Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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CAPÍTULO 1
Naquela
noite de Ano Bom, no bairro da Praia de Fora, a casa de William Fison era a
mais alegre, a mais iluminada, a mais ruidosa. Ao cabo de seis anos de
melancólica viuvez, o velho comerciante britânico tinha afinal casado, e a essa
hora jubilosamente festejava as suas segundas núpcias.
O vasto
edifício, branco; todo torreado, com um aspecto guerreiro e histórico de antigo
castelo feudal, construção saxônia, de uma imaginação medieval, que fora o seu
primeiro proprietário, um alemão, outrora militar, que dali se ausentara com
uma enorme fortuna e cinco babies
louras adoráveis, para a épica Germânia idolatrada, a reluzir sempre, com um
prestígio ideal no seu patriótico e saudoso espírito de cidadão e de soldado — regurgitava de convidados, desde o imenso e rico salão
tapetado até à ampla varanda quadrada, abrindo seis góticas e vastas janelas
sobre o mar. Ao portão, muito largo, de antigo solar, com ambas as folhas de
ferro em ornatos, abertas para trás, agrupavam-se em linha algumas carruagens,
com os cocheiros dormitando às boleias, enquanto pessoas curiosas da
vizinhança, homens e mulheres, aglomeravam-se, de olhos acesos, jorrando em
massa para a escada, cujos degraus de cimento branquejavam à luz, como mármore.
Via-se daí, talhado na vasta, artística porta ogival, um recanto feérico do
salão, todo constelado de fisionomias límpidas e inefáveis, e toaletes
opulentas, que se estadeavam aristocraticamente, como numa corte, em grandes
festas imperiais, ao reverbero vivo dos espelhos de Veneza e às chamas amarelas
dos lustres de prata. Uma estreita varanda, estilo teutônico colonial, corria a
meio do prédio, numa faixa lateral, dando para o grande jardim gradeado, com
flores e maciços de folhagens aromando o ar, malhado aqui e ali de claridades
lácteas, despejando-se das janelas e portas, como placas de luar. Estava cheia
de homens, que cervejavam, de pé, ou estirados sobre cadeiras confortáveis,
numa palração animada, entre as folhas finas dos crótons de vasos e balões
luminosos de papel, pendendo ao beiral, numa longa enfiada colorida, de um
efeito chinês de luas pintadas.
Dentro, nos
maiores apartamentos do Castle,
dançava-se. E, nesse instante, uma banda musical, postada no largo corredor
central, executava vivamente, com uma forte predominância de metais, uma linda
valsa alemã, cujo ritmo, claro e vívido, desenrolava-se languidamente, em
ondulantes espirais. Pares voltejavam, em turbilhão, num chiar contínuo e
arrastado. Uma animação geral, no meio das palestras e dos risos, arrebatava as
almas.
Os convivas
deliciavam-se presos aos encantos da festa e às gentilezas e amabilidades dos
noivos, especialmente de mistress
Fison, que prodigalizava a todos, com uma efervescente graça de brasileira
cultural, os seus sorrisos cariciosos e amáveis. Muito jovem ainda, nos seus
vinte anos primaveris, uns olhos incomparáveis, de uma umidez sensual, negros
como uma ardósia molhada, a adorável criatura, premida fascinadoramente num
magnífico vestido de gorgorão branco, o véu simbólico coroando-a de virginal
neblina, o porte de uma nobreza e elegância reais, atraia todos os olhares,
valsando encantadoramente entre os braços robustos de William.
E lá iam
ambos, arrebatados venturosamente aos compassos da valsa, perdendo-se num
círculo de corpos girantes, onde a cabeça loura dele se destacava entre o
negrume das outras, bela e cor de ouro, numa rutilação astral.
As danças
não pararam um instante, até à madrugada, vibrando entusiasticamente, durante
marcas sucessivas...
Mas,
terminada a lauta ceia das bodas, ruidosos ainda daquela imensa alegria e dos
vinhos, os convivas entraram a despedir-se.
E, dentro em
pouco, Rose-Castle adormeceu, no
silêncio estrelado da noite, que resplandecia.
CAPÍTULO 2
William
Fison era um belo homem, alto, rosado e forte, apesar dos seus sessenta anos.
Nascera na Escócia, em Glasgow. Seu pai, um pequeno industrial, falecera tinha
ele seis anos, e a mãe, como a casa ficasse atrasada com a longa moléstia do
marido, entregara tudo aos credores, e fora habitar com uma irmã no rico
condado de Hampshire. Ele saíra para o Hindustão em companhia de um tio,
coronel do exército, comandante de um regimento em Calcutá. Ali se educara,
seguindo a carreira do mar. Comandara steamers
durante trinta anos, findos os quais, com algumas economias, se fora
estabelecer naquela cidade, que era um dos pontos de escala da linha de vapores
era que ultimamente navegava. A casa era importadora e logo nos primeiros anos
dera-lhe resultados consideráveis. Mudara, então, para aí a família, que
residia nessa época em Maidstone, onde ele aparecia, de tempos a tempos, a
visitá-la. A mulher, porém, sucumbira de um parto, ao cabo de oito anos. Ele,
então, todo de luto, fora levar as filhas à Inglaterra, para a casa de uma
irmã, onde tinha um filho a educar. Mas volvera de novo ao negócio, que
continuamente prosperava.
E,
spleenético, numa desolação, na viuvez esmagante, que o levara logo a
separar-se das filhas que adorava, preso ali aos seus interesses de
comerciante, naquela pequena cidade, onde os divertimentos escasseavam,
tornando irresistível e necessária a vida feliz e aconchegante do lar — entrou a frequentar assiduamente a chácara do Fernando
Braga, um velho amigo negociante que conhecera, primeiro em Londres, depois no
Rio de Janeiro, com uma grande casa comercial. Aí passava ele as noites, até
tarde, muito entretido a conversar e a jogar.
A habitação
do Braga, um vasto e magnífico chalé, na Rua Formosa, estava sempre iluminada e
ruidosa, como em perenes recepções, porque as moças da vizinhança, com as
meninas da casa, todas as noites, reuniam-se ali a chilrar. De sorte que “aquilo era um verdadeiro paraíso”, como dizia o Fison, com o seu áspero
acento britânico.
E, dia a
dia, experimentando uma nova emoção e um novo encanto, no meio daquela
convivência selected, começou a
sentir um certo enternecimento e tocade
por uma das filhas do Fernando, a Helena, uma menina que não tinha ainda quinze
anos, mas cuja beleza e desenvolvimento sadio e florente, enchendo-a toda das
rutilações de um desabrochamento carnal fascinante, lembravam-lhe vivamente as
esplêndidas rosas de cem pétalas, que tanto admirara, havia anos, uma manhã, em
Roma, nos jardins do Palácio Real.
A menina,
por sua vez, estimava muito a William, que a enchia de carinhos e presentes,
retendo-a horas ao piano, para ouvir Mozart e Haydn, e alguns trechos de
Rossini, seus autores prediletos, que lhe amenizavam tanto os spleens. Prendia-a também, outras vezes,
com as suas pitorescas e variadas narrações de viagens, feitas sobriamente e
com humour, principalmente as que se ligavam ao Mediterrâneo, por onde andara
em rapaz, como boy de navios, e as que se referiam às remotas cidades
históricas do Oriente, que conhecia até as baixas regiões do Eufrates, pois
estivera em Alepo, Smirna, Bagdá...
Lia-lhe, em
militas ocasiões, capítulos do seu livro Palestine,
lugar onde residira um ano, estando desembarcado. Ela ouvia-o atentamente,
satisfeita e cheia de curiosidade, no seu misticismo infantil e devoto pela
Terra Santa. E como sabia bem o inglês, que aprendera com o pai, desde
pequenina, ele emprestava-lhe também volumes ilustrados da sua bela obra. The Sea, que merecera em Inglaterra uma
grande estima, ao ser publicada, primeiro, numa importante revista — a Nautical Magazine.
Porque
William Fison era, além de negociante e mareante distinto, um homem inteligente
e erudito, possuindo numerosos trabalhos sobre viagens e um pequeno romance,
feito aos vinte anos, numa primeira paixão amorosa, Terrible Temptation, que produzira um grande escândalo em Calcutá.
