Quem conta um conto...
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
CAPÍTULO 1
Eu compreendo que um homem goste de ver
brigar galos ou de tomar rapé. O rapé dizem os tomistas que alivia o cérebro. A
briga de galos é o Jockey Club dos
pobres. O que eu não compreendo é o gosto de dar notícias.
E todavia quantas pessoas não conhecerá o
leitor com essa singular vocação? O noveleiro não é tipo muito vulgar, mas
também não é muito raro. Há família numerosa deles. Alguns são mais peritos e
originais que outros. Não é noveleiro quem quer. É ofício que exige certas
qualidades de bom cunho, quero dizer as mesmas que se exigem do homem de
Estado. O noveleiro deve saber quando lhe convém dar uma notícia abruptamente,
ou quando o efeito lhe pede certos preparativos: deve esperar a ocasião e
adaptar-lhe os meios.
Não compreendo, como disse, o ofício de
noveleiro. É coisa muito natural que um homem diga o que sabe a respeito de
algum objeto; mas que tire satisfação disso, lá me custa a entender. Mais de
uma vez tenho querido fazer indagações a este respeito; mas a certeza de que
nenhum noveleiro confessa que o é tem impedido a realização deste meu desejo.
Não é só desejo, é também necessidade; ganha-se sempre em conhecer os caprichos
do espírito humano.
O caso de que vou falar aos leitores tem por
origem um noveleiro. Lê-se depressa, porque não é grande.
CAPÍTULO
2
Há coisa de sete anos vivia nesta boa cidade
um homem de seus trinta anos, bem apessoado e bem falante, amigo de conversar,
extremamente polido, mas extremamente amigo de espalhar novas.
Era um modelo do gênero.
Sabia como ninguém escolher o auditório, a
ocasião e a maneira de dar a notícia. Não sacava a notícia da algibeira como
quem tira uma moeda de vintém para dar a um mendigo.
Não, senhor.
Atendia mais que tudo às circunstâncias. Por
exemplo: ouvira dizer, ou sabia positivamente que o ministério pedira a
demissão ou ia pedi-la. Qualquer noveleiro diria simplesmente a coisa sem
rodeios. Luís da Costa, ou dizia a coisa simplesmente, ou adicionava-lhe certo
molho para torná-la mais picante.
Às vezes entrava, cumprimentava as pessoas
presentes, e se entre elas alguma havia metida em política, aproveitava o
silêncio causado pela sua entrada, para fazer-lhe uma pergunta deste gênero:
— Então, parece que os homens...
Os circunstantes perguntavam logo:
— Que é? que há?
Luís da Costa, sem perder o seu ar sério,
dizia singelamente:
— É o ministério que pediu demissão.
— Ah! sim? quando?
— Hoje.
— Sabe quem foi chamado?
— Foi chamado o Zózimo.
— Mas por que caiu o ministério?
— Ora, estava podre.
Etc., etc.
Ou então:
— Morreram como viveram.
— Quem? quem? quem?
Luís da Costa puxava os punhos e dizia
negligentemente:
— Os ministros.
Suponhamos agora que se tratava de uma pessoa
qualificada que devia vir no paquete: Adolfo Thiers ou o príncipe de Bismarck.
Luís da Costa entrava, cumprimentava
silenciosamente a todos, e em vez de dizer com simplicidade:
— Veio no paquete de hoje o príncipe de
Bismarck.
Ou então:
— O Thiers chegou no paquete.
Voltava-se para um dos circunstantes:
— Chegaria o paquete?
— Chegou, dizia o circunstante.
— O Thiers veio?
Aqui entrava a admiração dos ouvintes, com
que se deliciava Luís da Costa, razão principalmente do seu ofício.
CAPÍTULO
3
Não se pode negar que este prazer era
inocente e quando muito singular.
Infelizmente não há bonito sem senão, nem
prazer sem amargura. Que mel não deixa um travo de veneno? perguntava o poeta
da Jovem Cativa, e eu creio que
nenhum, nem sequer o de alvissareiro.
Luís da Costa experimentou um dia as
asperezas do seu ofício.
Eram duas horas da tarde. Havia pouca gente
na loja do Paula Brito, cinco pessoas apenas. Luís da Costa entrou com o rosto
fechado como homem que vem pejado de alguma notícia.
