Rui de Leão
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
CAPÍTULO
1
Consta de crônicas inéditas e secretas que,
ali pelos anos de 1630, vivia no interior do Brasil, um fidalgo chamado Rui de
Leão, varão de boas prendas, extremado na língua do país e aparentado com uma
família tamoia, por ter casado com uma das suas mais belas filhas.
Rui de Leão contava nesse tempo cerca de
quarenta anos. Era robusto, corado, ativo, tão enérgico na alma como no corpo.
Tinha no rosto uns longes de melancolia que se dissipavam muita vez sem que de
todo se extinguissem. Parece que a causa dessa desconhecida tristeza prendia
com infortúnios que sofrera em Portugal, e que o trouxeram ao Brasil em um dos
régios galeões. O certo é que o nosso fidalgo, esquecendo totalmente a grandeza
da sua raça, não duvidou em unir-se pelos laços do matrimônio à filha de um
velho pajé.
Matrimônio, digo eu, unicamente para usar de
um termo corrente; mas a verdade é que não se deve ligar a esta palavra a ideia
cristã que lhe damos. O matrimônio do fidalgo consistiu nas cerimônias indígenas.
Debalde o padre Pires tentou converter a esposa do fidalgo e santificar a
união. Rui de Leão respondia que, de ora em diante, era tamoio, pois que sua
mulher o era, e mandou embora o padre.
Tamoio ficou o nosso fidalgo, menos no traje,
que o conservou civilizado e português. Mas até isso veio a perder daí a poucos
anos, por conselho do pajé que um dia lhe disse:
— Carão branco, tu és a nossa lua, tu és o
nosso irmão, mas só uma coisa te falta. O caju é igual ao caju; o coco é igual
ao coco; só tu carão branco, em vez de seres igual a todos nós, usas de umas
roupas semelhantes às dos nossos inimigos. Por que recusas vestir como nós as
plumas da arara e as cores do jenipapo?
— Pajé, respondeu Rui de Leão, a pele do
carão branco não está afeita ao clima do teu país.
O pajé sorriu, contemplou o céu, inseriu o
dedo mínimo no canto do olho esquerdo e ejaculou resposta filosófica:
— A água bate na pedra e fura a pedra: o
costume reforma a natureza.
Rui de Leão estremeceu ouvindo estas palavras
na boca do pajé; não lhe parecia que ele as tirasse do seu cérebro. O sogro
entristeceu, insistiu no pedido, e Rui de Leão depois de meia hora de
conferência cedeu, e despiu-se dos calções, do gibão e dos sapatos.
Grande foi a festa que seguiu à encarnação do
fidalgo no vestuário do deserto.
Nanavi, sua esposa, fez um esplêndido cocar
de plumas com que ele se adornou garridamente.
Entre Rui de Leão e Júlio César nenhum ponto
de contato havia; mas uma circunstância ligava estes dois grandes homens: eram
ambos calvos como a ocasião.
Imaginem o prazer com que o fidalgo recebeu o
cocar; foi por assim dizer a sua coroa de louros cesariana. Na tarde desse
famoso dia houve reunião na cabana do pajé.
Peitos de papagaio, costeletas de tatu, e
outras viandas saborosas serviram de pasto aos convivas. Quando o sol começou a
ficar triste, todos os convivas entraram a bailar, e bailaram até que o cansaço
e o vinho os prostraram no mais profundo sono.
Extrema era a confiança da tribo no fidalgo,
que logo se habituou aos mais duros exercícios.
Não havia guerra em que não colhesse
imarcescíveis louros, nem matança de vítima a que não levasse um par de
famintos queixos.
A primeira vez que figurou numa destas
festas, era a vítima um galhardo mancebo indígena, que, segundo o uso, fora
engordado previamente por uma velha de seus oitenta janeiros bem puxados.
Convocou-se toda a gente da vizinhança, e Rui
de Leão teve a glória de ser escolhido para dar o golpe mortal no rapaz.
Não se pode descrever a alegria do fidalgo,
quando lhe foi conferida essa honra suprema.
Quando ele apareceu à porta da cabana com a
maça mortífera em punho, e o colar de dentes humanos ao pescoço (ordem
honorífica daqueles povos bárbaros), houve um geral murmúrio de admiração.
A única coisa com que os filhos do deserto
embirraram, foi com o nariz de Rui de Leão, nariz cristianíssimo, verdadeiro
contraste com os narizes da gentilidade.
Rezam as crônicas que esta diferença nasal
esteve a ponto de provocar um levantamento no povo; mas a influência do pajé e
a presença da graciosa Nanavi mataram em flor todo o projeto de insurreição.
Bizarro entrou na praça o nosso Rui de Leão,
e logo se encaminhou para a espécie de palanques onde a vítima devia ser
imolada.
Imediatamente apareceu o condenado tirado por
dois robustos rapazes, e rodeado por uma meia dúzia de velhos tocando nos seus
alguidares, ao passo que uma orquestra executava em tíbias humanas ásperas
variações dos Rossinis do tempo.
Rui de Leão levantou a maça e começou a
atordoar a vítima levemente, no meio dos aplausos da multidão, até que, com um
golpe em cheio, lhe reduziu o crânio a migalhas. Houve então a repartição da
carne da vítima.
Rui de Leão obteve larga parte e é fama que
lhe achou melhor gosto do que outrora nos guisados da civilização.
Tais foram as grandes estreias antropófagas
de Rui de Leão, que nos outros exercícios desbancava ao mais pintado.
Apanhar um papagaio no ar com a flecha ou um
peixe no rio; atirar ao arco com pés e mãos, tudo isso nada era para o nosso
fidalgo.
Como os tamoios eram amigos de vagabundear,
depressa o nosso Rui de Leão perdeu o gosto de fazer ninho, tão pronunciado nos
povos civilizados, e era de ver a presteza com que ele construía e desfazia sua
cabana.
A tudo se afez o esposo de Nanavi. Entretanto
é difícil que um homem civilizado perca de todo a sua tendência propagandista.
Rui de Leão, posto que achasse bons os
costumes do deserto, teve ideia de introduzir neles alguns usos da Europa.
Inúteis foram os seus esforços.
Os índios recusaram toda inovação política ou
social nos seus hábitos.
Rui de Leão ficou com a sua vontade.
Aqui temos pois o nosso herói, na época em
que começa esta história, provada em documentos de incontestável autenticidade.
Justamente no ano de 1630, dois séculos antes
da revolução do Campo da Aclamação, estava Rui de Leão conversando com o pajé,
a respeito das últimas águas, quando Nanavi apareceu à porta da cabana e
comunicou ao esposo a agradável notícia de que dentro de pouco tempo seria pai.
Rui de Leão ardia por ver algum fruto da sua
união com a tamoia.
Levantou-se e exclamou:
— Ainda bem Nanavi: a mangueira não ficou
estéril.
— Não, respondeu a índia.
— Bem-vinda seja essa criança que há de
receber a herança de seu pai e a bênção de seu avô.
— Ai, não! exclamou o pajé. Quando teu filho
aparecer no mundo, já eu estarei morto.
O pajé disse estas palavras com tom
profético.
