Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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O Américo
partia para o sul, em busca de um lugar onde melhor se ganhasse a vida e se
garantisse o futuro. Deixava o sítio onde nascera e medrara feliz, porque os
pais estavam velhos, “com os pés para a cova”, e ele precisava ajudá-los e casar-se, como prometera à noiva. E, de saco às
costas, o seu lenço encarnado de chita entrouxando a roupa engomada, preso na
mão pelas pontas em nó, botou-se a caminho da cidade, para tomar o primeiro
vapor que passasse — sob o
meridional esplendor de uma clara madrugada azul, em que os
pássaros trinavam festivamente pela pradaria aromatizada e colorida e pelos
laranjais floridos, que lembram noivados e exalam hálitos de amores, marginando
as brancas estradas risonhas.
A mãe, antes
dele partir, abraçada, pendurada ao seu grosso pescoço queimado pelo sol na
capinação das culturas, depois de lhe beijar as faces cheias e amorenadas,
sujas da primeira seda escura e rareada da barba nascente, disse-lhe comovida,
engasgada pelos soluços: — “Deus te abençoe
e te faça um homem, filho!” e a
Leopoldina, que estivera na véspera em sua casa até tarde, e que lhe
dera, ao despedir-se, uma trancinha odorante e luzente do seu cabelo escuro e ondeado, cheio de
crespinhos esvoaçantes na nuca, fez-lhe também uma recomendação ingênua: — pediu-lhe “que
se lembrasse dela e que escrevesse”.
E lá foi o
Américo instalar-se no paquete, triste e saudoso de todas aquelas suavidades
que ficavam atrás, no seu sítio, e a que havia voltado as costas tão
precipitadamente, só pela necessidade de endireitar a vida, de torná-la outra.
Na esterilidade daquele meio perdera já a esperança de vir a ser “alguma coisa”, porque não possuía “bens de seu”, nem gado, nem terras de lavoura, nada! Sempre o escasso trabalho “à meia”, não deixando resultado senão para os outros, e lançando eternamente
o pobre trabalhador nas desconsolações e faltas do amargo semear em terras
alheias. Por isso abandonava tudo, abnegadamente, com sacrifício, para ir
ganhar o pão longe, no meio das grandes cidades ruidosas.
E, de
repente, acossado pela nostalgia que acomete aos que deixam o lar pela primeira
vez, desandou a chorar rijamente, soluçantemente, entalado, por causa dos
grandes balanços do mar alto, na estreiteza de um sujo beliche de terceira
classe. Mas, dois dias depois, já familiarizado a bordo, conversava, sorria, na
alegria e na grande esperança dos que rolam para um destino novo. E, chegado ao
Rio Grande, tratou logo de empregar-se e de “fazer-se
um homem”, como lhe dissera a mãe.
Escrevia
continuamente à família, e recebia desta longas cartas, em garranchos
confusos, obscuros, de uma caligrafia impossível, mas de uma expressão doce e
carinhosa. Sabia notícias, andava ao fato das coisas. De repente, porém, da
parte dos seus, tudo cessou; anos passaram; um longo silêncio se fez. Cartas
extensas, anelantes, choradas e escritas tremulamente, à noite, pelo Américo,
num temor e numa obstinada apreensão de acontecimentos dolorosos e lúgubres
perderam-se, sumiram-se numa mudez sinistra... Mas um dia chegou-lhe uma carta,
com um sobrescrito estranho, estreita e tarjada de luto, noticiando-lhe a morte
dos pais, e, em seguida, da noiva. Uma desgraça! Teve uma negra amargura.
Ocorreu-lhe logo embarcar, regressar ao sítio. Mas naquela ocasião não podia “arredar pé”, sair: perderia tudo. Resignou-se a ficar,
sofrer...
Entretanto,
os negócios prosperavam e, no fim de alguns anos, o Américo voltou para a
terra, triste com a perda dos seus, mas impelido pelo desejo de tornar a ver,
nos objetos e nas pessoas, o seu passado, os seus conhecimentos antigos. Logo
ao desembarcar, o Alexandre da Praia, que andava botando as redes, correu-lhe
ao encontro, e ferozmente torturou-o com intermináveis detalhes do tristíssimo
viver da família, necessitada e doente desde o dia da sua partida até ao
momento em que “Deus se serviu de chamá-la para si!” “A Leopoldina, pobrezinha! que tantas esperanças tinha nele,
estava também debaixo da terra; morrera das bexigas, já lá iam bastantes anos.” E o Alexandre acentuava: “Parecia que a estava a ver, fria, toda negra,
envolta em folhas de bananeira e amortalhada num lençol, deitando mau asco.
Fora por uma noite álgida e enluarada de Agosto...”
O Américo,
esmagado por essas ideias pungentes e lutuosas, seguia agora, de cabeça baixa,
o carro de bois que levava a bagagem, um verdadeiro carro de bois, tradicional,
vagaroso e chiante, que dois bois arrastavam, babando-se, enterrados na areia
fina do caminho. Tomou em direção à freguesia, em busca de uma casa conhecida ou
de algum parente, para hospedar-se por aqueles dias. Não andara ainda muito
quando o agarrou a Fortunata Pereira, uma velha parenta afastada, que o
conduziu para casa, onde lhe deu café e agasalho em uma saleta vazia, fazendo
muitas perguntas, arrumando a bagagem e dizendo “que
em nada a incomodava, que a casa era grande e tinha até lisonja nisso. Pois
se ela o tinha visto em fraldinhas, Mãe de Deus!...”
O Américo,
naquela semana, não ousou sair, recebendo carinhosas visitas de parentes, de
amigos, da família e de alguns camaradas de infância. Mas depois, com as suas
constantes vestes de luto, em algumas tardes, ao lento desfalecer do sol no
ocaso, subia a ladeira vermelha, e pedregosa, que ia ter à igrejinha do sítio,
para lançar um olhar de enternecimento e de saudade ao lugar onde estavam os
seus, ao estreito e humilde cemitério, verde e florido como um jardim.
E de pé,
sobre o adro gramoso onde se erguia uma grande cruz de madeira preta, deitando
um olhar amplo e vago à paisagem em redor, sentia invadirem-lhe o coração, numa
revoada, mansa e piedosa, lembranças vivas e luminosas de um outro tempo,
alegre, fugidio e cantante. Recordava-se de tudo, das menores coisas que vira
em menino; e agora estava ele, ali, tão só, abandonado, numa desolação! O contraste
brutal das situações feria-o pungitivamente. E, sob essas dolorosíssimas
recordações, pensativo e melancólico, cabisbaixo, descia o adro da igreja,
vagaroso e soturno, recolhido, como quem pensa na profundidade e no mistério
das coisas.
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