O livro, trabalhado à maneira moderna de Balzac, o escritor favorite de William, envolvia uma
história verdadeira em que era protagonista a filha do Vice— Rei das Índias,
uma criatura eteral de lenda, loura e branca, nostálgica e cismadora, visão das
estrofes nevoentas de Ossian, errando, à noite, ao luar, atormentada de amor,
na vaporação dos lagos brumosos...
Estas
diversões tornaram-se queridíssimas de Helena, e, quando o inglês não aparecia,
a ausência dele lhe despertava um vago aborrecimento e saudade: fechava-se,
então, no quarto, a ler, evitando as correrias alegres com as irmãs e as
amigas; ou, sentada ao piano, longo tempo, tocava melancolicamente, umas após
outras, as peças da predileção de William. Mas, tudo isso não ia além de uma
impressão infantil.
As outras,
ao vê-la assim com a “veneta” como
diziam, troçavam-na muito, rindo:
— Olha a tola! apaixonada pelo velho inglês! E como estava
caidinha... Que horror!... Nunca se vira uma coisa assim...
Quando
William chegava, no outro dia, era a primeira a correr ao seu encontro, num
alvoroço e a rir, e, trocando um afetuoso shake-hand,
perguntava:
— Porque não vieste ontem? Porque não vieste? Todos nós
te esperamos...
— Oh! miss Helena —fazia ele desculpando-se — não foi possível, não foi possível...
E tinha uma
grande jovialidade, a larga fisionomia corada menos envelhecida, o olhar muito
vivo e transparente, cheio de um fulgor juvenil, o pescoço forte, o porte mais
rijo.
Conversando,
gorjeando expansiva, a menina ia-o levando para a varanda, onde o Braga e a
mulher o esperavam cordialmente, sentindo o ruído da sua presença amiga.
E assim
decorreram anos.
Um belo dia,
numa alegre manhã de Natal, em Joinville, onde tinham ido passar as festas,
nessa florida e encantadora cidade alemã, o Braga e a esposa foram
surpreendidos por uma carta de William, dando-lhes “as boas festas” e pedindo-lhes a mão da filha, a “beautiful miss Helena”.
Ficaram, a
princípio “abismados”, sem explicação para
aquilo, porquanto o inglês jamais lhes dera a entender semelhante
coisa.
— Era um disparate, um absurdo, uma loucura! pensavam. Naquela idade, e
com filhas já moças, um pedido desses!... “Enlouquecera”, decerto, aquele bom amigo...
Mas,
refletindo depois, longamente, maduramente, pesando os interesses; o futuro da
família, o casal entrou a considerar aquela união magnífica. William Fison era
distintíssimo, e fora o modelo dos maridos. Conheceram-no sempre bom,
extremoso, dedicado, vivendo só para a mulher e os filhos... Depois, e
sobretudo, era um homem inteligente, ilustrado, riquíssimo. Não havia vacilar,
casavam a rapariga...
E, à noite,
reunidos num dos apartamentos que ocupavam no hotel, revelaram tudo à Helena,
lendo-lhe a carta de William. A moça ficou de repente nervosa, trêmula, as mãos
frias, e abraçou-se à mãe, a chorar:
— Que não queria! Com William, não! Estimava-o muito, era verdade, mas não
para marido... Ele era um velho, ela uma menina... Lá era possível! Não! Seria
uma desgraça... Não queria...
A mãe e o
pai retorquiam-lhe afetuosamente, amimando-a:
— Mas é para a tua felicidade, filha! É para a tua
felicidade...
— Não! não! volvia ela, muito de manso, numa recusa insistente,
a voz velada.
Estava
linda, o rosto dolorido, os cabelos negros e espessos desatados, caindo-lhe
pelo dorso esplêndido, como longas crinas ondeadas.
Passado
dias, porém, ao deixar Joinville, moça, já conformada, acedera aos desejos dos
Pais, e o “sim” fora enviado, na véspera, pelo
telégrafo, a William.
CAPÍTULO 3
A casa do
Fison, situada quase no extremo da larga rua de São Sebastião, correndo ao
longo do litoral, e findando num sítio pitoresco e agreste, a Chácara Garcia,
um alto arborizado e encantador de colina, era conhecida em todo lugar por este
nome perfumoso e florido — Rose-Castle. A poética designação
nascera da imensa alegria em que andara o coração ele William, ao estabelecer
ali, pela primeira vez, a família, porquanto terra alguma do mundo jamais
encantara o seu espírito de viajante e de artista, como aquela formosa ilha,
que lhe lembrava saudosamente, sob um clima mais doce, um céu mais plácido e
límpido, pedaços verdes da sua Old
England querida. Era decerto a Escócia, de que tinha as mais doces
recordações infantis.
Desde o seu
estabelecimento em São Sebastião que o sonolento bairro da Praia de Fora
adquirira um aspecto mais civilizado e ruidoso, porque o Castle continuamente festinava, enxameado de moças.
E toda a
vizinhança, contentíssima com a presença dos “novos
estrangeiros”, que eram tão estimáveis, vendo a transformação que
sofrera a casa, outrora melancólica e sombria, sempre inacessível e fechada às
visitas e às festas, abandonada de todos os ruídos, lamentava que o seu
primeiro proprietário, o tal “alemão rico”, não se tivesse há mais tempo ausentado.
Assim Rose-Castle despertara em todos uma
grande simpatia.
Quando a
primeira esposa de William morreu, e as filhas embarcaram para a Inglaterra, o
prédio recaiu no seu recolhimento monástico; mas o seu nome e as numerosas soirées tão festivas jamais foram
esquecidos. E, agora, com o segundo casamento do inglês, voltava de novo à
animação antiga.
As primeiras
semanas do noivado corriam para William venturosamente, numa grande serenidade
e doçura. O amantíssimo bretão deliciava-se em suas novas núpcias, como se
volvera de repente aos bons tempos de moço.
Todas as
tardes, no seu cab, arrancado por um
belo cavalo d’Alter, recolhia ao seu Castle, jubiloso e risonho, numa alegria
expansiva e ruidosa de namorado. Helena, com os seus lindos olhos de ônix,
radiando amorosamente nas órbitas, entre os longos cílios de veludo, alta e
tentadora, no seu vestido claro, vinha sempre esperá-lo ao portão. E ali mesmo
abraçavam-se, beijavam-se. Depois, enlaçados, a palrar, subiam lentamente a
escada.
William ia
então fizer a sua toilette de casa:
de verão, uma camisa de seda alva e um costume de flanela branca, muito largo;
de inverno, um terno de cheviot
azul-marinho, com jaquetão fechado.
E, enquanto
se servia o jantar, sabiam ambos de mãos dadas, percorrendo lentamente, em
íntima palestra adorável, as áleas luminosas do jardim. Desciam até ao mar.
Era em pleno
verão. Sempre, a essa hora, o céu, no horizonte, além, estava cheio de grandes
claridades inflamadas; as montanhas da Serra do Mar, desenhavam-se ao longe,
numa linha azulada e nostálgica, fazendo um relevo nítido sobre o tecido
esmaiado da atmosfera; a planura azul do mar, ampla, polida e calma, na
ausência do Nordeste, que abrandava docemente pela tarde, depois de soprar rijo
toda a manhã, tinha uma larga fulguração de broquel antigo; canoas, de
encontro, à costa, já em sombra, dos lados da terra firme, pareciam
imobilizadas, com as velas brancas quadradas a bater contra o mastro, no seio
da calmaria; o Victory, o belíssimo cutter de recreio de William, que
fundeava junto às janelas do Castle,
a alguns metros da praia, mantinha o casco esguio e claro: aproado à corrente,
o mastro alto e fino, com a carangueja erguida e a grande retranca repousada,
fincando o tope agudo no Azul, onde tremulava, invariavelmente, murcho e
pendido, na saudade dos ventos, um galhardete encarnado; ao Norte e ao Sul,
dois pequenos promontórios de rochas altas, sobrepostas como dolmens, marcavam
as pontas da formosa enseada, talhada em perfeito crescente; no canal, de um e
de outro lado, o bordado pitoresco da costa alvejante; e, distante, além, numa
ilha empinada, o grande farol do Arvoredo, com a sua alta cúpula de vidro,
chamejando ao poente, como um zimbório de catedral...
Quase sempre,
após o jantar, no esplêndido salão iluminado, fazia-se música. Helena ia para o
piano, e, muito lânguida, na frouxidão morna do seu temperamento sensual, um
pouco melancólica, com uma vaga nostalgia, uma saudade inexplicável de alguém,
ou de alguma coisa, que não podia bem determinar, começava a correr as mãos
sobre o teclado, e o Minuete de
Mozart, que ela amava, erguia-se, sonoro e profundo, num ritmo lento e
balançado.