Apertou a mão a quatro das pessoas presentes;
a quinta apenas recebeu um cumprimento, porque não se conheciam. Houve um
rápido instante de silêncio, que Luís da Costa aproveitou para tirar o lenço da
algibeira e enxugar o rosto. Depois olhou para todos, e soltou secamente estas
palavras:
— Então fugiu a sobrinha do Gouveia? disse
ele rindo.
— Que Gouveia? disse um dos presentes.
— O major Gouveia, explicou Luís da Costa.
Os circunstantes ficaram muito calados e
olharam de esguelha para o quinto personagem, que por sua parte olhava para
Luís da Costa.
— O major Gouveia da Cidade Nova? perguntou o
desconhecido ao noveleiro.
— Sim, senhor.
Novo e mais profundo silêncio.
Luís da Costa, imaginando que o silêncio era
efeito da bomba que acabava de queimar, entrou a referir os pormenores da fuga
da moça em questão. Falou de um namoro com um alferes, da oposição do major ao
casamento, do desespero dos pobres namorados, cujo coração, mais eloquente que
a honra, adotara o alvitre de saltar por cima dos moinhos.
O silêncio era sepulcral.
O desconhecido ouvia atentamente a narrativa
de Luís da Costa, meneando com muita placidez uma grossa bengala que tinha na
mão.
Quando o alvissareiro acabou, perguntou-lhe o
desconhecido:
— E quando foi esse rapto?
— Hoje de manhã.
— Oh!
— Das 8 para as 9 horas.
— Conhece o major Gouveia?
— De nome.
— Que ideia forma dele?
— Não formo ideia nenhuma. Menciono o fato
por duas circunstâncias. A primeira é que a rapariga é muito bonita...
— Conhece-a?
— Ainda ontem a vi.
— Ah! A segunda circunstância...
— A segunda circunstância é a crueldade de
certos homens em tolher os movimentos do coração da mocidade. O alferes de que
se trata dizem-me que é um moço honesto, e o casamento seria, creio eu,
excelente. Por que razão queria o major impedi-lo?
— O major tinha razões fortes, observou o
desconhecido.
— Ah! conhece-o?
— Sou eu.
Luís da Costa ficou petrificado. A cara não
se distinguia da de um defunto, tão imóvel e pálida ficou. As outras pessoas
olhavam para os dois sem saber o que iria sair dali. Deste modo correram cinco
minutos.
CAPÍTULO
4
No fim de cinco minutos, o major Gouveia
continuou:
— Ouvi toda a sua narração e diverti-me com
ela. Minha sobrinha não podia fugir hoje de minha casa, visto que há quinze
dias se acha em Juiz de Fora.
Luís da Costa ficou amarelo.
— Por essa razão ouvi tranquilamente a
história que o senhor acaba de contar com todas as suas peripécias. O fato, se
fosse verdadeiro, devia causar naturalmente espanto, porque, além do mais,
Lúcia é muito bonita, e o senhor o sabe porque a viu ontem...
Luís da Costa tornou-se verde.
— A notícia, entretanto, pode ter-se
espalhado, continuou o major Gouveia, e eu desejo liquidar o negócio
pedindo-lhe que me diga de quem a ouviu...
Luís da Costa ostentou todas as cores do íris.
— Então? disse o major passados alguns
instantes de silêncio.
— Senhor major, disse com voz trêmula Luís da
Costa, eu não podia inventar semelhante notícia. Nenhum interesse tenho nela.
Evidentemente alguém ma contou.
— É justamente o que eu desejo saber.
— Não me lembro...
— Veja se se lembra, disse o major com
doçura.
Luís da Costa consultou sua memória; mas
tantas coisas ouvia e tantas repetia, que já não podia atinar com a pessoa que
lhe contara a história do rapto.
As outras pessoas presentes, vendo o caminho
desagradável que as coisas podiam ter, trataram de meter o caso à bulha; mas o
major, que não era homem de graças, insistiu com o alvissareiro para que o
esclarecesse a respeito do inventor da balela.
— Ah! agora me lembra, disse de repente Luís
da Costa, foi o Pires.
— Que Pires?
— Um Pires que eu conheço muito
superficialmente.