Rui de Leão estremeceu e involuntariamente
procurou as algibeiras dos calções, que já não usava, para meter-lhe as mãos
dentro. Nanavi entrou a chorar.
O pajé consolou a família com uma dissertação
filosófica a respeito da sorte; comparou a vida à luz fugaz do pirilampo:
comparação de que os poetas começaram a usar mais tarde; e concluiu pedindo
alguma coisa que comer.
Adivinhara o pajé. Dois meses antes de vir à
luz o rebentão da ilustre raça dos Ruis de Leão, o pajé adoeceu gravemente.
Chamaram-se os físicos da localidade. Era um deles o ilustre Urumbeba, profundo
conhecedor do corpo humano e seus achaques; e o outro o não menos ilustre
Mandijbiyuruçu, versado no conhecimento das plantas e raízes.
Entraram estas duas glórias da Academia do
sertão com a gravidade própria do caso.
Examinaram o enfermo, e declararam que era
necessária uma conferência entre si, pelo que se retiraram as mais pessoas.
Quando os dois físicos ficaram sós, rompeu o
silêncio de Urumbeba:
— O rio está crescendo muito, disse ele.
— Já reparei nisso; parece que alagará tudo
como na lua passada.
— Além disso, eu tive um sonho.
— Ah!
— Sonhei que uma cobra imensa desenvolvendo-se
pela terra, enrolara a tribo toda.
— Uma cobra?
Urumbeba percebeu que o colega não atinava
com o sentido do sonho.
— Sim, uma cobra disse Urumbeba e essa cobra
é a imagem do rio que nos cercará a todos nós.
Mandijbiyuruçu ficou muito assustado com o
sonho de Urumbeba, e concordou na necessidade de levantar as tendas.
Conversaram largamente nesse assunto até que,
passada uma hora, um gemido do pajé veio lembrar-lhes o objeto principal da
conferência.
Na opinião de Urumbeba o doente devia tomar
um cozimento de aipim, dado em quatro porções de uma cuia cada uma; ao passo
que Mandijbiyuruçu optou por uma aplicação de inimboia cozida e dada em duas
partes com fomentações de caataia.
Divididas as opiniões, foi necessário que as
discutissem.
Mas o doente piorara, e Rui de Leão veio
dizer aos médicos que o pajé estava mal.
Foram os médicos ter com o enfermo e
conheceram que era chegada a última hora; mas como o pajé padecia muito,
resolveram que o melhor remédio era dar-lhe uma cacetada na cabeça — extrema-unção
daqueles povos incultos.
O pajé compreendeu a situação e pediu para
falar particularmente ao genro.
Quando se acharam sós, disse o pajé:
— Quero dar-te um presente, o melhor presente
que um mortal pode dar a outro, porque o recebi eu mesmo das mãos de Tupã.
Rui de Leão arregalou os olhos.
— Eu tenho ainda vida até o sol que vem.
— Quando vier a noite sairemos ao terreiro;
quero ir contigo a um lugar secreto.
Prometeu Rui de Leão acudir ao convite do
pajé. Efetivamente, quando veio a noite, saiu o pajé encostado ao genro, e a
seis ou sete passos da cabana, mandou o pajé que Rui de Leão cavasse certo
montículo de terra. Cavou o fidalgo, e não tardou que aparecesse um vaso
hermeticamente tapado.
— Isto, disse o pajé, é um segredo que me
acompanha sempre. Quando me mudo de um lugar para outro, levo o vaso comigo e
enterro-o atrás da cabana.
Rui de Leão contemplava o vaso, sem poder
adivinhar o que continha.
Veio em auxílio dele o pajé.
— Era uma noite em que eu, não podendo
dormir, fui sentar-me à beira do mar contemplando as estrelas. Estava ali já
havia muito tempo, quando me apareceu um vulto cheio de luz e me disse: “Pajé,
queres que eu te dê a imortalidade?” “Quero, respondi eu, beijando a terra.”
“Toma este vaso; aqui tens um licor que te dará a imortalidade; bebe-o quando
quiseres, serás imortal.”
Rui de Leão teve um movimento generoso.
— Ah! disse ele, bebe depressa.
O pajé empurrou levemente o genro.
— Não! se eu quisesse ser imortal, não o
teria já bebido? Aceitei o licor com alegria e guardei-o para beber mais tarde.
Profundos desgostos me amarguraram a vida; não quero ser imortal. Tu sim; és
feliz; podes ser imortal. Dou-to; é para ti. Mas agora enterra o vaso; ninguém
deve saber disto.
Rui de Leão enterrou o vaso.
A noite estava escura; uma coruja piou em
cima de uma árvore; o pio da coruja e o murmurar do rio eram os únicos sons que
se ouviam. Quando Rui de Leão se levantou, viu que o pajé tremia, segurou-o
para não cair. Era tarde; o pajé expirou.
Grande foi a dor de Nanavi, quando soube da
morte do pai. A cerimônia fúnebre impressionou a todos, porque a palavra do
pajé era respeitada e adorada, e todos sabiam que se perdia nele uma glória da
raça tamoia.
CAPÍTULO
2
Rui de Leão voltou ao lugar onde se achava
enterrado o vaso do elixir. Desenterrou-o, tirou-lhe a tampa e examinou
atentamente o conteúdo. Era um líquido amarelo, com seus reflexos azuis quando
recebia os raios do sol.
A porção não era muita, nem para o fim
proposto era preciso mais.
O cheiro do líquido era uma mistura de
almíscar e canela.
O esposo de Nanavi enterrou o vaso e
sentou-se sobre uma pedra que lhe ficava ao pé.
Não se pode saber que tempo gastou Rui de
Leão nas profundas reflexões em que se mergulhou o seu espírito. Apenas sabemos
que, quando Rui de Leão levantou a cabeça, tinha um sorriso nos lábios.
— Ilusão! exclamou ele; isto é impossível.
Por que motivo não vi logo que o pajé era vítima de um sonho, ou desejava impor
a sua privança com Tupã? Imortalidade! só Deus poderia dá-la, mas esse não a dá
com certeza: a verdade é esta. Eia, Rui de Leão, evoca o teu bom senso; não
sejas tamoio em tudo. O pajé podia iludir aos outros, mas a mim!...
Levantou-se, deu dois passos e parou
contemplando o lugar onde estava enterrado o precioso vaso.
— E, contudo, disse ele, era tão bom possuir
a imortalidade! Ver correr os séculos uns após e outros; ver passar as
gerações; o nascimento e a queda dos impérios, e ficar sobranceiro a tudo;
zombar do tempo e dos homens!... Oh! seria uma grande ventura, e se realmente o
elixir do pajé...
Ouviu uns passos. Era Nanavi.
— Pensas no teu país? perguntou a indígena.
— O meu país é o teu, Nanavi, a minha pátria
é o teu amor. Que teria eu lá mais do que tenho aqui? O sol é o mesmo; pisa-se
a mesma terra; respira-se o mesmo ar. Vive-se a mesma vida; morre-se da mesma
morte.
Nanavi lançou os braços à roda do pescoço de
Rui de Leão; este beijou-a ternamente na testa.
— Andas pensativo... que tens?