Estirado
sobre um longo divan damasquinado,
que ficava ao pé, docemente embalado naquela estranha melodia, de uma fina
tristeza e sentimentalidade, William olhava-a, idealizado, numa ternura e num
embevecimento. E seus olhos azuis-claros, muito transparentes, emprestando-lhe
à face uma frescura macia e moça, não se desprendiam, um instante só, da linha
esplêndida e cinzelada do seu busto magnífico, evocando o perfil sonhador de
uma castelã feudal.
Mas, sem
olhar quase, como esquecida e indiferente, a esposa prosseguia, tocando sempre — o límpido olhar docemente fulgindo, como um cetim negro molhado, ora pairando
sobre as extensas pautas da música, ora sobre o estuque do teto alvejado.
Parecia imersa em recordações e devaneios ideais, que os sons borbulhando
docemente, evocavam, com uma plangência gemedora de música de Schubert nas cordas
trêmulas de uma harpa. A formosíssima cabeça, acompanhando as notas tristes,
com um movimento lento, que lhe balançada o delicado dorso, tinha um ar
dulcíssimo e cismador, batida vivamente pelas chamas das tampadas belgas,
envolvendo-a num clarão suave.
Quando o
piano cessava, numa modulação expirante e grave, o inglês erguia-se no divan, as pupilas de safira clara muito
úmidas de emoção:
— Beautiful! Beautiful!
Então, ela
voltava-se, como surpreendida, na banquinha rodante, sorrindo cheia de esplendor.
Quase
sempre, quando não apareciam visitas, recolhiam-se cedo, às 10 horas. As
quintas-feiras e domingos, porém, nas costumadas recepções da província, a casa
inteira resplandecia, alegre e festival, até à meia-noite.
E William,
agora, sentia a existência correr-lhe radiante e feliz, como no seu primeiro
noivado.
CAPÍTULO 4
A felicidade
do Fison tornou-se, porém, excepcional, como ele próprio dizia, quando a irmã
lhe noticiou, de Londres, que o filho, o seu adorado Child, concluirá brilhantemente o curso de engenharia. E, daí a
dias, foi um imenso alvoroço em Rose-Castle,
ao receber-se um telegrama do rapaz, comunicando que partia para o Brasil.
Desde esse
instante, Helena não parava, numa atividade infinita, dando ordens e mandando
aprontar os quartos para a recepção do enteado.
No dia da
chegada, à tarde, ela e o marido, mal entrara o paquete, foram recebê-lo a
bordo, numa grande alegria.
À noite o
jantar foi magnífico, na larga varanda gótica, com a presença das
interessantes, cunhadas de William, das Moelmanns, umas adoráveis meninas
alemãs da vizinhança e das louras filhas de James Crowley, duas miss gracious, que andavam muito a
cavalo, o que as tornara conhecidas na cidade pelas Amazonas. Depois houve uma soirée animadíssima, que durou até à
madrugada.
O velho
William sentia-se agora mais feliz que nunca, com a presença do seu querido Child, o belo continuador do seu nome e
da sua raça. Havia seis anos que o não via, desde a sua última estada em
Inglaterra, quando fora levar as filhas. George era ainda mocinho, imberbe e
juvenil nos seus dezesseis anos robustos, com uma cara rosada e fresca de
rapariga. Nenhuma mudança fizera, além do grande crescimento e da esplêndida
enformatura torácica, do tempo em que, muito tenro, aos doze anos, o enviara
para Londres. Agora estava um homem, completamente enrijado e viril, possante e
hercúleo, como um hussard,
excedendo-lhe a altura da cabeça! E como viera lindo, com o seu largo rosto
rosado, o busto direito, o pescoço forte e cheio, de uma linha torneada...
Revia-se nele, com desvanecimento, com júbilo, enternecido e muito repousado,
vendo a realização dos “seus esforços” perfeita, tão bem acabada — assim um escultor de gênio, ao terminar
uma obra prima, uma estátua, a contempla sereno, com orgulho, com glória, por
haver dado a perfeição inédita ao mármore.
Helena
estava também fascinada pelo enteado, e achava-o incomparável, estranho, cheio
da beleza olímpica de um Deus. Levava a olhá-lo, embevecida, longas horas, numa
fixidez penetrante, tão intensa e apaixonada, que, muitas vezes, embaraçava o
rapaz. Ao almoço, ao jantar e ao chá, ao lado dele, servia-o solicitamente,
carinhosamente, com instâncias delicadas, cuidadosos requintes, para que
aceitasse, “mais isto, mais aquilo”, numa voz que o prendia, como a um magnetizado. E as suas frases
cantavam cristalinamente, à maneira de uma música de amor, febril,
irresistível, ideal, onde as notas rutilavam, vagas e trêmulas, como a luz das
estrelas nos altos céus azulados. Andava muito expansiva, alegre, venturosa, e
sentia que no seu coração “alguma cousa”
borbulhava, sacudindo-a e impelindo-a docemente para George. Não sabia
explicar, mas ao pé dele, tomava-a uma doçura, um alvoroço feliz de andorinha
amada. Às vezes chegava a ser crane,
na sua dedicação pelo rapaz, e empalidecia com receio de que o esposo
falasse...
Mas, as
primeiras semanas, depois da chegada, foram consagradas por George à
retribuição de cumprimentos e visitas pelas casas, a passeios na cidade e
lugarejos em volta. Com o interesse e a natural curiosidade de percorrer de
novo os sítios por onde andara em criança, quase não parava no Castle, saindo pela manhã e só voltando,
à tarde. A sua inata paixão de touriste,
característica e fundamental, na sua nobre raça, aventureira e artística,
trazia-o preso às impressões novas, aos lugares, às coisas magníficas e
originais, que haviam escapado ao seu espírito infantil e descuidado, e que o
deliciavam agora: paisagens admiráveis, com certos cantos luminosos e serenos
de verduras e águas, adormecidos e afastados, em plena Natureza, onde a vida
corre sempre branca e cheia de paz, num murmúrio suave, como o curso claro de
um rio; panoramas largos e verdes de encostas e vales; campos desenrolando-se a
perder de vista, como lençóis de esmeralda, cobertos de gado; espetáculos
erguidos de montanhas empinadas, dando aos olhos um plano de visão extensíssimo
até aos longes em neblina; marinhas monumentais, dentre costa e mar alto, de
uma amplidão infinita...
Foram
semanas de um steeple-chase inaudito,
findas as quais caiu a preguiçar um pouco, gozando o home, num descanso suave.
CAPÍTULO 5
Child George quase não saía, além de
uma ou outra vez, pela manhã, depois do almoço, que descia com o pai até ao
escritório. E como adorava o mar, o sport
marítimo, que tanto o divertia em Londres, nas férias do curso, passava os dias
a bordejar no cutter, com o Nordeste,
pela baía.
Outubro ia
alegre e límpido, com belos, dias de céu azul e sol vivo, e ele, com as suas
colantes, estreitas roupas marinhas, de cores claras e escuras, com o velho
Moorn ou sozinho, largava no Victory,
à bolina.
O Moorn era
um perito contramestre irlandês que conhecia o pai de menino, desde o primeiro
navio em que este embarcara, em Bombaim, e quando ia a bordo a viagem tornava-se
bastante divertida: era feita costa a costa, ou pelas pitorescas e numerosas
ilhas, que manchavam a baía, sem perigo de escolhos ou baixios, porque o antigo
marinheiro conhecia todos os recantos do mar, como o “próprio nariz”, segundo dizia.
Ao ver sair
George para essas alegres partidas de cutter,
Helena às vezes tinha ímpetos de o seguir. Queria acompanhá-lo, velejar com
ele, admirando-lhe a perícia das manobras, na tolda limpa, inclinada pela vela,
as fitas do seu chapéu largo de mar esvoaçando sonoramente à brisa; e olhar da
borda, enlaçada ao rapaz, as praias, as povoações, as montanhas e as planícies,
correndo a um bordo, no litoral longínquo... Como seria feliz, como se
regozijaria! Mas podiam falar na cidade mexeriqueira e pequenina onde tudo se
sabia... Ainda se fosse uma estranha, uma estrangeira, sem nenhum parente ali,
como o marido e George... Mas não! se embarcasse só com o enteado — a vizinhança, as amigas, os conhecidos, os criados, a
própria família, cairiam na intriga...
