11/03/2017

Romance de um rapaz (Conto), de Virgílio Várzea


Romance de um rapaz
 
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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O Américo partia para o sul, em busca de um lugar onde melhor se ganhasse a vida e se garantisse o futuro. Deixava o sítio onde nascera e medrara feliz, porque os pais estavam velhos, “com os pés para a cova”, e ele precisava ajudá-los e casar-se, como prometera à noiva. E, de saco às costas, o seu lenço encarnado de chita entrouxando a roupa engomada, preso na mão pelas pontas em nó, botou-se a caminho da cidade, para tomar o primeiro vapor que passasse — sob o meridional esplendor de uma clara madrugada azul, em que os pássaros trinavam festivamente pela pradaria aromatizada e colorida e pelos laranjais floridos, que lembram noivados e exalam hálitos de amores, marginando as brancas estradas risonhas.

A mãe, antes dele partir, abraçada, pendurada ao seu grosso pescoço queimado pelo sol na capinação das culturas, depois de lhe beijar as faces cheias e amorenadas, sujas da primeira seda escura e rareada da barba nascente, disse-lhe comovida, engasgada pelos soluços: — “Deus te abençoe e te faça um homem, filho!” e a Leopoldina, que estivera na véspera em sua casa até tarde, e que lhe dera, ao despedir-se, uma trancinha odorante e luzente do seu cabelo escuro e ondeado, cheio de crespinhos esvoaçantes na nuca, fez-lhe também uma recomendação ingênua: — pediu-lhe “que se lembrasse dela e que escrevesse”.

E lá foi o Américo instalar-se no paquete, triste e saudoso de todas aquelas suavidades que ficavam atrás, no seu sítio, e a que havia voltado as costas tão precipitadamente, só pela necessidade de endireitar a vida, de torná-la outra. Na esterilidade daquele meio perdera já a esperança de vir a ser “alguma coisa”, porque não possuía “bens de seu”, nem gado, nem terras de lavoura, nada! Sempre o escasso trabalho “à meia”, não deixando resultado senão para os outros, e lançando eternamente o pobre trabalhador nas desconsolações e faltas do amargo semear em terras alheias. Por isso abandonava tudo, abnegadamente, com sacrifício, para ir ganhar o pão longe, no meio das grandes cidades ruidosas.

E, de repente, acossado pela nostalgia que acomete aos que deixam o lar pela primeira vez, desandou a chorar rijamente, soluçantemente, entalado, por causa dos grandes balanços do mar alto, na estreiteza de um sujo beliche de terceira classe. Mas, dois dias depois, já familiarizado a bordo, conversava, sorria, na alegria e na grande esperança dos que rolam para um destino novo. E, chegado ao Rio Grande, tratou logo de empregar-se e de “fazer-se um homem”, como lhe dissera a mãe.

Escrevia continuamente à família, e recebia desta longas cartas, em garranchos confusos, obscuros, de uma caligrafia impossível, mas de uma expressão doce e carinhosa. Sabia notícias, andava ao fato das coisas. De repente, porém, da parte dos seus, tudo cessou; anos passaram; um longo silêncio se fez. Cartas extensas, anelantes, choradas e escritas tremulamente, à noite, pelo Américo, num temor e numa obstinada apreensão de acontecimentos dolorosos e lúgubres perderam-se, sumiram-se numa mudez sinistra... Mas um dia chegou-lhe uma carta, com um sobrescrito estranho, estreita e tarjada de luto, noticiando-lhe a morte dos pais, e, em seguida, da noiva. Uma desgraça! Teve uma negra amargura. Ocorreu-lhe logo embarcar, regressar ao sítio. Mas naquela ocasião não podia “arredar pé”, sair: perderia tudo. Resignou-se a ficar, sofrer...

Entretanto, os negócios prosperavam e, no fim de alguns anos, o Américo voltou para a terra, triste com a perda dos seus, mas impelido pelo desejo de tornar a ver, nos objetos e nas pessoas, o seu passado, os seus conhecimentos antigos. Logo ao desembarcar, o Alexandre da Praia, que andava botando as redes, correu-lhe ao encontro, e ferozmente torturou-o com intermináveis detalhes do tristíssimo viver da família, necessitada e doente desde o dia da sua partida até ao momento em que “Deus se serviu de chamá-la para si!” “A Leopoldina, pobrezinha! que tantas esperanças tinha nele, estava também debaixo da terra; morrera das bexigas, já lá iam bastantes anos.” E o Alexandre acentuava: “Parecia que a estava a ver, fria, toda negra, envolta em folhas de bananeira e amortalhada num lençol, deitando mau asco. Fora por uma noite álgida e enluarada de Agosto...”

O Américo, esmagado por essas ideias pungentes e lutuosas, seguia agora, de cabeça baixa, o carro de bois que levava a bagagem, um verdadeiro carro de bois, tradicional, vagaroso e chiante, que dois bois arrastavam, babando-se, enterrados na areia fina do caminho. Tomou em direção à freguesia, em busca de uma casa conhecida ou de algum parente, para hospedar-se por aqueles dias. Não andara ainda muito quando o agarrou a Fortunata Pereira, uma velha parenta afastada, que o conduziu para casa, onde lhe deu café e agasalho em uma saleta vazia, fazendo muitas perguntas, arrumando a bagagem e dizendo “que em nada a incomodava, que a casa era grande e tinha até lisonja nisso. Pois se ela o tinha visto em fraldinhas, Mãe de Deus!...”

O Américo, naquela semana, não ousou sair, recebendo carinhosas visitas de parentes, de amigos, da família e de alguns camaradas de infância. Mas depois, com as suas constantes vestes de luto, em algumas tardes, ao lento desfalecer do sol no ocaso, subia a ladeira vermelha, e pedregosa, que ia ter à igrejinha do sítio, para lançar um olhar de enternecimento e de saudade ao lugar onde estavam os seus, ao estreito e humilde cemitério, verde e florido como um jardim.

E de pé, sobre o adro gramoso onde se erguia uma grande cruz de madeira preta, deitando um olhar amplo e vago à paisagem em redor, sentia invadirem-lhe o coração, numa revoada, mansa e piedosa, lembranças vivas e luminosas de um outro tempo, alegre, fugidio e cantante. Recordava-se de tudo, das menores coisas que vira em menino; e agora estava ele, ali, tão só, abandonado, numa desolação! O contraste brutal das situações feria-o pungitivamente. E, sob essas dolorosíssimas recordações, pensativo e melancólico, cabisbaixo, descia o adro da igreja, vagaroso e soturno, recolhido, como quem pensa na profundidade e no mistério das coisas.

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