Questões de Maridos
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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— O subjetivo... o subjetivo... Tudo através
do subjetivo, — costumava dizer o velho professor Morais Pancada.
Era um sestro. Outro sestro era sacar de uma
gaveta dois maços de cartas para demonstrar a proposição. Cada maço pertencia a
uma de duas sobrinhas, já falecidas. A destinatária das cartas era a tia delas,
mulher do professor, senhora de sessenta e tantos anos, e asmática. Esta
circunstância da asma é perfeitamente ociosa para o nosso caso; mas isto mesmo
lhes mostrará que o caso é verídico.
Luísa e Marcelina eram os nomes das
sobrinhas. O pai delas, irmão do professor, morrera pouco depois da mãe, que as
deixou crianças; de maneira que a tia é quem as criou, educou e casou. A
primeira casou com dezoito anos, e a segunda com dezenove, mas casaram no mesmo
dia. Uma e outra eram bonitas, ambas pobres.
— Coisa extraordinária! disse o professor à
mulher um dia.
— Que é?
— Recebi duas cartas, uma do Candinho, outra
do Soares, pedindo... pedindo o quê?
— Diga.
— Pedindo a Luísa...
— Os dois?
— E a Marcelina.
— Ah!
Este ah! traduzido literalmente, queria
dizer: — já desconfiava isso mesmo. O
extraordinário para o velho professor era que o pedido de ambos fosse feito na
mesma ocasião. Mostrou ele as cartas à mulher, que as leu, e aprovou a escolha.
Candinho pedia a Luísa, Soares a Marcelina. Eram ambos moços, e pareciam gostar
muito delas.
As sobrinhas, quando o tio lhes comunicou o
pedido, já estavam com os olhos baixos; não simularam espanto, porque elas
mesmas é que tinham dado autorização aos namorados. Não é preciso dizer que
ambas declararam aceitar os noivos; nem que o professor, à noite, escovou toda
a sua retórica para responder conveniente aos dois candidatos.
Outra coisa que não digo, — mas é por não
saber absolutamente, — é o que se passou entre as duas irmãs, uma vez
recolhidas naquela noite. Por alguns leves cochichos, pode crer-se que ambas se
davam por bem-aventuradas, propunham planos de vida, falavam deles, e, às vezes
não diziam nada, deixando-se estar com as mãos presas e os olhos no chão. É que
realmente gostavam dos noivos, e eles delas, e o casamento vinha coroar as suas
ambições.
Casaram-se. O professor visitou-as no fim de
oito dias, e achou-as felizes. Felizes, ou mais ou menos se passaram os primeiros
meses. Um dia, o professor teve de ir viver em Nova Friburgo, e as sobrinhas
ficaram na corte, onde os maridos eram empregados. No fim de algumas semanas de
estada em Nova Friburgo, eis a carta que a mulher do professor recebeu de
Luísa:
Titia,
Estimo que a senhora tenha passado bem, em
companhia do titio, e que dos incômodos vá melhor. Nós vamos bem. Candinho
agora anda com muito trabalho, e não pode deixar a corte nem um dia. Logo que
ele esteja mais desembaraçado iremos vê-los.
Eu continuo feliz; Candinho é um anjo, um
anjo do céu. Fomos domingo ao teatro da Fênix, e ri-me muito com a peça. Muito
engraçada! Quando descerem, se a peça ainda estiver em cena, hão de vê-la
também.
Até breve, escreva-me, lembranças a titio,
minhas e do Candinho.
Luísa.
Marcelina não escreveu logo, mas dez ou doze
dias depois. A carta dizia assim:
Titia,
Não lhe escrevi há mais tempo, por andar com
atrapalhações de casa; e aproveito esta abertazinha para lhe pedir que me mande
notícias suas, e de titio. Eu não sei se poderei ir lá; se puder, creia que
irei correndo. Não repare nas poucas linhas, estou muito aborrecida. Até breve.
Marcelina.
— Vejam, comentava o professor; vejam a
diferença das duas cartas. A de Marcelina com esta expressão: — estou muito aborrecida; e nenhuma
palavra do Soares. Minha mulher não reparou na diferença, mas eu notei-a, e
disse-lha, ela entendeu aludir a isso na resposta, e perguntou-lhe como é que
uma moça, casada de meses, podia ter aborrecimentos. A resposta foi esta:
Titia,
Recebi a sua carta, e estimo que não tenha
alteração na saúde nem o titio. Nós vamos bem e por aqui não há novidade.
Pergunta-me por que é que uma moça, casada de
fresco, pode ter aborrecimentos? Quem lhe disse que eu tinha aborrecimentos?
Escrevi que estava aborrecida, é verdade; mas então a gente não pode um momento
ou outro deixar de estar alegre?
É verdade que esses momentos meus são
compridos, muito compridos. Agora mesmo, se lhe dissesse o que se passa em mim,
ficaria admirada. Mas enfim Deus é grande...
Marcelina.