— Bem, vamos ter com o Pires.
— Mas, Sr. major...
O major já estava de pé, apoiado na grossa
bengala, e com ar de quem estava pouco disposto a discussões. Esperou que Luís
da Costa se levantasse também. O alvissareiro não teve remédio senão imitar o
gesto do major, não sem tentar ainda um:
— Mas, Sr. major...
— Não há mas, nem meio mas. Venha comigo;
porque é necessário deslindar o negócio hoje mesmo. Sabe onde mora esse tal
Pires?
— Mora na Praia Grande, mas tem escritório na
Rua dos Pescadores.
— Vamos ao escritório.
Luís da Costa cortejou os outros e saiu ao
lado do major Gouveia, a quem deu respeitosamente a calçada e ofereceu um
charuto. O major recusou o charuto, dobrou o passo e os dois seguiram na
direção da Rua dos Pescadores.
CAPÍTULO
5
— O Sr. Pires?
— Foi à secretaria da Justiça.
— Demora-se?
— Não sei.
Luís da Costa olhou para o major ao ouvir
estas palavras do criado do Sr. Pires. O major disse fleugmaticamente:
— Vamos à secretaria da Justiça.
E ambos foram a trote largo na direção da Rua
do Passeio. Iam-se aproximando as três horas, e Luís da Costa, que jantava
cedo, começava a ouvir do estômago uma lastimosa petição. Era-lhe, porém,
impossível fugir às garras do major. Se o Pires tivesse embarcado para Santos,
é provável que o major o levasse até lá antes de jantar.
Tudo estava perdido.
Chegaram enfim à secretaria, bufando como
dois touros.
Os empregados vinham saindo, e um deles deu
notícia certa do esquivo Pires; disse-lhes que saíra dali, dez minutos antes,
num tílburi.
— Voltemos à Rua dos Pescadores, disse
pacificamente o major.
— Mas, senhor...
A única resposta do major foi dar-lhe o braço
e arrastá-lo na direção da Rua dos Pescadores.
Luís da Costa ia furioso. Começava a
compreender a plausibilidade e até a legitimidade de um crime. O desejo de
estrangular o major pareceu-lhe um sentimento natural. Lembrou-se de ter
condenado, oito dias antes, como jurado, um criminoso de morte, e teve horror
de si mesmo.
O major, porém, continuava a andar com aquele
passo rápido dos majores que andam depressa. Luís da Costa ia rebocado. Era-lhe
literalmente impossível apostar carreira com ele.
Eram três e cinco minutos quando chegaram defronte
do escritório do Sr. Pires. Tiveram o gosto de dar com o nariz na porta.
O major Gouveia mostrou-se aborrecido com o
fato; como era homem resoluto, depressa se consolou do incidente.
— Não há dúvida, disse ele, iremos à Praia
Grande.
— Isso é impossível! clamou Luís da Costa.
— Não é tal, respondeu tranquilamente o
major, temos barca e custa-nos um cruzado a cada um: eu pago a sua passagem.
— Mas, senhor, a esta hora...
— Que tem?
— São horas de jantar, suspirou o estômago de
Luís da Costa.
— Pois jantaremos antes.
Foram dali a um hotel e jantaram. A companhia
do major era extremamente aborrecida para o desastrado alvissareiro. Era
impossível livrar-se dela; Luís da Costa portou-se o melhor que pôde. Demais, a
sopa e o primeiro prato foi o começo da reconciliação. Quando veio o café e um
bom charuto, Luís da Costa estava resolvido a satisfazer o seu anfitrião em
tudo o que lhe aprouvesse.
O major pagou a conta e saíram ambos do
hotel. Foram direitos à estação das barcas de Niterói; meteram-se na primeira
que saiu e transportaram-se à imperial cidade.
No trajeto, o major Gouveia conservou-se tão
taciturno como até então. Luís da Costa, que já estava mais alegre, cinco ou
seis vezes tentou atar conversa com o major; mas foram esforços inúteis. Ardia
entretanto por levá-lo até a casa do Sr. Pires, que explicaria as coisas como
as soubesse.
CAPÍTULO
6
O Sr. Pires morava na Rua da Praia. Foram
direitinhos à casa dele. Mas se os viajantes haviam jantado, também o Sr. Pires
fizera o mesmo; e como tinha por costume ir jogar o voltarete em casa do Dr.