E ficava
nervosa, aborrecida, febril, muito contrariada nos seus desejos e no seu amor,
vendo a bela embarcação erguer o pano, deixando à popa uma esteira sinuosa de
espuma...
Das janelas
da varanda, que não deixava um minuto, enquanto o enteado andava além singrando,
acompanhava, incansavelmente, com os olhos, onde havia uma ansiosa luz de
paixão, todas as bordadas do cutter.
A sua alma palpitava docemente, sobre as ondas, dentro do pequeno casco e na
alta vela alvadia, rastejando em voos rápidos, contínuos, de um para outro
lado, como uma grande gaivota. Entretinha-se longamente com aquela navegação de
asa branca sob a sua vista. Mas se o pano errante e vogador se sumia por detrás
de uma ilha, ou na volta de alguma península, experimentava uma vaga nostalgia,
que se tornava em alegria vivíssima, quando ele reaparecia...
George
voltava quase sempre à tarde, mais vigoroso e sadio, muito satisfeito, com um
riso esplêndido de dentes alvos, o rosto radiante, onde o sol forte do mar
abrira papoulas. Helena ia logo ao seu encontro, dirigindo-lhe perguntas sobre
a viagem, o que vira, os portos onde tocara... E o seu contentamento, ardente e
meridional, explodia vivamente, enchendo a casa de sonoros ruídos.
Outras
vezes, o rapaz passava os dias a ler; na sua sala, ou no caramanchão do jardim,
todo coberto de trepadeiras verdes e cheio de frescura, que dava para o mar.
Ela ia,
então, para ali bordar. Encontrava-o estirado sobre uma chaise-longue, com a Revista
de Edimburgo ou The Graphie sobre
os joelhos, muito fresco no seu fato de baeta creme, rindo-se e olhando para
ela, com os seus olhos garços e ingênuos de escocês. Sentava-se em frente dele,
para bem receber o clarão do seu olhar límpido, os seus sorrisos deliciosos.
Quando baixava um pouco a cabeça sobre as largas páginas negras de gravuras,
punha-se a admirar, embevecida, os seus cabelos claros e de seda, cobrindo-lhe
a fronte de caracóis dourados. E, com o espírito carregado de fantasia e ideal,
imaginava-se uma Clieia moderna amando um frio Apolo boreal. Aquela presença
olímpica do rei da beleza, tão junto às suas saias, despertava-lhe
profundamente todos os desejos, e, caída de repente na realidade, mordia-a uma
intensa vontade de beijá-lo freneticamente, numa insaciabilidade. Então, para
conter a sofreguidão; congestionada, apertava os dedos, nervosamente, quase
dilacerando o bordado.
Desde a
ocasião em que William lhe mostrara uma fotografia de George, ainda em
solteira, que tivera uma forte impressão pelo rapaz. O seu olhar claro, de uma
luz doce e nostálgica, a fisionomia bonita e de um contorno oval, a boca curta,
muito bem desenhada, os cabelos crespos e bastos —
tudo lhe dera, no retrato, a ideia de uma criatura adorável. Tinha
então um rosto adolescente, mas que encantava. E nunca mais a sua imagem fascinante
a deixara. Fora mesmo essa imagem querida que estabelecera entre ela e William
aquele laço de amizade, origem única, talvez, da união de ambos, porquanto foi
pelo filho que chegara a amar o pai.
Por isso,
quando o marido avisou-a de que o filho ia chegar, sofrera como um “abalo” agradável, que a pusera toda no ar, fazendo-a exclamar
mentalmente, entre deliciada e nervosa: —
“Meu Deus, George vai chegar!”
E desde logo
aquilo lhe ficara a cantar no cérebro, preocupando-a a todas as horas. Assistia
aos preparativos da recepção, cuidadosa e cheia de carinho, só falando do
enteado, alegremente, por toda a casa. E quando ele chegou, para o ir abraçar,
pisara a tolda do valor, toda trêmula, numa forte emoção.
O rapaz
também, assim que a viu, ficou impressionado pelo seu porte esplêndido e alto,
de uma elegância rara. O seu rosto lindo, de um moreno leve e tropical,
lembrava-lhe docemente a beleza epidérmica das assírias e das transcaucásias. E
toda a sua pessoa parecia estar desabrochando, com a frescura e fragrância de
uma rosa de Itália.
E agora,
naquela convivência íntima, só com ela, na vasta casa confortável, arrebatado
pela sua beleza, a que a toda hora antepunha muralhas, no seu profundo respeito
de filho digno e leal — sofria uma
tortura cruel, para poder resistir; aquela impressão, que dia a dia aumentava.
A princípio, isso não passara de uma afeição toda respeitosa e quase filial por
Helena; mas, pouco a pouco, as carícias inefáveis, os olhares quentes e
apaixonados em que o envolvia, a voz mansa e melodiosa com que lhe falava,
despertaram fortemente no seu coração, até então adormecido e virginal, o fogo
vivo de uma paixão indomável.
E, um dia,
esquecendo toda a dignidade, todos os respeitos e deveres, ambos enlouquecidos
pelo mesmo amor, forte, irresistível, formidável, lançaram-se nos braços um do
outro...
CAPÍTULO 6
Helena e
George não saiam agora do caramanchão, onde iam passar as suas horas de suprema
felicidade. Aquele recanto do jardim, silencioso e retirado, que os isolava do
mundo e dos criados, oculto entre espessas ramagens, vertendo frescura, com
três pequenas janelas rendilhadas, enquadrando trechos azuis de céu e mar,
tornara-se para os dois de uma atração sem igual.
Fora aí que
a paixão de ambos se declarara, uma manhã, após a breve e impetuosa confissão
de que se amavam. William saíra para o negócio, e George, com os seus livros e
revistas debaixo do braço, arrastara logo a chaise-longue,
indo se meter entre as folhagens.
Dera 11
horas. O dia seco e límpido, de sol forte, abrasava. Não ventava quase. O Azul
meia voz, ao ouvido, arrastou-a para um canto, onde perdida foi para ambos a
noção da realidade circunstante...
Quando
soergueram-se, parecia-lhes que o sol faiscante tinha ganho uns tons
amarelados, desmaiados, doentes, um ar de desolação. Havia, apesar do calor,
para eles, um arrepio no ar dormente. Reinava ainda a quietação das horas
calmas, em toda a Natureza, o silêncio que impõe a todas as coisas uma pausa,
nas proximidades do meio-dia...
Daí por
diante, constantemente, encontravam-se ali, debaixo da verdura protetora e
amiga, como num leito nupcial.
CAPÍTULO 7
William,
como todo o saxão, com a sua alma firme, o seu temperamento calmo, um espírito
culto e superior, inacessível aos sentimentos primitivos e selvagens, a
desconfiança ou o ciúme, jamais suspeitara das relações íntimas e clandestinas
da esposa com o filho. Ninguém o surpreendia na mais leve indisposição, em um
aborrecimento ou atitude sombria: a sua fisionomia mostrava-se continuamente alegre,
límpida, clara. Ao chegar do escritório, trazia sempre um ar risonho e feliz,
abraçando com meiguice a mulher e falando carinhosamente a George.
E assim, os
dois amantes prosseguiam em uma impunibilidade, presos ao torvelinho daquela
paixão. Mas, uma manhã, o velho Moorn, que era muito fiel e dedicado ao seu
antigo commander, andando a estrumar
o jardim, ouvira um ruído esquisito no caramanchão. Desconfiado, pressentindo “marosca”, porque desde meses via mistress e Child passarem
ali os dias, desde que o patrão saía até à tardinha quando voltava,
aproximou-se cautelosamente, por entre as ramarias. E, agachado, num maciço de
verdura alta, que ficava junto ao caramanchão, do lado do muro, descobriu os
dois abraçados, a beijarem-se, numa grande ternura...
O pobre
homem quedara-se lívido e espantado, como diante de um crime, e retirou-se
silencioso e aflito, pensando em correr logo à cidade, contar tudo a William.
Muito perturbado, foi buscar o chapéu, e, para não ser visto, saiu pelo portão
dos fundos.
