Olhe!... Olhe! lá está ela! lá está!... O dedo magro e trêmulo apontava
alguma coisa no ar, enquanto os olhos, naturalmente fixos, resumiam todo o
terror que é possível conter a alma humana. Insensivelmente olhei para o lugar
que ele indicava... Olhei; e podem crer que ainda hoje não esqueci o que ali se
passou. De pé, junto à parede, vi uma mulher lívida, a mesma do retrato, com os
cabelos soltos, e os olhos... Os olhos, esses eram duas cavidades vazias e
ensanguentadas.
Naquela meia luz da alcova, e no alto de uma
casa sem gente, a semelhante hora, entre um louco e uma estranha aparição,
confesso que senti esvairem-se-me as forças e quase a razão. Batia-me o queixo,
as pernas tremiam-me, tanto eu ficara gelado e atônito. Não sei o que se passou
mais; não posso dizer sequer que tempo durou aquilo, porque os olhos se me
apagaram também, e perdi de todo os sentidos.
Quando dei acordo de mim, estava no meu
quarto, deitado, tendo a meu lado os dois amigos que mandara chamar. Ambos
procuraram desviar-me do espírito a lembrança do que se passara no quarto de
Damasceno; precaução ociosa, porque de nada me lembrava então e o abalo fora
tamanho que o passado como que desaparecera. Passei uma noite cruel, entre a
agitação e o abatimento. Sobre a madrugada dormi.
Acordei com sol alto. Pude então recordar a
cena da véspera, e só a recordação me fazia tiritar e gelar a alma. Quis ir ver
o doente porque, apesar dos sucessos anteriores, interessava-me o pobre velho
condenado a uma triste visão perpétua.
— É tarde! disseram-me.
— Por quê?
— O doente morreu.
Senti que uma gota me brotava dos olhos, foi
a única lágrima que ele obteve dos homens.
Meus colegas referiram-me que a morte
sucedera ao romper da manhã, estando presente um deles e o criado. Damasceno
morreu a falar das mais desencontradas coisas: de guerras, de meteoros e de São
Tomás de Aquino. Seu último gesto foi para abraçar o sol, que dizia estar
diante dele. Morreu enfim ou, antes, restituiu-se à eternidade, segundo a
expressão do meu colega, a cujos olhos o doente parecera um esqueleto que
visitara por algum tempo a terra.
Não pude assistir ao enterro; estava abatido
e doente; mas um dos meus amigos foi até o cemitério. Com um deles fui dormir
aquela e as noites seguintes, não podendo passá-las debaixo do mesmo teto em
que se dera a terrível aparição. A justiça arrecadou o que pertencia a
Damasceno Rodrigues; ele vivia do aluguel de duas casinhas e de algumas
apólices, que se lhe encontraram. Não tinha herdeiros.
Só muitos dias depois atrevi-me a ver de novo
o retrato da mulher que ele me dera. Ainda assim não foi sem terror, e
arrependi-me de o ter feito, porque toda a cena se me reproduziu logo ante os
olhos. Era miraculosamente bela a mártir de Jeremoabo; eu compreendia, não só a
loucura de Damasceno, mas também a ferocidade do esposo.
O desembargador fez pausa, no meio do geral
silêncio de constrangimento que sua narração produzira. Vasconcelos foi o
primeiro que falou:
— Não podemos duvidar que o senhor visse a
figura dessa mulher, disse ele; mas como explicar o fenômeno?
— A dificuldade é maior do que pensa, acudiu
o desembargador. O episódio teve um epílogo.
— Ah!
— Quando referi a aparição a algumas pessoas,
ninguém me deu crédito; e os mais polidos atribuíam o caso a um pesadelo.
Evitei expor-me à incredulidade e ao ridículo. Mais tarde, já senhor de mim,
determinei contar a catástrofe de Damasceno em um jornal que escrevíamos na
Academia. Tratando de colher alguma coisa mais acerca do infeliz, vim a saber,
com grande surpresa minha, que ele nunca estivera na Bahia, nem saíra do Sul.
Já então não era só o interesse literário que me inspirava; era a liquidação de
um ponto obscuro e a explicação de um fenômeno. Casara aos vinte e dois anos em
Santa Catarina, de onde só saiu aos trinta e três, não podendo, portanto,
encontrar-se com o original do retrato, aos vinte e cinco, solteiro, em
Jeremoabo; finalmente, a miniatura que me confiara era simplesmente o retrato
de uma sobrinha sua, morta solteira. Não havia dúvida: o episódio que ele me
referira era uma ilusão como a da lua, uma pura ilusão dos sentidos, uma
simples invenção de alienado.
— Mas, sendo assim...
— Sendo assim, como vi eu a mulher sem olhos?
Esta foi a pergunta que fiz a mim mesmo. Que a vi, é certo, tão claramente como
os estou vendo agora. Os mestres da ciência, os observadores da natureza humana
lhe explicarão isso. Como é que Pascal via um abismo ao pé de si? Como é que
Bruto viu um dia a sombra de seu mau gênio?
— O seu caso é talvez mais simples que esses
todos; o desvario do doente foi contagioso, e fez com que o senhor visse o que
ele supunha ver.
— Pois é pena! exclamou o desembargador; a
história de Lucinda era melhor que fosse verdadeira. Que outro rival de Otelo
há aí como esse marido que queimou com um ferro em brasa os mais belos olhos do
mundo, em castigo de haverem fitado outros olhos estranhos? Crê agora em
fantasmas, D. Maria do Céu?
Maria do Céu tinha seus olhos baixos. Quando
o desembargador lhe dirigiu a palavra, estremeceu, ergueu-se. O bacharel fez o
mesmo; mas foi dali a uma janela — talvez tomar ar — talvez refletir a tempo no
risco de vir a interpretar algum dia um hebraísmo das Escrituras.
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