Oliveira, em São Domingos, para lá seguira vinte minutos antes.
O major ouviu esta notícia com a resignação
filosófica de que estava dando provas desde as duas horas da tarde. Inclinou o
chapéu mais à banda e olhando de esguelha para Luís da Costa, disse:
— Vamos a São Domingos.
— Vamos a São Domingos, suspirou Luís da
Costa.
A viagem foi de carro, o que de algum modo
consolou o noveleiro.
Na casa do Dr. Oliveira passaram pelo
dissabor de bater cinco vezes, antes que viessem abrir.
Enfim vieram.
— Está cá o Sr. Pires?
— Está, sim, senhor, disse o moleque.
Os dois respiraram.
O moleque abriu-lhes a porta da sala, onde
não tardou que aparecesse o famoso Pires, l’introuvable.
Era um sujeitinho baixinho e alegrinho.
Entrou na ponta dos pés, apertou a mão a Luís da Costa e cumprimentou
cerimoniosamente ao major Gouveia.
— Queiram sentar-se.
— Perdão, disse o major, não é preciso que
nos sentemos; desejamos pouca coisa.
O Sr. Pires curvou a cabeça e esperou.
O major voltou-se então para Luís da Costa e
disse:
— Fale.
Luís da Costa fez das tripas coração e
exprimiu-se nestes termos:
— Estando eu hoje na loja do Paula Brito
contei a história do rapto de uma sobrinha do Sr. major Gouveia, que o senhor
me referiu pouco antes do meio-dia. O major Gouveia é este cavalheiro que me
acompanha, e declarou que o fato era uma calúnia, visto sua sobrinha estar em
Juiz de Fora, há quinze dias. Intenta contudo chegar à fonte da notícia e
perguntou-me quem me havia contado a história; não hesitei em dizer que fora o
senhor. Resolveu então procurá-lo, e não temos feito outra coisa desde as duas
horas e meia. Enfim, encontramo-lo.
Durante este discurso, o rosto do Sr. Pires
apresentou todas as modificações do espanto e do medo. Um ator, um pintor, ou
um estatuário teria ali um livro inteiro para folhear e estudar. Acabado o
discurso, era necessário responder-lhe, e o Sr. Pires o faria de boa vontade,
se se lembrasse do uso da língua. Mas não; ou não se lembrava, ou não sabia que
uso faria dela. Assim correram uns três a quatro minutos.
— Espero as suas ordens, disse o major, vendo
que o homem não falava.
— Mas, que quer o senhor? balbuciou o Sr.
Pires.
— Quero que me diga de quem ouviu a notícia
transmitida a este senhor. Foi o senhor quem lhe disse que minha sobrinha era
bonita?
— Não lhe disse tal, acudiu o Sr. Pires; o
que eu disse foi que me constava ser bonita.
— Vê? disse o major voltando-se para Luís da
Costa.
Luís da Costa começou a contar as tábuas do
teto.
O major dirigiu-se depois ao Sr. Pires:
— Mas vamos lá, disse; de quem ouviu a
notícia?
— Foi de um empregado do Tesouro.
— Onde mora?
— Em Catumbi.
O major voltou-se para Luís da Costa, cujos
olhos, tendo já contado as tábuas do teto, que eram vinte e duas, começavam a
examinar detidamente os botões do punho da camisa.
— Pode retirar-se, disse o major; não é mais
preciso aqui.
Luís da Costa não esperou mais; apertou a mão
do Sr. Pires, balbuciou um pedido de desculpa, e saiu. Já estava a trinta
passos, e ainda lhe parecia estar colado ao terrível major. Ia justamente a
sair uma barca; Luís da Costa deitou a correr, e ainda a alcançou, perdendo
apenas o chapéu, cujo herdeiro foi um cocheiro necessitado.
Estava livre.
CAPÍTULO
7
Ficaram sós o major e o Sr. Pires.
— Agora, disse o primeiro, há de ter a
bondade de me acompanhar à casa desse empregado do Tesouro... Como se chama?
— O bacharel Plácido.
— Estou às suas ordens; tem passagem e carro
pago.
O Sr. Pires fez um gesto de aborrecimento, e
murmurou:
— Mas eu não sei... se...