— Nada; saudades do pajé.
— Pobre pai!
Rui de Leão sentou-se sobre uma pedra.
— Era um grande homem teu pai, disse ele.
— Era um sábio.
— Sim, era.
— Ninguém melhor do que ele, continuou
Nanavi, sabia ler no céu, nem combinar as raízes da terra.
Rui estremeceu.
— Que tens?
— Nada. Teu pai conhecia as virtudes das
raízes?
— Quem as não conhece entre os filhos de
Tupã?
— Tens razão.
— Meu pai era mais sábio que todos os outros;
mas não o dizia a ninguém.
Rui de Leão ficou pensativo.
— Quem sabe, dizia ele consigo, quem sabe se
o pajé não combinou este elixir por meios secretos, e modestamente o atribuiu a
origem divina?
Não sem admirar a modéstia do pajé, Rui de
Leão demorou-se nesta ideia e concluiu que, em todo o caso, não sendo provável
que o sogro lhe quisesse mal, a bebida se não lhe desse a imortalidade, também
não daria a morte.
Dois meses depois veio à luz um amável
pimpolho, fruto da união do fidalgo com a indígena.
Segundo o uso, Rui de Leão meteu-se na cama,
tomou os caldos, recebeu as visitas, ao passo que a mulher foi cuidar dos
arranjos da casa. Urumbeba foi visitar assiduamente a Rui, não porque ele
carecesse dos seus serviços médicos, mas porque era conversador e alegre nas
horas de bom humor.
Numa das ocasiões, disse-lhe que havia
chegado àquela região um padre da nação de Rui, homem apessoado e de falas de
mel.
— Onde está? perguntou Rui.
— Anda perto; foi visto na foz do rio.
Daí a dias apareceu efetivamente o padre
Norberto, que andava em missão. Disseram-lhe que havia ali um homem seu
compatriota; foi vê-lo. Eram conhecidos.
O frade Norberto falou de Portugal e da
família de Rui. Disse-lhe que os seus parentes se achavam mortos com exceção de
um primo que fora meter uma lança em África.
— Pouco me importa saber, frade Norberto, do
que vai lá pela minha família, nem se são vivos ou mortos. Hoje a minha família
é Nanavi e meu filho.
Justamente nessa ocasião acordou o
pequerrucho; o frade Norberto viu o fruto do amor da indígena com o europeu; e
disse ao fidalgo.
— Vamos batizá-lo?
— Não.
— Pois quê! não quer?
— Não.
— Meu Deus! continuou o frade Norberto, será
isso possível! dir-se-á que estes gentios nascidos e criados sem a luz da fé,
são mais fáceis de converter que V. Mercê nascido e criado no seio da Igreja.
O argumento não tinha resposta; por isso
mesmo o fidalgo tentou sofismá-lo. O digno frade ouviu-o silencioso.
Quando o fidalgo acabou disse o frade:
— Peço a Deus que não faça cair sobre V.
Mercê a justa pena deste ato... E saiu.
Logo nessa noite, teve Rui de Leão uma
intensa febre; no dia seguinte piorou. Nenhuma raiz, nenhuma folha pôde
abrandar o mal do pobre Rui. Esgotou-se a farmacopeia do deserto; a doença
tinha todos os sinais de ser mortal. Três dias durou esta luta entre a natureza
e a ciência. Ao cabo desse tempo resolveu-se que, se o último remédio não
produzisse efeito, devia recorrer-se ao medicamento eleitoral do cacete.
Rui não sabia que já estava condenado, mas
suspeitava-o bem, porque o remédio que lhe deram como definitivo nenhum efeito
produzira. Viu a morte diante de si; lembrou-se das palavras do frade Norberto;
contemplou o filho, apenas nascido, a mulher ainda no viço dos anos. Todas
estas coisas juntas fizeram com que Rui reunisse todas as suas forças (que bem
poucas eram), e tentasse de noite ir ao elixir da imortalidade.
Fê-lo a muito custo; logo à porta da cabana
teve um desmaio. Conseguiu levantar-se sem despertar ninguém. Caminhou
lentamente para o montículo onde estava enterrado o vaso; cavou a terra com as
unhas; arrancou o vaso e bebeu parte do conteúdo.
No dia seguinte amanheceu melhor. Os parentes
de Nanavi, que já preparavam os ventres para o condigno enterro do estrangeiro
ilustre, ficaram agradavelmente surpresos quando viram a rápida melhora que
naturalmente atribuíram ao remédio que tomara.
Restabeleceu-se Rui de Leão da moléstia, e
grande alegria houve por isso, pois o fidalgo era realmente a luz daquela gente
e o melhor conselho dos casos difíceis.
Certeza de que estava imortal, não a tinha
ainda Rui de Leão; mas certeza de que o elixir curasse febres teimosas, essa
adquiriu logo. Esperemos o resto, dizia ele consigo.
E esperou.
Não tardou que se admirasse toda a gente
daquelas paragens da robustez crescente de Rui de Leão; era o segundo efeito do
elixir. Multiplicaram-se-lhe as forças e a atividade, coisa que sumamente
agradava a Nanavi, pois naquele tempo e entre aqueles povos, a glória não
estava em agitar um junco parisiense, mas em brandir uma pesada maça de guerra.
Com os anos cresceram as esperanças de Rui. O
tempo nenhuma ação tinha nele; não só os poucos cabelos que tinha continuaram a
ficar pretos, senão que lhe nasceram outros, e dentro em pouco tempo tinha o
homem uma verdadeira floresta na cabeça, a qual floresta, atenta à falta de
pentes no sertão, era uma verdadeira floresta virgem. Nenhuma ruga lhe afeiou o
rosto: nenhum abalo lhe fraqueou o pulso.
Tinha Rui sessenta anos e era o mesmo homem
dos quarenta. Não eram isto indícios da imortalidade? Rui adquiriu a plena
certeza de que tinha vencido a morte.
Não aconteceu o mesmo à pobre Nanavi, que
andando um dia a colher frutas no mato, recebeu em cima da cabeça um tronco que
a levou desta para melhor. Ficou a criança, rapazote de largas esperanças,
único fruto dos amores de Rui e Nanavi.
Como o frade Norberto continuasse em missão,
encontrou-o um dia o nosso neo-tamoio e travou conversa com ele.
Sem descobrir o segredo do pajé, disse-lhe
que tinha meios de fazer uma conversão em larga escala durante longos
decorreres de anos; que para isso ajudaria com dedicação os frades da companhia
não somente com as luzes que tinha da língua do Brasil como também pela
autoridade moral que adquirira entre os índios; finalmente que por prova de que
servia sinceramente a igreja, dava a batizar o filho de Nanavi.
— De boa razão é vosso procedimento Sr. Rui
de Leão e eu estou que a fé colherá grande proveito com o auxílio de vossa
pessoa. Suspeitar de vossa sinceridade fora além de injustiça, erro grosseiro,
porquanto entrais no corpo da Igreja passando a porta preciosa e precedendo ao
inocente filho que nos dais para batizar e iniciar na fé. Onde está a mãe?
— A mãe morreu.