Entrou, todo
trêmulo, no escritório, e encontrando o Fison sozinho, na sua sala, narrou-lhe
tudo, embrulhadamente, numa voz hesitante e cansada. O Fison ficara
petrificado, os ouvidos zuniam-lhe, como se lhe houvessem dado uma forte
pancada; mas duvidava ainda, apesar do velho e leal marinheiro afirmar-lhe “que vira” com os olhos rasos d'água.
— Oh! Moorn, você está enganado! Você está doido! Não é
possível! Não é possível!...
E sentia o
sangue circular-lhe nas veias com latejações brutais. As pernas tremiam-lhe, a
cabeça pesava-lhe. Deu alguns passos incertos pelo soalho, indo amparar-se à
escrivaninha para não cair. Mas acalmava-se, refletia:
— Helena... George... Não! Não podia ser! Era falso!...
Nessa tarde,
ao voltar para Rose-Castle, William vinha
meio abatido, o rosto engelhado.
CAPÍTULO 8
Era já
passado um mês e o Fison nada dissera em casa, observando, porém,
cuidadosamente, as coisas do lar. Duvidava do que lhe narrara o criado. Mas,
apesar disso, vivia “a espreitar”,
numa irritação e desespero que, às vezes, o sublevavam.
Madrasta e
enteado viam-lhe agora certos movimentos bruscos, a fisionomia alterada.
Frequentemente, ao sair para o negócio, voltava logo, numa grande inquietação,
dizendo-se “incomodado”. E não sabia mais. Na
mesa, ao almoço e ao jantar, quase não falava, guardando um
silêncio amargo, lançando olhares desconfiados para um e outro. À noite,
rejeitava o chá, e, quando ela ia para o salão tocar, deixava-se ficar na
varanda, a ler ou a fumar...
Em outras
ocasiões, alta noite, já deitado, levantava-se, numa agitação, entrando a
passear pelo quarto. Aí, então, sem declinar motivos, tinha para Helena tiradas
ásperas e irritadas. Ela ficava nervosa, respondia-lhe mal. Altercavam. Um
fundo plebeu lamentável surgia em ambos. Diziam-se injúrias, insultavam-se.
Ela, num histerismo, rompia a chorar. Ele ameigava logo, pedia que lhe
perdoasse. Ajoelhava-se junto a ela, chorava também. E voltava para o leito,
arrependido, humilhado...
Os criados,
nos seus quartos, que ficavam por baixo, ao rés do chão, ouviam às vezes os
passos pesados de William estalando em cima, nas taboas, e exclamavam consigo,
lembrando-se dos tempos em que ele enviuvara:
— Lá anda o senhor com o spleen fatal.
E, como o
vissem de novo triste, sério, calado, começavam a comentar o caso. De dia, na
cozinha, quando a ama e o enteado estavam no jardim, viravam-se a filiar...
Como o velho Moorn, andavam também desconfiados... E, na sua agudeza e faro,
pressentiam já um “escândalo”...
George é que
ignorava essas brigas de alcova, porque Helena jamais se lhe queixara, e os
seus apartamentos eram muito afastados, quase no outro extremo do Castle. Notava, porém, que a madrasta,
certos dias, amanhecia abatida, como se levasse a noite inteira em claro.
Atribuía isso ao seu profundo amor por ele, que a não deixava parar, e ao
aborrecimento e cansaço das horas tão longas passadas no mesmo leito, ao lado
do pai, “que ela achava cada vez mais intolerável”, sobretudo agora, com os seus “amuos senis”.
E vinha-lhe,
então, um furor contra aquele homem, que tanto outrora respeitara e amara,
porquanto, atualmente, a afeição filial quase se lhe sumira, suplantada pela
sua imensa paixão; e hoje, muitas vezes, só via diante de si “um rival”.
Nos dias que
se seguiam a essas noites terríveis, Helena, mal William saia, ia logo
trancar-se no quarto. E até ao jantar não aparecia a George, temendo que ele,
notando-lhe a alteração da fisionomia, lhe inquirisse a razão. Depois, tinha
também receio que aquilo se agravasse, com as ternuras intensas de ambos pela
casa, em seguida à “medonha
questão”, porque adivinhava que o “mau humor” de William era uma desconfiança
dos seus amores com George.
E, estirada
sobre a cama, posto que enlouquecida por aquela paixão, a primeira e única paixão
da sua vida, procurava medir as consequências do caso, se um dia o esposo
viesse a saber, a ter uma certeza iniludível... Matá-la-ia, talvez!
Atirar-se-ia contra George! Estrangular-se-iam!...
Então, num
grande nervosismo, imaginando todos os perigos, sentia-se opressa, desesperada,
aflita.
O marido,
porém, como “nada” verificasse, voltou a
mostrar-lhe o seu semblante feliz: falava a George como dantes, com a
sua imensa alegria.
E os dois
amantes mergulhavam outra vez, com sofreguidão, no seu crime...
CAPÍTULO 9
O Fison,
desde que na sua vida aparecera a primeira desarmonia, o primeiro desgosto, com
aquela “horrível acusação” à mulher e ao
filho, pensara logo em despedir o velho Moorn, e dar um destino a George.
Escrevera, então, para os Estados Unidos, onde tinha um bom amigo, diretor de
grandes obras de engenharia no Mississipi, pedindo-lhe uma colocação para o
filho. George era formado em hidráulica, praticaria ali, com grande proveito,
essa especialidade, e voltaria depois a trabalhar no Brasil. Desejava vê-lo
encaminhado, com um nome digno, uma carreira feliz. Ia fazer um ano que
descansava em sua companhia, era preciso, pois, trabalhar, encetar a vida. O
seu antigo camarada de bordo, a quem votava uma grande estima desde a infância,
seguiria para Liverpool, de onde passaria à Dublin, sua terra natal, que há
longos anos não via. Dar-lhe-ia um bom punhado de libras, que lhe garantisse
para sempre a velhice, e embarcá-lo-ia num steamer...
E assim,
cada um tomaria o seu rumo, ficando ele só com a esposa, no seu Castle tranquilo.
A resposta
da carta sobre o filho chegara havia um mês, garantindo-lhe uma colocação
magnífica; mas, o seu coração amantíssimo, sofreando-lhe as iras de pai “ofendido”, impedira-lhe comunicar isso a George, a quem tanto queria.
Moorn já
havia embarcado, o bom velho amigo, e parecia-lhe, de algum modo, uma injustiça
não ter feito também seguir desde logo o filho, único comprometido naquele “ameaço de infidelidade”
que tentara atingi-lo.
E como agora
voltassem-lhe a costumada serenidade e alegria, resolvera piedosamente ir
adiando aquilo, até ao aniversário de suas núpcias — uma data de incomparável prazer para si —
que estava próximo, findo o que abrir-se-ia com Child, falo-ia partir...
Mas Helena e
George, cuja desordenada afeição crescia sempre, sentindo uma impossibilidade
ingente em ocultar por mais tempo a William os tumultos e os ímpetos do seu
coração — já desde muito que andavam a
construir “um plano” de abandonar para sempre o Castle, indo viver juntos, longe, num recanto afastado e feliz.
Quando estavam a sós, levavam em contínuas cogitações para que esse plano
tivesse uma execução triunfal, buscando, por todos os meios, um momento em que
uma grande oportunidade ocorresse, fácil e cheia de salvação.
E, uma tarde
— meados de dezembro — em
que William, ao entrar do escritório, só com Helena, alegre e afetuosamente
falara em solenizar, com uma soirée brilhante, o aniversário do seu casamento — ela e George tiveram uma incomparável expansão. Encontravam, afinal,
nesse dia, a “grande ocasião”, que já os
enchia de júbilo, para irem livremente amar, sob outro céu distante.
Por isso,
daí por diante, as suas carícias com William foram dia a dia aumentando. O
digno homem, ignorando todas essas cobardias, julgava-se absolutamente ditoso,
entre a hipócrita solicitude de ambos.
CAPÍTULO 10
Era o último
de dezembro. William Fison não parava, numa enorme azafama, dando ordens,
mandando preparar tudo para o grande baile que ia realizar-se no outro dia.
Os criados,
num contínuo movimento, cruzavam-se de um para o outro lado. Lavava-se,
escovava-se, polia-se, em constante arrumação. Havia em toda a casa um reboliço
de objetos e móveis, pelos corredores, os quartos, a varanda, o salão...