— Se?
— Não sei se me é possível nesta ocasião...
— Há de ser. Penso que é um homem honrado.
Não tem idade para ter filhas moças, mas pode vir a tê-las, e saberá se é
agradável que tais invenções andem na rua.
— Confesso que as circunstâncias são
melindrosas; mas não poderíamos...
— O quê?
— Adiar?
— Impossível.
O Sr. Pires mordeu o lábio inferior; meditou
alguns instantes, e afinal declarou que estava disposto a acompanhá-lo.
— Acredite, Sr. major, disse ele concluindo,
que só as circunstâncias especiais deste caso me obrigariam a ir à cidade.
O major inclinou-se.
O Sr. Pires foi despedir-se do dono da casa,
e voltou para acompanhar o implacável major, em cujo rosto se lia a mais franca
resolução.
A viagem foi tão silenciosa como a primeira.
O major parecia uma estátua; não falava e raras vezes olhava para o seu
companheiro.
A razão foi compreendida pelo Sr. Pires, que
matou as saudades do voltarete, fumando sete cigarros por hora.
Enfim chegaram a Catumbi.
Desta vez foi o major Gouveia mais feliz que
da outra: achou o bacharel Plácido em casa.
O bacharel Plácido era o seu próprio nome
feito homem. Nunca a pachorra tivera mais fervoroso culto. Era gordo, corado,
lento e frio. Recebeu os dois visitantes com a benevolência de um Plácido
verdadeiramente plácido.
O Sr. Pires explicou o objeto da visita.
— É verdade que eu lhe falei de um rapto,
disse o bacharel, mas não foi nos termos em que o senhor o repetiu. O que eu
disse foi que o namoro da sobrinha do major Gouveia com um alferes era tal que
até já se sabia do projeto de rapto.
— E quem lhe disse isso, Sr. bacharel?
perguntou o major.
— Foi o capitão de artilharia Soares.
— Onde mora?
— Ali em Mata-porcos.
— Bem, disse o major.
E voltando-se para o Sr. Pires:
— Agradeço-lhe o incômodo, disse; não lhe
agradeço, porém, o acréscimo. Pode ir embora; o carro tem ordem de o acompanhar
até à estação das barcas.
O Sr. Pires não esperou novo discurso;
despediu-se e saiu. Apenas entrou no carro deu dois ou três socos em si mesmo e
fez um solilóquio extremamente desfavorável à sua pessoa.
— É bem feito, dizia o Sr. Pires; quem me
manda ser abelhudo? Se só me ocupasse com o que me diz respeito, estaria a esta
hora muito descansado e não passaria por semelhante dissabor. É bem feito!
CAPÍTULO
8
O bacharel Plácido encarou o major, sem
compreender a razão por que ficara ali, quando o outro fora embora. Não tardou
que o major o esclarecesse. Logo que o Sr. Pires saiu da sala, disse ele:
— Queira agora acompanhar-me à casa do
capitão Soares.
— Acompanhá-lo! exclamou o bacharel mais
surpreendido do que se lhe caísse o nariz no lenço de tabaco.
— Sim, senhor.
— Que pretende fazer?
— Oh! nada que o deva assustar. Compreende
que se trata de uma sobrinha, e que um tio tem necessidade de chegar à origem
de semelhante boato. Não crimino os que o repetiram, mas quero haver-me com o
que o inventou.
O bacharel recalcitrou: a sua pachorra dava
mil razões para demonstrar que sair de casa às ave-marias para ir a Mata-porcos
era um absurdo. A nada atendia o major Gouveia, e com o tom intimador que lhe
era peculiar, antes intimava do que persuadia o gordo bacharel.
— Mas há de confessar que é longe, observou
este.
— Não seja essa a dúvida, acudiu o outro;
mande chamar um carro que eu pago.
O bacharel Plácido coçou a orelha, deu três
passos na sala, suspendeu a barriga e sentou-se.
— Então? disse o major ao cabo de algum tempo
de silêncio.
— Refleti, disse o bacharel; é melhor irmos a
pé; eu jantei há pouco e preciso digerir. Vamos a pé...
— Bem, estou às suas ordens.