— Culpa vossa, Sr. Rui de Leão; perdeu-se uma
alma pela obstinação com que Vossa Majestade se houve...
— Estou arrependido, padre Norberto, disse
Rui ajoelhando aos pés do frade.
Foi batizado o pequeno e iniciado nos preceitos
da fé cristã, ao passo que o pai incumbido de arrebanhar a gentilidade, saiu
pelo sertão acompanhado pelo frade Norberto e outro.
Longo tempo andou nessa missão. Colheu a
Igreja preciosos frutos dela e quando voltaram todos três para asilo dos frades
houve grande e preciosa festa em honra de todos e principalmente de Rui. Os
frades asseveraram à porfia que a piedade do fidalgo fora exemplar e os seus
esforços incessantes.
Notaram todos, porém, que se os frades
voltaram alquebrados pelas fadigas e perigos, Rui estava tão sadio e robusto
como fora. Maior admiração houve quando o fidalgo confessou ter mais de
sessenta anos.
— Não admira, respondeu o fidalgo rindo; eu
adquiri o privilégio desta gente que vive geralmente até os cem anos.
Ficou o nosso Rui no convento acompanhando os
frades. Uma noite veio do sertão uma horda de índios, e atacou o asilo
monástico com desusado vigor. A defesa foi quase toda nula contra os ferozes
índios. Após uma luta porfiada, Rui conseguiu fazer ouvir a sua voz e acalmar os
ânimos. Os índios foram embora deixando dois cadáveres dos seus. Dos frades
tinham morrido dois às envenenadas flechas do inimigo. A todos admirou, porém,
que Rui recebesse uma flecha nas costas, que a arrancasse, e não morresse como
acontecera aos outros.
— Que mistério é esse irmão? perguntou-lhe um
frade.
— Nenhum, respondeu Rui; provavelmente a
flecha não vinha ervada.
Correram os anos; os frades estavam
substituídos à proporção que iam morrendo; e assim se chegou aos anos de 1730,
sem que Rui perdesse sequer um dos traços de sua vigorosa pessoa.
Toda a gente ficava pasmada diante de
semelhante prodígio. Prodígio havia de certo porque de cem anos por cima é
impossível não ter já todos os sinais da velhice; porém não... nunca Rui deixou
de ter a mesma cara.
Foi em 1730 que um oficial régio tendo sabido
da maravilhosa mocidade de Rui, ofereceu-se para levá-lo à corte de Lisboa a
fim de apresentá-lo ao rei que era então D. João V. Partiram.
CAPÍTULO
3
É incrível que nenhuma história publicada
daquele tempo mencione a chegada deste prodigioso sujeito à corte de Lisboa e
dos casos que aí houve.
Rui não foi apresentado ao rei, não se sabe
bem por que razão; mas andou por toda a parte; figurou nos solares da fidalguia
como nas casas dos mesteirais; espantou damas, condes e burgueses; falou de
coisas acontecidas um século antes; causou em suma o mesmo assombro que o
célebre conde de São Germano em Paris, ainda que este misterioso personagem não
possuísse o dom da imortalidade achado pelo pajé.
Sabido é que às mulheres agrada o misterioso
e o raro. Uma D. Beatriz, formosíssima fidalga daquele tempo, veio a
enamorar-se do nosso Rui que também se enamorou dela. Como a moça estivesse
para casar com D. Álvaro, marquês de P... saiu este paladino a campo e desafiou
Rui por um combate singular.
Não era homem de recusar duelo o nosso Rui;
aceitou o reto do fidalgo, que o não era mais que ele, e bateram-se à espada
nas imediações de Lisboa.
Infelizmente o uso da flecha desabituara o
viúvo de Nanavi ao uso da espada. O marquês era esperto jogador desta arma. O
combate era desigual. Todavia, não aceitou Rui o conselho dos que lhe diziam
que fizesse um estudo prévio.
Durou o duelo uns vinte minutos de angústia
para os padrinhos de Rui; ao cabo desse tempo, D. Álvaro varou o nosso homem de
meio a meio. Correram todos ao ferido que imediatamente caiu no chão lavado em
sangue.
— Está morto! exclamaram todos.
— Ainda não, disse Rui; não estou morto.
E com a própria mão estancou o sangue,
enquanto um físico, adrede convidado, lhe administrou os primeiros socorros.
— Morre daqui a duas horas, disse tristemente
o cirurgião aos padrinhos de Rui.
Duas horas depois, Rui aparecia nas ruas de
Lisboa, com grande espanto do povo que ouvira falar no duelo e nos resultados
dele.
— Sabem que mais? dizia o cirurgião, aquele
homem é o diabo.
Naqueles tempos de fé uma descoberta desta
ordem equivalia ao exílio perpétuo do homem. Rui viu fecharem-se-lhe as portas
dos palácios, as hospedarias, as casas todas enfim; e compreendeu que estava
abandonado.
Ajuntou algum dinheiro que tinha, guardou na
algibeira um frasco contendo o resto do elixir de imortalidade, e partiu para
Espanha.
Ali deixou de dizer quem era, nem a idade que
tinha; viveu desconhecido. Mas não deixou de lhe ser proveitoso e incógnito.
Jogou a sorte nas casas em que isso se fazia e ganhou somas fabulosas.
— Que farei agora? perguntava Rui a si mesmo.
Partiu para a Alemanha e dispôs-se a estudar.
Com o dinheiro que tinha ganho nas tavolagens de Castela, pôde o nosso célebre
Rui de Leão ocorrer às despesas do estudo.
Ao cabo de longos anos, era ele doutor em
teologia, filosofia, matemática, direito, medicina, profundo antiquário,
extremado nas ciências físicas e químicas; em suma o doutor dos doutores, a
expressão mais alta da ciência humana. Aprendeu o latim, o grego, o árabe, o
armênio, o turco, o hebraico. Traduziu para várias línguas as obras de Santo
Agostinho e São Tomás; fundou uma academia arqueológica e um liceu de
filosofia; comentou os atos dos apóstolos, escreveu uma história dos mártires,
fez descobertas arqueológicas em Roma, anunciou dois cometas e espantou toda a
Europa científica não menos pela profundidade e variedade dos seus
conhecimentos, como pelo prodigioso número de acontecimentos antigos a que
presenciara.
Graças à riqueza que facilmente adquiriu,
casou o nosso homem com uma fidalga de Espanha cinco vezes marquesa e rica de
mais a mais. Durou pouco o casamento; a mulher faleceu dois anos depois, e foi
essa a maior dor de sua vida, posto que a morta lhe deixara uma grande riqueza
nas mãos.
De novo se entregou aos estudos da ciência,
com redobrado ardor. Mas apesar da admiração que o mundo científico lhe votara,
apesar da espécie de infalibilidade que adquirira perante as sociedades e
academias, o nosso Rui entrou a sofrer de um incurável aborrecimento. Tinha
quase dois séculos e a vida já lhe pesava; o mundo não lhe oferecia espetáculo
novo; a ciência perdera o prestígio do princípio: o imortal começou a desejar a
morte.
Mas era tarde.
Como acharia ele a morte?