Em toda esta
lida de ménage, que se esmalta para
uma recepção, Helena desenvolvia também uma atividade, entregando-se aos mais
delicados arranjos. Só, na sala que ia servir de toilette, punha artisticamente flores e enfeites nos dunkerques e vasos. Andava agora um
pouco pálida, as olheiras roxas, os olhos pisados.
Estava mais
magra, mais alta, vagamente abatida a formosíssima cabeça escultural, de onde
os cabelos pendiam, soltos, grossos, ondulantes, torrenciais. O pescoço, um
pouco inclinado pela aplicação, estava oculto, como as largas espáduas, por
aquela massa densa e reluzente de seda, desfiada, mas o peignoir aberto deixava
entrever a pele doce e quente dos seios capitosos e túmidos, que as rendas e os
folhos sombreavam. Parecia intimamente preocupada, porque, de vez em, quando,
erguia olhares melancólicos para um recanto do teto, ou para as vidraças em
frente, abrindo luminosamente para um bambuzal, todo verde, por detrás do qual
reluzia o céu puro, quando as hastes altas bamboleavam ao vento. Às vezes
parava, suspendia o trabalho, soltava um grande suspiro, e murmurava baixo: “Santo Deus! como George tarda!”
O enteado
subira pela manhã e ainda não voltara. Andava cuidando de encaminhar o terrível
“plano”, em que ambos tinham tanto trabalhado, porquanto a “noite esperada” aproximava-se. Percorrera as agências das companhias;
navegação, a informar-se dos vapores que estavam a passar. Fora à Norte— Sul,
fora à Nacional. Queria saber se teria algum, a primeiro. Não havia nenhum.
Mal
sucedido, logo ao primeiro passo, ficou desanimado, e, lançando-se através as
ruas da pequena cidade, procurava embalde uma casinha, um esconderijo, um
lugar, para onde pudesse ir com Helena, sem que ninguém suspeitasse.
Desesperado e aflito, vagando ao acaso, sem ideias, sugestões ou resoluções fáceis,
numa medonha esterilidade mental, descia uma rua, à beira-mar, quando esbarrou
de repente com um rapaz inglês, grosso e alto, a pele queimada, uma bela barba
de ouro ondeada.
Estacaram ao
mesmo tempo, entreolhando-se, muito admirados; e, reconhecendo-se, lançaram-se
ruidosamente nos braços um do outro, exclamando:
— George!
— Charles!
E após
algumas perguntas, foram caminhando devagar, numa palração animada. Falavam de
Inglaterra, dos bons tempos do Cresham
College, onde ambos andaram. Referiram-se alegremente, e com saudade, às
prodigiosas correrias, que então faziam, em Londres, pelos arrabaldes. Depois
falaram dos seus destinos... Havia mais de seis anos que não se encontravam,
desde que George se matriculara em engenharia. Charles perguntou-lhe o que
fizera, quando se formara, como viera para o Brasil. O outro narrou-lhe tudo,
em poucas palavras... E Charles? Ele vadiara algum tempo em Birmingham, para
onde fora, ao deixar o Cresham College.
O pai, que era comerciante, logo depois quebrara. A família ficara na miséria.
Tudo se arruinara... Então, abandonou os estudos, abraçando em seguida, por
fantasia e tendência, a vida do mar. Isolara dons aflitos, aos trambolhões, até
tirar a carta. Piloto, andara muito entre Southampton
e o Cabo. Mas passara a comandar. E ali estava, numa barca, onde fazia a sua
primeira viagem de master. Naquele
instante mesmo, vinha do consulado, de despachar, porque estava pronto a
levantar ferro. Ia para São Tomás... Tencionava largar no outro dia, sem falta.
A estas
palavras finais, George, a quem a conversa pouco a pouco serenara, teve uma
enorme alegria, vendo surgir de súbito a sua felicidade, naquele encontro
casual. Resolvera, então, contar tudo ao Charles, e como nessa ocasião fossem
entrando a Praça do Mercado, ambos, ao mesmo tempo, tiveram uma lembrança — irem beber à Cervejaria Krapp.
Aí, num
recanto afastado da sala, George abriu-se todo aquele velho camarada, pondo-o
ao fato da sua grande paixão pela madrasta, das dificuldades terríveis em que
estava, e do seu plano de se ausentar com ela, quanto antes, daquela cidade,
onde já se murmurava...
Charles
escutava-o, assombrado, achando aquilo terrible
e extraordinary, mas interessava-se
por ele como por um irmão.
E, após
longas horas de íntima confissão de toda a sua alma, George pediu-lhe “que o salvasse, o arrancasse àquela situação desgraçada.”
O outro,
calado, em profunda reflexão, parecia hesitar, medindo britanicamente os
prejuízos e as responsabilidades que ia acarretar. Mas afinal acedeu, e entraram
a combinar o embarque.
Charles
adiaria a viagem por um dia mais. Na noite do baile, enviaria, do ancoradouro
de Santa Cruz, onde estava fundeado, um escaler da barca, pronto e bem
tripulado, que esperaria George, em um recanto escuso da praia, nas proximidades
do Castle. Seria nas pedras do
soleiro, umas rochas que corriam paralelas à costa, junto ao Estreito, um lugar
deserto e abrigado. Um dos marinheiros, ao chegar o bote ao local indicado,
acenderia um pequeno farol encarnado, que anunciaria a George a presença da
embarcação. Esta, apenas embarcassem, far-se-ia ao largo, a toda força de
remos, em direção ao navio, que arrancaria naquela madrugada...
Viraram mais
um chopp. Depois ergueram-se,
separando-se, com um forte shake-hand,
até à noite aprazada.
CAPÍTULO 11
Nessa tarde,
George, depois do desespero em que andara toda a manhã, voltava radiante o
alegre para Rose-Castle.
William
tinha descido até ao escritório, a fim de determinar certas coisas na cidade,
para que nada faltasse, no dia seguinte, ao baile.
Helena
estava no seu quarto, ainda a arrumar, quando viu atravessar para a varanda o
enteado, que vinha muito risonho, a girar vivamente a bengala nos dedos e a
cantarolar. Sorriu, subitamente satisfeita, e correu ao seu encontro, toda
alvoroçada.
A casa,
terminada a arrumação, reentrara no seu contínuo silêncio alto e aristocrático.
Os criados estavam uns lá para a cozinha, enquanto outros andavam fora, em
mandaletes.
Na grande
sala de jantar — os stores arriados, contra o sol que escaldava, do lado do mar fresca
e úmida da lavagem geral, havia uma doce claridade azulada, que vinha da
refração das paredes. As étagères e
os altos armários, com largos entalhes artísticos, todos envernizados, exibiam
as lavradas pratas, as finas porcelanas e os trabalhados cristais, numa
rutilação pomposa, de interior opulento, onde se experimenta o conforto
magnífico de uma vida límpida e farta. O relógio, um antigo relógio inglês, em
caixa esguia de ébano, erguendo-se a um canto, com um belo mostrador branco
entre relevos dourados, cortava o silêncio com o seu tic-tac monótono, de mecanismo em trabalho. A mesa elástica,
estendendo-se ricamente, ao meio da vasta sala, de um ao outro extremo, toda
rodeada de cadeiras negras torneadas, e coberta por um grande pano cinzento, a
listras vermelhas — três lindos vasos verdes,
transparentes e cheios de desenhos originais, ostentavam, decorativamente,
palmas e ramos floridos e frescos. Um perfume delicioso e sutil errava.
Aí, Helena e
George encontraram-se, enlaçaram-se, e seus lábios sequiosos colaram-se logo,
num beijo longo, profundo, insaciável.
Mas o rapaz,
louco por dizer-lhe tudo, a foi arrastando suavemente para o seu quarto, onde,
fechados por dentro, depois que William entrou a “desconfiar”, faziam os
seus rendez-vous amorosos.
Narrou-lhe,
então, minuciosamente, primeiro, a sua batida através da cidade, a sua
desesperança e tristeza quando soube que não passava o paquete; depois, a
enorme animação e prazer que lhe viera de repente, ao esbarrar-se, numa rua,
com um antigo camarada inglês, com quem vinha de estar, e que lhe proporcionava
tudo, providencialmente, à feição dos seus desejos.