O bacharel arrastou a sua pessoa até a
alcova, enquanto o major, com as mãos nas costas, passeava na sala meditando e
fazendo, a espaços, um gesto de impaciência. Gastou o bacharel cerca de vinte e
cinco minutos em preparar a sua pessoa, e saiu enfim à sala, quando o major ia
já tocar a campainha para chamar alguém.
— Pronto?
— Pronto.
— Vamos!
— Deus vá conosco.
Saíram os dois na direção de Mata-porcos.
Se uma pipa andasse seria o bacharel Plácido;
já porque a gordura não lho consentia, já porque desejara pregar uma peça ao
importuno, o bacharel não ia sequer com passo de gente. Não andava...
arrastava-se. De quando em quando parava, respirava e bufava; depois seguia
vagarosamente o caminho.
Com este era impossível o major empregar o
sistema de reboque que tão bom efeito teve com Luís da Costa. Ainda que o
quisesse obrigar a andar era impossível, porque ninguém arrasta oito arrobas
com a simples força do braço.
Tudo isto punha o major em apuros. Se visse
passar um carro, tudo estava acabado, porque o bacharel não resistiria ao seu
convite intimativo; mas os carros tinham-se apostado para não passar ali, ao
menos vazios, e só de longe em longe um tílburi vago convidava, a passo lento,
os fregueses.
O resultado de tudo isto foi que, só às oito
horas, chegaram os dois à casa do capitão Soares. O bacharel respirou à larga,
enquanto o major batia palmas na escada.
— Quem é? perguntou uma voz açucarada.
— O Sr. capitão? disse o major Gouveia.
— Eu não sei se já saiu, respondeu a voz; vou
ver.
Foi ver, enquanto o major limpava a testa e
se preparava para tudo o que pudesse sair de semelhante embrulhada. A voz não
voltou senão dali a oito minutos, para perguntar com toda a singeleza:
— O senhor quem é?
— Diga que é o bacharel Plácido, acudiu o
indivíduo deste nome, que ansiava por arrumar a católica pessoa em cima de
algum sofá.
A voz foi dar a resposta e daí a dois minutos
voltou a dizer que o bacharel Plácido podia subir.
Subiram os dois.
O capitão estava na sala e veio receber à
porta o bacharel e o major. A este conhecia também, mas eram apenas
cumprimentos de chapéu.
— Queiram sentar-se.
Sentaram-se.
CAPÍTULO
9
— Que mandam nesta sua casa? perguntou o
capitão Soares.
O bacharel usou da palavra:
— Capitão, eu tive a infelicidade de repetir
aquilo que você me contou a respeito da sobrinha do Sr. major Gouveia.
— Não me lembra; que foi? disse o capitão com
uma cara tão alegre como a de homem a quem estivessem torcendo um pé.
— Disse-me você, continuou o bacharel
Plácido, que o namoro da sobrinha do Sr. major Gouveia era tão sabido que até
já se falava de um projeto de rapto...
— Perdão! interrompeu o capitão. Agora me
lembro que alguma coisa lhe disse, mas não foi tanto como você acaba de
repetir.
— Não foi?
— Não.
— Então que foi?
— O que eu disse foi que havia notícia vaga
de um namoro da sobrinha de vossa senhoria com um alferes. Nada mais disse.
Houve equívoco da parte do meu amigo Plácido.
— Sim, há alguma diferença, concordou o
bacharel.
— Há, disse o major deitando-lhe os olhos por
cima do ombro.
Seguiu-se um silêncio.
Foi o major Gouveia o primeiro que falou.
— Enfim, senhores, disse ele, ando desde as
duas horas da tarde na indagação da fonte da notícia que me deram a respeito de
minha sobrinha. A notícia tem diminuído muito, mas ainda há aí um namoro de
alferes que incomoda. Quer o Sr. capitão dizer-me a quem ouviu isso?
— Pois não, disse o capitão; ouvi-o ao
desembargador Lucas.
— É meu amigo!
— Tanto melhor.
— Acho impossível que ele dissesse isso,
disse o major levantando-se.
— Senhor! exclamou o capitão.
— Perdoe-me, capitão, disse o major caindo em
si. Há de concordar que ouvir a gente o seu nome assim maltratado por culpa de
um amigo...