Rui recorreu ao suicídio; sabia que era um
crime perante Deus e os homens; mas não tinha outro recurso. Achava-se então em
Lisboa, mas como já muitos dos que o conheceram antes tinham morrido, ninguém
viu nele o mesmo Rui de Leão e ele teve o cuidado de trazer nome suposto.
Ali resolveu acabar os seus dias. Foi ao Tejo
e atirou-se à água; em ocasião em que não podia ser socorrido. Sabia nadar, mas
não quis usar do que sabia. Debalde! o corpo voltou à tona e desceu até
esbarrar num galeão, de onde foi visto e pescado.
De outra vez recorreu à faca mas o mais que
conseguiu foi abrir no pescoço uma ferida que se curou rapidamente.
Era impossível morrer.
Imagine quem puder o suplício deste homem
condenado a ser imortal, a ver os mesmos dias, as mesmas comédias — este
Tântalo da morte, ambicionando aquilo que os outros receiam — pedindo ao céu
como a suprema felicidade uma cova para dormir.
A situação é de si tão patética que eu não
preciso lacrimejar o estilo; basta dizer a coisa para que ela seja
compreendida.
Depois de estudar tudo e tudo ver; depois de
passear pelas várias partes do mundo, sem encontrar novidade que lhe divertisse
o ânimo; depois de ser assíduo espectador de tudo quanto pudesse despertar a
curiosidade de um homem enfadado como, por exemplo, o homem de botas de
cortiça, o boneco jogador de xadrez e outros, determinou Rui de Leão voltar ao
Brasil nos princípios deste século ali pelos anos de mil oitocentos e tantos,
estando ainda cá o rei.
Efetivamente aqui aportou no Rio de janeiro o
imortal Rui. A cidade não oferecia então o aspecto que hoje tem. A rua do
Ouvidor não era a via elegante da capital; nem o Rocio estava transformado no
jardim que aí vemos. Eram os belos tempos de Vidigal e seus granadeiros, de
cujas proezas tão habilmente falou o nosso chorado Dr. Manuel de Almeida,
talento como poucos.
Rui tratou de encobrir-se o mais que pôde;
entrou como verdadeiro desconhecido. Contudo a presença de um homem tão sábio e
tão rico, não era coisa que passasse despercebida ao povo nem à corte. Não
tardou que fosse convidado para as melhores casas e os vários fidalgos de
respeito do rei porfiaram em recebê-lo à sua sala. Era parceiro obrigado no whist dos velhos fidalgos, grande par do
minueto, excelente cavaleiro do garfo, em suma a flor da boa roda.
Mas esse recreio durou pouco. No fim de dois
meses voltou Rui de Leão às suas mágoas antigas.
Foi então que lhe aconteceu um caso decisivo
na sua vida.
Entre as damas que mais apreciavam o saber e
os dotes do ilustre Rui, havia uma D. Madalena de Sousa e Pedroiça, criatura
tão notável pela graça do semblante, quanto pelas virtudes fidalgas da vida.
Rui ficara sempre com um grande pendor às mulheres, o que era naturalmente um
corretivo da imortalidade, porquanto ser imortal e aborrecer as mulheres seria
estar no pior de todos os infernos deste mundo e do outro.
Agradou-lhe D. Madalena, mas esta posto que o
apreciasse muito, não lhe aceitou o coração. Coração repelido é o ideal da
pertinácia. Rui multiplicou as suas armas galantes, a ver se colhia a esquiva
dama, e esta sempre isenta, dava de tábua às seduções do namorado.
Durou esta luta cerca de dois anos.
Uma noite, vindo recolher-se para casa o
nosso Rui, surdiu-lhe em frente um sujeito e lhe disse:
— Quer saber por que razão D. Madalena lhe
recusa a mão?
— Quero.
— Ama a outro.
— Impossível.
— É verdade!
O sujeito tinha a cara meio coberta com uma
das abas do capote. Descobriu-se então e Rui pedindo a lanterna ao criado que
tinha com ele, pôde reconhecer a um parente de Madalena.
Passava-se esta cena nos Cajueiros e o nosso
Rui morava perto do Valongo: convidou o parente da moça para acompanhá-lo à
casa.
Quando lá chegaram, tomou palavra o parente
da moça, D. Martim, e disse:
— D. Madalena ama o licenciado Álvares e quer
casar com ele; o pai opõe-se ao casamento e já a ameaçou com o convento. É essa
a razão por que não aceita o seu amor.
— Mas, disse Rui, eu não sei que diabo achou
ela no licenciado...
— Nem eu, mas a verdade é esta.
Rui refletiu na dificuldade de sua posição.
— Deste modo, disse ele, perco o meu tempo...
— Como eu perdi, replicou D. Martim: também
eu a amei, mas nada pude conseguir. O licenciado transtornou-lhe a cabeça. Que
lhe havemos de fazer?
— Dar uma lição ao licenciado.
D. Martim piscou o olho, via-se-lhe no rosto
que ele não vinha para outra coisa.
— Como lhe daremos a lição?
— Como?
— É verdade que ele costuma a falar com a
prima às escondidas...
— A horas mortas?
— Sim. Chega ao portão e ela fala de cima da
janela que dá para o jardim.
— Basta.
— Qual é o seu plano? perguntou D. Martim
arranjando o capote.
— Esganá-lo.
— Mas isso é perigoso; o intendente da
polícia não é de graças.
— Qual intendente! exclamou Rui; pois eu cá
vou consultar intendente para esganar um patife?
Saiu D. Martim exultando de contente, e Rui
deitou-se meditando na vingança que devia tomar do rival.
Na subsequente noite não apareceu Rui de Leão
em casa da família de D. Madalena, e foi esperar o licenciado no sítio indicado
por D. Martim. A noite era escura: e ameaçava temporal. Rui saíra de casa sem
criado nem lampião. Armou-se com uma faca, encostou-se à parede e esperou que
batesse a hora da vingança.
Ao cabo de longo tempo, que é sempre longo
para quem espera, Rui de Leão ouviu passos ao longe na direção do ponto em que
se achava. Ao mesmo tempo abriu-se a janela de Madalena e o vulto da moça
apareceu como Julieta quando esperava Romeu e a escada.
Era a hora suprema.
Coseu-se o doutor dos doutores com a parede e
esperou o feliz rival que se aproximava cautelosamente. Mal o pobre namorado
soltava as primeiras palavras, saltou-lhe acima o fidalgo e enterrou-lhe no
estômago uma comprida faca. O licenciado apenas deu um gemido e tentou murmurar
o nome de Madalena. Caiu. Rui afastou-se rapidamente do teatro do crime.
No dia seguinte de manhã apareceu a polícia,
levantou o cadáver, fez-lhe os exames precisos, e começou as indagações para
ver de onde partia o crime.
A primeira suspeita recaiu sobre o pai de
Madalena cuja oposição ao licenciado era conhecida; mas o pai, vendo contra si
a espada da lei, declarou que talvez fosse antes o crime praticado por um
indivíduo que igualmente pretendia Madalena, homem de boa presença, formado em
várias matérias e conhecido em toda a cidade.
Houve da parte do intendente tão virtuosa
repulsa ao ouvir tão negra suspeita, que o nosso Rui se lha visse, devia
votar-lhe eterna gratidão.