E
expunha-lhe entusiasticamente como realizar-se-ia agora o plano, com o
aparecimento daquele amigo, comandante de um navio, que estava a sair, e que os
ia levar para sempre. Tinha arranjado todos os meios, o embarque seria
facílimo. Na noite seguinte viria um escaler de bordo para recebê-los. Não
haveria o menor perigo. Ele e ela, como já estava assentado, no baile, tomariam
parte nas danças com a maior alegria... Não teriam nenhuma sorte de
preocupações, para não se denunciarem... Ririam, folgariam expansivamente...
Receberiam os convidados, como dantes, afetuosamente, e com todos os
sorrisos... Mostrar-se-iam amáveis, dedicados, felizes... Cercariam William de
todos os carinhos, a fim de que ele nada pressentisse... E, calmamente, sem
agitação ou nervosismo, à meia-noite, ou pela madrugada, quando todos
começassem a sair, no burburinho enorme das despedidas, aproveitariam e
escapar-se-iam, no meio da confusão geral, pelos fundos do jardim. Tomariam,
então, pela praia, para o lado das pedras, onde encontrariam a embarcação,
pronta a partir... E quando William e os amigos, os mais íntimos, os
procurassem, e não os achassem, suspeitando uma fuga, eles já estariam
distantes, além, sentados; à popa do bote, rolando para outro destino. E,
deliciosamente unidos, na emoção extraordinária daquela aventura, afastando-se
ao largo, sobre as ondas balouçastes, veriam esmorecer, longe, no escuro da
costa, as luzes de Rose-Castle, já
trêmulas e tristes...
CAPÍTULO 12
Helena,
posto que cheia de imensa alegria com o que lhe dissera George, porquanto só
assim poderiam — ele e ela — gozar longamente e sem
cuidados aquela paixão incendida, que, a permanecer por mais tempo sob aqueles
tetos, viria talvez a perdê-los um —
ficara, entretanto, abalada e nervosa. Desde que assentara
definitivamente em partir, deixar para sempre William e aquela casa, que, às
vezes, uma imensa nostalgia se apoderava de sua alma, a enlanguescia, a
entristecia.
Deixara o
quarto do enteado e viera para a sala esperar o marido, cuja demora, nesse
momento, a impacientava e a assustava, a vila, sempre dantes tão fria! Agora,
que estava a deixá-lo para sempre, e que o via tão abandonado e traído,
indiferente e descuidado ao que tramavam em volta de si, tranquilo e alegre,
porque tudo ignorava, o excelente, o generoso, o bondosíssimo William, sobre
quem estava para cair a maior de todas as desgraças, à qual talvez não pudesse
sobreviver, resistir; — agora, sentia
por ele como uma piedade e ternura infinita.
Então
abalada e num grande histerismo, opressa, tonta, aflita, entrou a pensar na
partida... Que desgraça! Sair, fugir! Abandonar aquela cidade, onde tinha nascido
a sua casa, a família, as amigas, tudo, para ir correr outras terras e outros
mares, entre povos estranhos, falando talvez outra língua! Que horror! O que
era a paixão, o que lhe ia custar! George era o seu amor, a sua felicidade, a
sua vida. Mas que infortúnio ter que abandonar o marido, seu verdadeiro marido,
para acompanhar o outro, o amante, o seu enteado!... O que seria de William,
que ali ficava, na aflição, quando soubesse, experimentasse a certeza cruel,
que já um dia pressentia, de que ela desde muito o enganava com o filho?...
Enlouqueceria, matar-se-ia, o pobre William!...
E com o
espírito em tumulto, cheio de lembranças sinistras, onde as ideias giravam, num
torvelinho, confusas, dispersas, como folhas secas que um vento rijo levanta, toda
trêmula sem se poder suster, atirou-se para cima do largo divan, a soluçar baixo, num pranto infindo... Mas dentro em pouco,
foi-lhe descendo por todo corpo como um adormecimento sutil, que lhe trouxe as
ideias uma sonolência pacífica.
A luz fria e
esmorecida da tarde, caindo lá fora, céu de um azul diluindo, enchia a sala de
um crepúsculo triste. Uma sombra invasora estabelecia-se, envolvendo pelos
cantos os objetos e móveis numa cinza fina. Metais e porcelanas procuravam
reter a claridade escoante em cintilações frígidas. Por todo o vasto
compartimento riquíssimo, um fundo escuro erguia-se, onde se destacava, em
machas vagas, aqui e ali, a brancura das capas da mobília e as rendilhadas e
custosas cortinas. As janelas abriam ainda altos quadrados de claridade lívida,
como se fosse um efeito da própria transparência dos vidros, através os quais
via-se já tremerem, no céu, as primeiras pontilhações de ouro vividas...
Helena
continuava desfalecida sobre o divan.
De repente, um ruído de rodas na calçada sobressaltou-a. Ergueu-se logo
vivamente, esfregou as pálpebras, surpreendida pela escuridão. Gritou para
dentro que viessem acender as lâmpadas. E, dando toques rápidos ao cabelo e a
roupa, correu para a porta, que abriu de uma volta, numa emoção.
William
esperava-a já, de pé e risonho, no alto da escada. E, abraçando-a, exclamou
todo radiante: “Oh! my dear...”
Enlaçados
ambos, e falando alegremente, atravessaram o salão. Nesse instante, um criado,
apressado, dava luz às lâmpadas. Na varanda, toda iluminada, tilintavam
sonoramente os talheres e a louça, anunciando o jantar.
George,
quando a madrasta o deixara, ficou sentado sobre a cama longo tempo,
cismando... Como ela, experimentara, se bem que vagamente, as mesmas ideias
tristes e desalentantes. Mas fora apenas um instante, porque era homem, era
forte, tinha a pujança de um leão. Depois, cansado das caminhadas do dia, e de
se ter erguido muito cedo pela manhã, encostara-se aos travesseiros e
adormecera profundamente. E, despertado agora, subitamente, pela voz grossa do
pai no corredor, saltara da cama, assombrado com a noite que lhe parecia haver
descido, magicamente, como em um encanto.
CAPÍTULO 13
Amanhecera
límpido e alegre o primeiro do ano.
William não
descera, muito repousado, limito sereno, naquele dia feliz. Havia três anos que
casara, e nem um só dia se passara em que ele não abençoasse o destino. Posto
que tivesse andado uns tempos “aborrecido e
aflito” com aquela maldita intriga, que surgira, inopinadamente, há
meses, na sua vida, sempre tão correta e tão nítida, sentia-se com tudo, como
dizia, “quase absolutamente ditoso”. Idolatrava a esposa e conhecia também que era querido. George, o filho
estremecido, estava em sua companhia, pronto a seguir uma carreira, com uma
profissão adquirida: brevemente partiria, a conquistar fora uma boa posição e
um nome digno. Tinha uma fortuna. O rapaz e as irmãs, se ele morresse, já não
sofreriam. E como possuía um nome ilustre, obra exclusiva da sua vontade e dos
seus esforços, queria também um brilho idêntico para o dos filhos. Por isso
mandara estudar George e educar superiormente as filhas. Aquele ano correra-lhe
propício, como poucos. Os negócios lhe tinham dado resultados consideráveis.
George concluirá o curso. Um cunhado em Inglaterra fora elevado a ministro.
Gozava saúde. Casara uma filha.
— Efetivamente, pensava, podia sorrir-se, expandir-se amplamente,
porque não tinha a invejar alegrias!
Helena e
George andaram também contentíssimos, na sua imensa paixão, antegozando já a “aventura” que os iria unir, de uma vez e para sempre, nessa noite tão
ansiosamente esperada.
O almoço e o
jantar, nesse dia, tiveram a cintilação e o encanto dos banquetes em ménage, íntimos, cordiais e tranquilos.
Estiveram presentes, em pleno júbilo e em plena amizade, todos os numerosos
amigos de Rose-Castle. Logo pela
manhã, chegaram o Fernando Braga e toda a família, que vinham passar o dia.
Depois viera o Crowley e as lindas filhas; as Moelmanns, sempre gorjeantes e
vivas; as Sabino, umas raparigas magrinhas, muito camaradas de Helena, que
cantavam e eram pianistas exímias; as Veigas, as Barbosas, as Lino... De sorte
que pela casa inteira espalhava-se sonoridades cristalinas, que alegravam, na
orquestração incomparável das moças reunidas sob tetos festivos.