— Nem ele disse por mal, observou o capitão
Soares. Parecia até lamentar o fato, visto que sua sobrinha está para casar com
outra pessoa...
— É verdade, concordou o major. O
desembargador não era capaz de injuriar-me; naturalmente ouviu isso a alguém.
— É provável.
— Tenho interesse em saber a fonte de
semelhante boato. Acompanhe-me à
casa dele.
— Agora!
— É indispensável.
— Mas sabe que ele mora no Rio Comprido?
— Sei; iremos de carro.
O bacharel Plácido aprovou esta resolução e
despediu-se dos dois militares.
— Não podíamos adiar isso para depois?
perguntou o capitão logo que o bacharel saiu.
— Não, senhor.
O capitão estava em sua casa; mas o major
tinha tal império na voz ou no gesto quando exprimia a sua vontade, que era
impossível resistir-lhe. O capitão não teve remédio senão ceder.
Preparou-se, meteram-se num carro e foram na
direção do Rio Comprido, onde morava o desembargador.
O desembargador era um homem alto e magro,
dotado de excelente coração, mas implacável contra quem quer que lhe
interrompesse uma partida de gamão.
Ora, justamente na ocasião em que os dois lhe
bateram à porta, jogava ele o gamão com o coadjutor da freguesia, cujo dado era
tão feliz que em menos de uma hora lhe dera já cinco gangas. O desembargador
fumava... figuradamente falando, e o coadjutor sorria, quando o moleque foi dar
parte de que duas pessoas estavam na sala e queriam falar com o desembargador.
O digno sacerdote da justiça teve ímpetos de
atirar o copo à cara do moleque; conteve-se, ou antes traduziu o seu furor num
discurso furibundo contra os importunos e maçantes.
— Há de ver que é algum procurador à procura
de autos, ou à cata de autos, ou à cata de informações. Que os leve o diabo a
todos eles.
— Vamos, tenha paciência, dizia-lhe o
coadjutor. Vá, vá ver o que é, que eu o espero. Talvez que esta interrupção
corrija a sorte dos dados.
— Tem razão, é possível, concordou o
desembargador, levantando-se e
dirigindo-se para a sala.
CAPÍTULO
10
Na sala teve a surpresa de achar dois
conhecidos.
O capitão levantou-se sorrindo e pediu-lhe
desculpa do incômodo que lhe
vinha
dar. O major levantou-se também, mas não sorria.
Feitos os cumprimentos foi exposta a questão.
O capitão Soares apelou para a memória do desembargador a quem dizia ter ouvido
a notícia do namoro da sobrinha do major Gouveia.
— Recordo-me ter-lhe dito, respondeu o
desembargador, que a sobrinha de meu amigo Gouveia piscara o olho a um alferes,
o que lamentei do fundo d’alma, visto estar para casar. Não lhe disse, porém,
que havia namoro...
O major não pôde disfarçar um sorriso, vendo
que o boato ia a diminuir à proporção que se aproximava da fonte. Estava
disposto a não dormir sem dar com ela.
— Muito bem, disse ele; a mim não basta esse
dito; desejo saber a quem o ouviu, a fim de chegar ao primeiro culpado de
semelhante boato.
— A quem o ouvi?
— Sim.
— Foi ao senhor.
— A mim!
— Sim, senhor; sábado passado.
— Não é possível!
— Não se lembra que me disse na Rua do
Ouvidor, quando falávamos das proezas da...
— Ah! mas não foi isso! exclamou o major. O
que eu lhe disse foi outra coisa. Disse-lhe que era capaz de castigar minha
sobrinha se ela, estando agora para casar, deitasse os olhos a algum alferes
que passasse.
— Nada mais? perguntou o capitão.
— Mais nada.
— Realmente é curioso.
O major despediu-se do desembargador, levou o
capitão até Mata-porcos e foi direito para casa praguejando contra si e todo o
mundo.
Ao entrar em casa estava já mais aplacado. O
que o consolou foi a ideia de que o boato podia ser mais prejudicial do que
fora. Na cama ainda pensou no acontecimento, mas já se ria da maçada que dera
aos noveleiros. Suas últimas palavras antes de dormir foram:
— Quem conta um conto...
---
Imagem:
Imagem:
Revista Vamos Ler!, edição de 03/08/1939.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...