Todavia, como a justiça não podia deixar de
averiguar tudo, mandou-se chamar Rui de Leão, que apenas chegou negou o crime.
Entretanto deu-se-lhe busca em casa, e achou-se-lhe a faca ensanguentada, que
por um incrível descuido Rui esquecera de lavar ou deitar fora. Interrogada a
criadagem, confessou que o amo saíra de casa à noite, sem escudeiro, embuçado
num capote e escondendo alguma coisa.
Todos os indícios eram contra o assassino.
A justiça d’el-rei tomou conta do réu;
abriu-se processo em regra e ao cabo de algum tempo foi condenado Rui de Leão a
morrer de morte natural na forca.
Madalena, que até então estimara a prisão e o
processo do réu, teve pena dele quando soube que ia morrer enforcado.
Não deixara de lembrar-se que a causa daquele
crime era ela. Rui aparecia aos olhos da moça com um aspecto tão interessante
que ela lhe daria a mão de esposa se tanto fosse preciso para livrá-lo da
forca.
Pobre licenciado!...
Marcado o dia para execução, levantou-se no
largo de Moura a forca, e o cortejo saiu da cadeia com o juiz, o padre, o
carrasco e o pregoeiro. Troava a campa à frente, lia o pregoeiro a sentença da
relação em cada esquina, e lá ia o nosso Rui recebendo do sacerdote as
consolações que o carrasco lhe não podia dar.
Grande número de povo enchia o largo da
execução, mas quem pensa o leitor que estava entre os espectadores? D. Martim
mais pálido que a morte, vítima do remorso e da curiosidade, causa indireta do
crime e da desgraça. Queria ele ouvir as últimas palavras do condenado, de que
receava alguma revelação relativa à sua pessoa.
Subiu Rui as escadas da forca, colocou-se em
posição conveniente, abriu a boca para fazer um discurso, mas os tambores
cobriram a voz do orador.
Imediatamente entrou o carrasco nas honrosas
funções que a lei lhe conferia em nome do evangelho, e o corpo de Rui de Leão
ficou pendente da forca.
A pouco e pouco foi saindo o povo aterrado
com o espetáculo; e em todas as boticas e casas de barbeiro da cidade foi
comentado o crime do defunto.
Quando veio a noite foi o carrasco tirar da
forca o cadáver do réu acompanhado do respectivo ajudante. Cortou a corda e o
corpo foi à terra.
— Ai! disse Rui, — atordoado com a queda.
— Que foi? perguntou o carrasco ajudante.
— Não sei; foi um gemido de cão.
Aproximaram-se do corpo; mas qual não foi o
seu espanto? Rui desatava tranquilamente o laço da corda e dizia:
— Levem-me a uma hospedaria que tenho fome.
O carrasco e o ajudante não ouviram mais do
que a palavra, — levem-me; viram o gesto de Rui e deitaram a correr. Toda a
cidade ficou em alarma. Só falava do enforcado que ressuscitara.
— Estava inocente! gritavam uns.
— É um santo! diziam outros.
Entretanto o ex-enforcado procurou
tranquilamente coisa que comesse e cama em que dormisse.
CAPÍTULO
4
O desenleio maravilhoso e misterioso deste
acontecimento assustou o pai de D. Madalena. A superstição foi grande arma em
favor de Rui de Leão, que alguns dias depois ousou apresentar-se em casa da
moça e pedi-la em casamento.
A leitora aplaude já a recusa de Madalena.
Madalena aceitou.
Previamente perdoado do crime cometido, Rui
de Leão casou com Madalena, e confiou que ao menos teria durante alguns anos
uma vida feliz; até que de novo o tomasse o tédio da vida.
Entretanto, D. Martim descontente com o
desenlace do caso, explicou a seu modo a ressurreição do rival.
— Foi naturalmente, dizia ele, a um oficial,
foi naturalmente acordo entre o réu e o carrasco. Deu-lhe este um laço fraco, e
o homem pôde ressuscitar...
— Mas se eu vi o contrário, respondia o
oficial.
— Viu mal...
Jurou D. Martim vingar-se de Rui. Como?
Cogitou um meio seguro; estreitou relações
com o marido de Madalena. Era para ele grandíssima dor e profundíssimo despeito
ver o rival ao lado daquela a quem ele amava apesar de tudo. Mas o ciúme
suporta tudo.
Quando julgou que as relações estivessem
firmadas entre ambos e bania do ânimo de Rui qualquer suspeita contra ele, D.
Martim tratou de comprar um dos criados do rival e a poder de patacões
conseguiu que o criado se prestasse ao crime.
Costumava Rui tomar uma xícara de chá uma
hora depois do jantar. Uma tarde, achando-se todos três na sala, achou-se Rui
afrontado; tinha comido muito e a digestão era laboriosa.
— Que sentes mais? perguntou Madalena.
— Nada mais. Eu já sei qual é o remédio;
mande vir o chá mais cedo.
Deu ordem, e o criado trouxe a xícara de chá.
D. Martim olhou para o criado, e este fez-lhe sinal de que o veneno estava dentro.
Quem olhasse então para D. Martim veria a
expressão de triunfo que lhe transluzia no olho.
— Enfim, disse ele consigo.
Rui tomou tranquilamente o chá, conversou
pouco, estendeu-se na cadeira de couro e adormeceu.
D. Martim ficou a sós com Madalena.
— Madalena! disse ele.
— Que ousadia é essa? disse a moça.
— Ousadia, não. Ouça-me, eu ainda a amo...
— D. Martim não me parece de cavalheiro o seu
proceder.
— Por quê? perguntou D. Martim com um sorriso
infernal.
— Não vê quem ali está?
— Ali?
— Sim.
— Ali está um cadáver.
— Um cadáver? perguntou a moça ficando
pálida.
— Quase. Daqui a dez minutos é um cadáver.
— Explique-se, D. Martim, por quem é!
— Ah! pensa que eu não teria a minha
vingança?
D. Martim estava fora de si; ajoelhou-se aos
pés de Madalena; esta fugiu para o interior.
No entanto, acordou Rui, bocejou, levantou-se
e deu com os olhos em D. Martim, que estava no fundo da sala mais branco que
uma toalha.
— Que tem você? D. Martim...
— Eu nada... disse D. Martim sem tirar os
olhos do rival.
— Pois, senhor, continuou este, o chá
precipitou a digestão, sinto-me melhor. Onde está Madalena?
A moça ouvira a voz do marido e correu à
sala.
D. Martim esperava a todo momento ver cair
fulminado o nosso fidalgo e já se arrependera das palavras que dissera nesse
sentido a Madalena.
Esta perguntou ao marido como se achava; e
ele respondeu que muito melhor.
— Proponho que joguemos alguma coisa para
passar a noite que promete ser fria. O primo fica... não?
— Eu... não... mas...
— Fica decerto.
Jogaram até tarde; tomaram chá; e Rui não
morreu como o outro esperava.
Foi naturalmente o patife do criado, pensou
D. Martim.
Mas o
criado estava igualmente espantado. Olhava para D. Martim, e não sabia explicar
aquele mistério.