À noite, Rose-Castle tornara-se feérica com a sua
profusa, magnífica iluminação, jorrando para a rua, em grandes faixas
luminosas, pelas cinco janelas góticas e o largo portão do jardim. Daí para os
fundos, nas áleas de saibro alvadio, ardiam esplêndidos balões venezianos,
presos em linha as ramagens balouçantes, cujo verde destacava, no lugares mais
banhados de luz, com um tom artificial e vivíssimo de cenografia. No fundo
principal, os dois esguios torreões caídos, fincavam no Azul as flechas finas
erguidas, que suspendiam, cada uma, um globo rubro de vidro, flamejando, num
tamanho de lua, como dois astros grandes entre as estrelas vivíssimas.
Desde o
anoitecer que todo o bairro da Praia de Fora, a vasta rua de São Sebastião e
adjacências, num alvoroço, começaram a vazar para ali a sua exígua e curiosa
população. De todos os pontos da cidade, ainda os mais longínquos, afluíam
famílias, picadas pelo conhecido prurido provinciano de “espiar bailes”. E às 8 horas da noite, em frente ao Castle, tornara-se quase impossível o
trânsito, pela densidade imensa da multidão aglomerada. Até as 10 horas, as
carruagens, trazendo convidados, não cessaram de estacar ao portão.
Dentro, no
imenso salão regurgitante, William e Helena, muito alegres faziam as honras da
recepção, agradecendo cumprimentos que lhes dirigiam e trocando infinitos shake-hands. Daí por diante começaram a
despenhar-se as danças, a princípio lentas e cerimoniosas, depois precipitadas
e febricitantes.
William
dançara apenas as duas primeiras quadrilhas, sendo uma com a esposa e outra com
uma senhora de cabelos alvejantes, formosíssima, a mulher do Crowley, uma amiga
de infância, muito elegante no seu porte alto e fino de escocesa da clan, e cujos olhos azuis olhos
fascinantes conservavam ainda o brilho e a ternura dos dezesseis anos.
George
tivera como pares, nas primeiras marcas, uma das Sabino e a Sofia Moelmann, que
estava adorável, com seus olhos garços e transparentes de virgem renina.
Helena,
radiosíssima, no seu rico vestido creme de crepe da China, estava como nunca,
num raro esplendor de beleza olímpica, a voltejar no salão, pelo braço de James
Crowley, um gentleman, e o amigo mais
querido de Willian. Todos os olhares viris dos cavalheiros seguiam-na
arrebatadamente, com intenções requestantes, enaltecendo-a e apoteosando-a. No
entanto, ela, magna cheia de altivez, não se dignava lançar-lhes, um momento
só, a mais pequena atenção. Prosseguia sempre, dominadora e triunfante,
indiferente a todos, só fixando George, continuamente, com uma grande adoração.
E, às vezes, quando ele, admirável na sua formosura máscula, com seu perfil
Apolônio, demorava-se acaso a gracejar ruidosamente com alguma dama – ela estremecia de repente, e de seus olhos negros saiam chamas
zelosas de leoa amante.
Da terceira
quadrilha em diante, George e Helena não se despegaram mais, em marcas
sucessivas, girando num turbilhão. E quando a orquestra executou As Ninfas, uma
linda valsa alemã, que era a predileção e o encanto de ambos, não houve roda de
rapazes e moças em que não se filasse, numa inveja formidanda, “daqueles modos escandalosos”,
da madrasta e enteado, presos agora, a noite inteira, nas danças.
Ninguém,
porém, se cansava de olhá-los, acompanhá-los, admirativamente em todas aquelas
volteações rítmicas, em que os seus corpos passavam, por entre os outros, em um
destaque fulgurante: ela, morena, soberbamente bela, com o seu corpo estatual
de ateniense dos tempos áureos da Grécia; ele, louro, lindo, gigantesco,
lembrando um titã escandinavo, na mitologia brumosa dos Eddas.
Mas, posto
que frequente nas danças, George não perdia um instante só a direção do seu
plano, que ele via quase totalmente triunfante. De vez em quando, dava uma
chegada ao gabinete onde William entretinha-se agora, profundamente, em seguidas
partidas de whist, com o Crowley, o
Fernando Braga e o Lino. Fora já duas vezes, sem que ninguém o visse, verificar
se com efeito, lá para os lados das pedras do soleiro, já estaria o “sinal”. Não o vira ainda. E uma certa preocupação começava a assaltá-lo...
Mas tinha confiança em Charles. Esperava...
E, como
fosse quase meia-noite, mal terminara a valsa, saíra a espreitar. O céu estava
um pouco escuro, embora estrelado. A praia tinha uma brancura amortecida e
vaga, destacando junto à negrura do mar. Pôs-se a olhar de novo, a investigar,
quando de repente deparou com uma luzinha encarnada, pondo um cordão fino e
longo de rubis n'água. Murmurou então, respirando alto, num alívio de quem
sacode uma forte opressão:
— Ah! lá está!... Lá está!...
E entrou,
muito alegre, pela varanda do lado. No corredor, esbarrou-se com Helena, que
vinha da sala. Tomou-lhe o braço e, lançando-lhe um olhar significativo,
entraram no quarto. Aí George disse-lhe que era preciso aproveitar a ocasião,
porque a embarcação já os esperava...
Ela teve uma
grande palpitação, ficou de repente pálida, tremida, toda fria, não podia
respirar. Agarrou-se ao enteado, murmurando baixo:
— Mas como, George?... Vão nos ver, vão nos agarrar...
Que horror!... Podiam ter suspeitado...
Ele
replicou-lhe, convictamente, muito calmo:
— Não! Ninguém sabia... O pai estava lá para o gabinete,
entretido a jogar... Os outros ignoravam tudo... Não havia trepidar... Logo que
alguém começasse a retirar, aproveitariam e... good night!...
— Pois sim, George! pois sim! fez ela, subitamente
enrijada.
E, com
efeito, daí a instantes, quando começaram a sair os primeiros convidados,
justamente ao estalar entusiástico da quinta quadrilha, num burburinho enorme,
Helena e George, que tinham ido acompanhar os Cabrais até ao portão,
escaparam-se subitamente, por entre as árvores do jardim, para os lados do
mar... Ninguém notara isso, nem mesmo os criados. E, na praia, tomando ambos
para a banda das pedras, rente ao muro do Castle,
que avançava até grande distância, foram-se afastando devagar, sem ruído, num
profundo silêncio, que só o leve bater das ondas na areia perturbava...
Mas a
quadrilha terminara. No salão algumas famílias erguiam-se, falando em retirar.
No gabinete, o Fison e os companheiros ainda jogavam, quando a esposa do Braga
entrou subitamente, toda lívida, os beiços brancos, a perguntar:
— Onde estava Helena? Onde estava?...
Os
três homens ergueram-se logo, sobressaltados. William correu para ela, louco,
numa precipitação, os olhos a faiscarem:
— O que fora?... O que fora?...
Ela,
ofegante, em palavras pausadas e trêmulas, entrecortadas, disse-lhe:
— Que tinha dado por falta da filha na sala. A
princípio, julgara que estivesse ocupada, a dar algumas ordens lá dentro, ou
que se achasse no quarto. Mas depois, como ela demorasse, e não visse George
para lhe perguntar, erguera-se, muito impressionada e cheia de cuidados,
supondo alguma dor... Foi até ao quarto. Não a encontrou. Foi à sala de jantar,
ao toilette, as outras salas... E
nada. Nem George!... O que aconteceria, Nossa Senhora! Aquilo era uma
desgraça...
O Fison
ficou por instantes a olhá-la, espasmado, hirto, branco como a cal; depois,
ergueu os braços ao ar, e, num desespero, como um alucinado, atirou-se para o
corredor a gritar:
— Traído, Santo Deus!... Desonrado!...
O Crowley, o
Fernando Braga e o Lino, de repente abalados, numa grande perturbação, não
sabiam o que fazer. Todos, em volta, tinham um ar aterrado.
Um enorme
reboliço, choros, exclamações, gritos de ataques, abalaram então sinistramente
A casa. E a voz triste, dolorosa e pungente do Fison, ecoando pelas salas, era
como uma nota plangentíssima e dantesca no fim de uma perdida batalha:
— Traído, Santo Deus!... Desonrado!...
E logo após,
os convidados entraram a retirar-se, silenciosamente, dispersos, numa debandada
de desastre...
Nessa mesma
noite, William Fison, só, no seu quarto, agitado e perdido, numa desesperação
suprema, numa dor formidável, rebentava a cabeça com uma bala. E no outro dia, Rose-Castle se fechava para sempre numa
paz funerária...
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