São Filomeno
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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A estação de Cariri, na Estrada
de Ferro de Sobral, no Ceará, é separada da Serra Grande, ou da Ibiapaba, por
dez ou doze léguas de planície, onde se estendem as caatingas uniformes e
pedregosas, ou se levantam, aqui e ali, os outeiros cinzentos, ásperos,
desertos, inteiramente despidos de vegetação. A falta de açudes ou de lagoas e,
mesmo, a pequena fertilidade das terras, tornou ali menos densos, e menos
próximos, os núcleos humanos. As fazendas são mais raras, e os povoados mais
distantes, vendo-se, apenas, quebrando aquela monotonia, de légua em légua,
pequenos grupos de reses, que se disputam, melancólicas, os poucos recursos de
pastagem.
Contrastando com esse panorama
desolador, que a impiedade do sol torna mais triste, surge, porém, de repente,
aos olhos de quem viaja, um ramalhete de verdura, um breve oásis em que as
árvores se aglomeram, e que se conservam permanentemente viçosas, como aqueles
plátanos da Arcádia que protegeram os primeiros amores de Zeus. É ali, nesse
breve refrigério da natureza, que os vaqueiros e transeuntes repousam da
travessia sertaneja, descansando na terra o bordão de caminheiro ou amarrando
nos troncos, à sombra dos juazeiros e das oiticicas, as velhas alimárias
fatigadas.
— Que bosque é este? — perguntei,
um dia; diante dessa paisagem curiosa, à simplicidade do meu guia, um caboclo
serrano, moreno, forte, de alma de criança e pescoço de touro.
— Aqui? Aqui é a mata do Nicolau.
— E esse Nicolau, mora aqui? —
indaguei.
O caboclo sorriu, zombeteiro, e
explicou:
— Não mora, não, senhor; já
morou.
O caso, como era natural,
intrigou-me, e, como eu insistisse, o caboclo sentou-se no alforje, que atirara
ao chão, e contou-me, enquanto almoçava o seu pedaço de queijo fresco, a
maravilhosa história daquela paragem.
— Antes da seca de 77 — começou —
havia neste lugar uma povoação, que vivia, com a graça de Deus, na maior
fartura. Então, não havia estas árvores. Tudo isto era campina; caatinga,
chapadão, como lá fora. A gente era muito ativa e decidida, e, como a terra
fosse boa, não faltava nada. Com a Seca Grande, porém, veio a fome, a miséria,
um horror. O povo, fiado em Deus, e em São Filomeno, padroeiro do lugar, não
queria fugir. O gado morreu. As galinhas morreram. Até bode morreu nesse ano. E
começou a morrer gente. Desenganados de inverno, os moradores reuniram-se uma
noite na capela e resolveram abandonar o povoado. E como não entrassem em
acordo a esse respeito, ficou resolvido que o Nicolau pensasse e deliberasse
por todos.
— E quem era esse Nicolau? —
interrompi.
— Espere lá, já lhe digo. Esse
Nicolau era o sujeito mais respeitado do lugar. Sério como ele só. A mulher, D.
Felismina, era uma santa. Não perdia missa, nem novena, nem ladainha, e ia até
o Cariri, sozinha, para ouvir a Santa Missão. E como era ainda o menos pobre, foi
o Nicolau encarregado de resolver o caso, em nome dos companheiros de desgraça.
Devoto como era, resolveu ele pedir o auxílio de São Filomeno, e meteu-se,
nessa mesma noite, na capela, trancado. Trancou-se, rezou muito, e, lá pela
madrugada, dormiu. E foi aí que se deu o milagre.
— Milagre?
— Sim, senhor. Diz ele que, assim
que pegou no sono, viu São Filomeno descer do altar, e ir crescendo; crescendo,
até que ficou do tamanho de um homem. Depois, aproximou-se dele, e disse:
"Nicolau, o povoado vai ser reduzido a cinza porque, todos nele são
pecadores. As mulheres, então, já estão mais degradadas do que as galinhas do
teu terreiro e do que as cabras do teu serrote!" — "É possível,
senhor?!" — exclamou Nicolau, espantado. O santo não entrou, porém, em explicações,
limitando-se a dizer: — "Olha, Nicolau, o momento não é para vinganças nem
para derramar sangue de cristão. Mas eu vou te dar elementos para apurar a
verdade. Toma, — disse, entregando-lhe dois punhados de caroços; — toma estas
sementes, e distribui, uma a uma, pelos homens casados do povoado, para que
eles plantem à porta da sua casa. Depois, fujam, abandonem o lugar, a capela,
tudo, porque a seca vai continuar ainda por dois anos. Ao fim desse prazo,
voltem, e examinem: na porta daqueles cujas mulheres os tenham traído, estas
sementes terão nascido; e só não nascerão, Nicolau, na porta daquele cuja
mulher nunca o tenha enganado!" O homem cumpriu a recomendação do santo,
distribuiu as sementes pelos companheiros, plantaram, e fugiram para o Amazonas.
Anos depois, voltaram.
— E então?
— E então? Então, encontraram
este bosque verde, viçoso, que nunca mais morreu!
— Nasceu, então, até a semente da
porta do Nicolau?
O caboclo sorriu, e atendeu:
— A porta do Nicolau era ali.
E indicou um pé de jatobá imenso,
largo, robusto, cuja copa dominava o oásis e guiava, de longe, os viajantes que
transitam, hoje, entre a frescura da Serra Grande e a estação da Estrada de
Ferro, nos sertões do Cariri.
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