Quando D. Martim de lá saiu, foi acompanhado
pelo cúmplice que lhe jurou ter posto no chá a dose de veneno convencionada.
— Mas então que foi aquilo?
— Eu sei lá, senhor... Creio que um tiro...
— E prometes ajudar-me na empresa?...
— Prometo.
— Bem; iremos ao tiro.
Prepararam emboscada ao invencível Rui de
Leão; deu-se o caso na Rua do Piolho, em noite de tormenta, estando a rua mais
deserta que um Saara. O criado armou-se com o arcabuz do crime; e desfechou o
tiro na cara de Rui. A vítima soltou um espirro e continuou tranquilamente a
viagem.
O criado desmaiou.
Rui compreendia que D. Martim lhe preparava
golpes sobre golpes; mas confiado no elixir do pajé, mostrava-se indiferente às
emboscadas e ao veneno do rival.
A única questão seria a infidelidade da
mulher.
Mas esta era um modelo de amor e constância.
Amava-o com ardor apesar de ir já longe a lua de mel.
Por isso mesmo durou pouco a felicidade.
Madalena faleceu de uma pneumonia aguda.
— Quê! exclamou o pobre imortal; pois eu hei
de ver morrer todos aqueles a quem amo e hei de arrastar este castigo de vida?
Enterrou-se a mulher de Rui com a pompa digna
da riqueza do marido. Aborrecido por estar no lugar onde lhe morrera a esposa,
Rui determinou partir para a Europa e assim o fez em 1825 depois de declarar a
sua intenção de ficar brasileiro.
D. Martim foi para Angola, onde morreu de
desgostos.
Correram os anos.
Em 1835 aportou outra vez ao Rio de janeiro o
invencível Rui de Leão, disposto a não viajar mais e a esperar aqui o dia do
juízo final. Achou o espírito público agitado com a política. Não havia loja em
que se não conversava da coisa pública; e os nomes tais e tais eram citados
como modelos do estadista, conforme pertenciam a esta ou aquela cor política.
É difícil estar entre políticos muito tempo sem
adquirir a febre que os devora. Além disso, Rui de Leão não tinha ensaiado esse
gênero de distração. Nem a ciência, nem o amor, nem o jogo, lhe apresentavam
pasto suficiente ao seu espírito sedento de ocupação.
Para se calcular bem a situação do nosso herói
basta ter em lembrança o tédio de um dia em que não temos nada que fazer.
Multipliquemos esse dia pela eternidade e aí teremos a tortura moral deste
verídico sujeito escolhido pelo destino para ser o exemplo único de uma
aborrecida imortalidade.
A política correspondeu aos desejos de Rui de
Leão.
Desde que entrou em comunicação com os chefes
de um dos partidos, viu logo que aquilo era turbilhão para uns trinta ou
quarenta anos.
— Ao menos, disse ele consigo, passarei este
tempo mais satisfeito até que descubra outro meio que me substitua a política.
Fundou logo uma gazeta denominada A Alvorada cujo programa era vago como a
hora que o título fazia lembrar. Um dos períodos mais práticos era este:
Reunir todos os elementos de prosperidade em
favor da liberdade, consubstanciar a ordem nas aspirações do país, transformar
o torpor em atividade, eis o programa da imprensa independente e é o meu.
Os leitores gostaram deste programa; mas o
jornal adverso, que se denominara O Grito da Nação atacou os princípios da
Alvorada com esta simples pergunta:
Onde é que o colega viu que a liberdade
prática, única, resoluta, firme, invencível pode, abraçando elementos
contrários, ostentar princípios, ideias, melhoramentos, que, simbolizando a
honra de uma época, destruam a poeira de um passado recente?
Tal foi o começo de uma polêmica estrondosa
que ainda hoje existiria se a morte igual para os homens e as gazetas não
tivesse destruído o Grito e a Alvorada, dentro de alguns meses.
Os talentos de jornalista de nosso Rui de
Leão foram apreciados por amigos e adversários: efetivamente, Rui tinha a
capacidade especial que se exige na imprensa política. O Grito da Nação andou
atrapalhado durante a existência da Alvorada
que dias pouco lhe sobreviveu.
O partido de Rui esperou a primeira ocasião
para apresentá-lo candidato por uma das províncias, o que aconteceu pouco tempo
antes da morte da gazeta. A candidatura foi aceita pelos caudilhos da
localidade. A Alvorada mencionou o
fato como a aurora de uma grande vida política, pois o digno Rui de Leão era,
nem mais nem menos, um homem de Plutarco.
— Quem é este Rui de Leão? perguntaram uns.
— Não sei, respondiam outros, mas parece que
é um grande homem.
— Parece que sim.
Onde quer que se falasse de Rui,
manifestavam-se logo grandes esperanças em favor dele.
Se ele passava, era apontado como um grande
político, um Pitt, um Pombal.
De maneira que, antes de entrar no
parlamento, já o nosso Rui de Leão tinha a reputação feita. Se morresse logo,
morria em cheiro de santidade.
Mas como morreria o imortal? Foi eleito.
Os leitores me dispensarão de dizer o que
houve quando a pessoa deste ilustre doutor penetrou no recinto da Cadeia Velha.
Cumprimentado e abraçado por amigos, olhado com desconfiança por adversários,
Rui de Leão era o homem da situação, a esfinge que daria a palavra do futuro.
Quando algum deputado orava não deixava de
aludir delicadamente ao redator da Alvorada,
como um dos homens mais eminentes do país e da câmara.
Numerosos apoiados acolhiam estas palavras de
justiça.
Durante uns trinta dias esteve calado o novo
representante da nação, com grave desgosto dos seus amigos, que atribuíam
grande poder de palavra a um homem tão insigne no uso da pena.
Os adversários que tinham a mesma opinião
estimaram aquele silêncio e só desejavam que continuasse do mesmo modo.
Um dia, porém, no meio do grande barulho da assembleia,
pediu a palavra o nosso Rui de Leão. Fez-se imediatamente profundo silêncio; os
deputados correram a fazer grupo à volta do orador; o povo das galerias
debruçou-se mais para não perder nada, e o próprio presidente, pondo a mão em
forma de concha na orelha, preparou-se para ouvir a estreia parlamentar do
redator da Alvorada.
Modesto e moderado em suas aspirações, Rui de
Leão começou assim o seu discurso:
Sr. presidente. Das pessoas que o país mandou
representá-lo, eu sou, sem dúvida, o mais humilde e o menos competente (Não
apoiados). Vejo, Sr. presidente, que me rodeiam as capacidades do país não só
entre os meus amigos como entre os meus adversários (Muito bem!) porque eu,
senhores, quando contemplo os talentos, apreço as opiniões (Sensação). Nada
valho, senhores...
Muitas vozes: Não apoiado!
O Sr. X. — Vale muito...
O orador: — Nada valho, mas sinto em mim que
posso ajudar o edifício da grandeza nacional, não como o arquiteto que traça o
plano, mas como o servente que carrega a pedra (Aplausos).