— Naturalmente, a minha velha ficou
desconfiada. Havia alguma coisa, algum mistério, maus-tratos, ciúmes, qualquer
coisa. Escreveu-lhe pedindo que dissesse tudo, em particular, que a carta dela
não seria mostrada a ninguém. Marcelina animada pela promessa, escreveu o
seguinte:
Titia,
Gastei todo o dia a pensar na sua carta, sem
saber se obedecesse ou não; mas, enfim, resolvi obedecer, não só porque a
senhora é boa e gosta de mim, como porque preciso de desabafar.
É verdade, titia, padeço muito, muito; não
imagina. Meu marido é um friarrão, não me ama, parece até que lhe causo
aborrecimento.
Nos primeiros oito dias ainda as coisas foram
bem: era a novidade do casamento. Mas logo depois comecei a sentir que ele não
correspondia ao meu sonho de marido. Não era um homem terno, dedicado, firme,
vivendo de mim e para mim. Ao contrário, parece outro, inteiramente outro,
caprichoso, intolerante, gelado, pirracento, e não ficarei admirada se me
disserem que ele ama a outra. Tudo é possível, por minha desgraça...
É isto que queria ouvir? Pois aí tem.
Digo-lhe em segredo; não conte a ninguém, e creia na sua desgraçada sobrinha do
coração.
Marcelina.
— Ao mesmo tempo que esta carta chegava às
mãos da minha velha, continuou o professor, recebia ela esta outra de Luísa:
Titia,
Há muitos dias que ando com vontade de
escrever-lhe; mas ora uma coisa, ora outra, e não tenho podido. Hoje há de ser
sem falta, embora a carta saia pequena.
Já lhe disse que continuo a ter uma vida
muito feliz? Não imagina; muito feliz. Candinho até me chama doida quando vê a
minha alegria; mas eu respondo que ele pode dizer o que quiser, e continuo a
ser feliz, contanto que ele o seja também, e pode crer que ambos o somos. Ah!
titia! em boa hora nos casamos! E Deus pague a titia e ao titio que aprovaram
tudo. Quando descem? Eu, pelo verão, quero ver se vou lá visitá-los.
Escreva-me.
Luísa.
E o professor, empunhando as cartas lidas,
continuou a comentá-las, dizendo que a mulher não deixou de advertir na
diferença dos destinos. Casadas ao mesmo tempo, por escolha própria, não
acharam a mesma estrela, e ao passo que uma estava tão feliz, a outra parecia
tão desgraçada.
— Consultou-me se devia indagar mais alguma
coisa de Marcelina, e até se conviria descer por causa dela; respondi-lhe que
não, que esperássemos; podiam ser arrufos de pequena monta. Passaram-se três
semanas sem cartas. Um dia a minha velha recebeu duas, uma de Luísa, outra de
Marcelina; correu primeiro à de Marcelina.
Titia,
Ouvi dizer que tinham passado mal estes
últimos dias. Será verdade? Se for verdade ou não, mande-me dizer. Nós vamos
bem, ou como Deus é servido. Não repare na tinta apagada; é de minhas lágrimas.
Marcelina.
A outra carta era longa; mas eis aqui o
trecho final. Depois de contar um espetáculo no Teatro Lírico, Luísa dizia
assim:
... Em suma, titia, foi uma noite cheia,
principalmente por estar ao lado do meu querido Candinho, que é cada vez mais
angélico. Não imagina, não imagina. Diga-me: o titio foi assim também quando
era moço? Agora, depois de velho, sei que é do mesmo gênero. Adeus, e até
breve, para irmos ao teatro juntas.
Luísa.
— As cartas continuaram a subir, sem
alteração de nota, que era a mesma para ambas. Uma feliz, outra desgraçada. Nós
afinal já estávamos acostumados com a situação. De certo tempo em diante, houve
mesmo de parte de Marcelina uma ou outra diminuição de queixas; não que ela se
desse por feliz ou satisfeita com a sorte; mas resignava-se, às vezes, e não
insistia muito. As crises amiudavam-se, e as queixas tornavam ao que eram.
O professor leu ainda muitas cartas das duas
irmãs. Todas confirmavam as primeiras; as duas últimas eram, principalmente,
características. Sendo longas, não é possível transcrevê-las; mas vai o trecho
principal. O de Luísa era este:
... O meu Candinho continua a fazer-me feliz,
muito feliz. Nunca houve marido igual na terra, titio; não houve, nem haverá;
digo isto porque é a verdade pura.
O de Marcelina era este:
... Paciência; o que me consola é que meu
filho ou filha, se viver, será a minha consolação: nada mais...
— E então? perguntaram as pessoas que
escutavam o professor.
— Então, quê?... O subjetivo... O subjetivo...
— Explique-se.
— Está explicado, ou adivinhado, pelo menos.
Comparados os dois maridos, o melhor, o mais terno, o mais fiel, era justamente
o de Marcelina; o de Luísa era apenas um bandoleiro agradável, às vezes seco.
Mas, um e outro, ao passarem pelo espírito das mulheres, mudavam de todo.
Luísa, pouco exigente, achava o Candinho um arcanjo; Marcelina, coração insaciável,
não achava no marido a soma de ternura adequada à sua natureza... O subjetivo...
o subjetivo...
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