Para construir esse edifício, senhores, que
tem feito o governo? Onde estão os seus planos? Que materiais possui? Com que
operários conta? Não aparece nada disto. Agarrados às pastas, os nobres
ministros só apreciam o poder pelos prazeres que ele dá, prazeres frívolos e
indignos de cidadãos de um grande país, em vez de se consagrarem todos, e a
todas as horas, e com todas as forças, ao desenvolvimento da herança que
receberam, senhores, e que deverão passar aos nossos filhos!
Aqui houve uma tal explosão de protestos e
aplausos, que o orador foi obrigado a calar-se algum tempo, e o presidente a
agitar a campainha, verdadeira inutilidade no parlamento, porque, quando todos
gritam, a campainha tem pouca força moral para acalmar a tempestade.
Serenada aquela, depois de trocados alguns
ditos mais ou menos enérgicos, continuou o nosso orador, e daí em diante não
houve cena igual, porque a eloquência de Rui de Leão arrebatava amigos e
adversários, e todos estavam pendentes dos lábios do novo Demóstenes.
Não resisto à tentação de transcrever das
memórias secretas (porque os anais não trazem os discursos de Rui), a peroração
do famoso discurso.
Ei-la:
Tenho vivido muito, senhores, e conheço
profundamente os homens e as coisas. A ciência dos Estados não é uma vã
palavra; estudei-as nas obras dos homens públicos e no estudo pessoal dos
acontecimentos. Aquele grande e imortal Catão é para mim o tipo da probidade
política, o modelo dos partidários, a consolação das causas vencidas, a lição
dos povos, o espantalho dos déspotas, o espelho dos cidadãos (bravo!), a glória
da humanidade, o emblema do passado que desmoronou, a esperança do futuro que
se levanta! (Aplausos.)
Dir-me-eis, talvez, senhores, que eu devia
imitar aquele grande homem recorrendo à morte? (Não! não!) Não o faço, não, não
poderia fazê-lo! De mais a causa da verdade estará assim perdida? Eu vejo
sentados nas cadeiras ministeriais homens que traem os seus deveres e são
capazes de vender a consciência por um prato de lentilhas (Sussurros!); mas,
senhores, não nos iludamos; por ser Catão, é preciso resistir ao despotismo de
César, e onde está César? Alguém conhece entre os seus adversários um César?
(Ouçam! ouçam!)
Descansemos, pois; não recorramos a um
exemplo que seria funesto, porque a causa da verdade está salva, desde que
houver entre nós e a oposição, a força e a união necessárias para vencer estes
carregadores de pastas! (Aplausos).
Senhores, vou concluir. Os hebreus
atravessaram o deserto guiados por uma coluna de fogo. Somos os hebreus da
política; a coluna de fogo é a verdade; ali nas cadeiras ministeriais está a
terra de promissão. Emboquemos as trombetas da franqueza, avancemos com as
tropas da vontade, empunhemos a espada da decisão, e aqueles cairão; aqueles
homens serão cadáveres políticos porque, senhores, pouco dista de um moribundo
a um cadáver.
Esta monumental peroração, que os professores
deviam dar aos seus alunos de retórica, causou imensa impressão na Câmara.
Os ministros quiseram responder; mas era
impossível. Só havia atenção para o vulto impudente do nosso Rui que, sendo
cumprimentado por grande número de senhores deputados, recebeu no dia seguinte
convite para um jantar que lhe deu a Câmara, sem distinção de partidos.
— Que discurso! dizia um.
— Um monumento!
— É Mirabeau!
— É Cícero!
— Nunca ouvimos tal...
— É o Demóstenes moderno.
— Está fundada a eloquência brasileira.
Tais eram as conversações do povo e da Câmara
acerca do discurso de Rui de Leão.
Ainda no jantar que lhe deram, o ilustre
orador teve ocasião de assombrar a todos com um soberbíssimo speech, no qual,
aludindo à circunstância de estarem ali amigos e adversários, proferiu esta
frase tão imortal como o autor:
“Estou aqui como os mortos no cemitério: a
terra e o jantar nivelam as condições e as opiniões: o estômago é eclético.”
Seria longo enumerar os prodígios de
eloquência do nosso Rui e dizer que serviços importantes prestou ele à causa do
partido. Bastará mencionar que dentro de pouco foi ele constituído chefe do
partido e aclamado o primeiro homem do parlamento.
Mas cedo se aborreceu da posição e da vida
política.
Tendo concluído a legislatura, o nosso homem
declarou que se retirava à vida privada.
Gastaram-se muitas ferraduras e pedras das
ruas em visitas à casa de Rui, a fim de ver se alcançaria que ele desistisse do
intento.
Impossível.
Rui persistiu na intenção de deixar a vida
pública.
— Mas nós!...
— Não desisto do meu plano.
— Por quem é...
— Impossível.
Retirou-se para o norte, e lá se escondeu
arrastando uma vida que lhe era odiosa.
Um belo dia cai a notícia de que rompera a
guerra com o ditador López.
Rui alistou-se como capitão de voluntários e
partiu para o sul. Fez proezas incríveis, colocou-se à frente das balas, queria
a morte a todo custo.
Impossível.
A morte respeitava-o.
Um dia, saindo fora do acampamento, encontrou
um oficial paraguaio.
— Senhor, disse ele, sou inimigo: mate-me.
O paraguaio disparou-lhe um tiro, que lhe não
fez mal nenhum. Acudiu a companhia de Rui e o trouxe para o acampamento.
Desesperado, voltou o homem à corte e aqui
ficou, até que se deu o acontecimento que vou resumir e com o qual se conclui a
história.
Travou Rui conhecimento com um médico
homeopata, Álvares Melo; era excelente conhecedor da ciência e Rui gostava de
conversar sobre medicina.
Um dia conversando em casa de Bernardes disse
Rui ao Doutor Álvares:
— Nunca pude compreender o princípio
homeopático.
— Por quê?
— Acho ele contraditório.
— Não é, disse Álvares; os maiores luminares
da alopatia escreveram máximas que apóiam o princípio homeopático.
— Acho isso um sofisma.
— Não é, e vai ver.
Álvares entrou a explicar detidamente o
sistema homeopático ao amigo; acumulou exemplos; raciocinou com calma e
ciência, pois era homem que sabia o que dizia.
Rui ficou um tanto abalado.
Foi para casa e estudou o sistema homeopático
com o afinco que lhe era peculiar, sempre que queria saber profundamente uma
coisa.
Dentro de pouco estava convencido.
Mas então que disse ele?
— Tupã! és tudo; mas erraste. Fizeste-me
imortal; mas deste ao mundo a homeopatia. Venço-te com as tuas armas. Similia similibus curantur; estás
vencido.
Bebeu o resto do elixir do pajé. No dia
seguinte morreu.
Assim acabou este grande homem, após quase
três séculos de existência, tendo colhido louros na guerra, na ciência e no
parlamento; feliz no jogo e nos amores; mimoso da fortuna; homem, enfim, que
provou praticamente que a morte, longe de ser um mal, é um corretivo necessário
aos aborrecimentos da vida.
Imitemo-lo nas façanhas e no amor ao estudo;
não no desejo de ser imortal; e convencemo-nos de que o melhor elixir de
imortalidade não vale os sete palmos de terra de Caju.
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