Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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CAPÍTULO 1
Ao sair do gabinete do pai, o bacharel Luís Fonseca
trazia o rosto fechado, rangia os dentes e dava-se interiormente a todos os
diabos de ambos os mundos, este e o outro. Entrou na alcova e fechou-se por
dentro. Alguns minutos passeou de um lado para outro, gesticulando e murmurando
palavras soltas, até que se sentou numa cadeira de balanço e fumou seguidamente
dois charutos. Vieram chamá-lo para jantar e não quis; mas recebendo um recado
intimativo do desembargador, seu pai, lá se foi arrastando até à mesa, onde
pouco mais de nada comeu.
A causa de todo este mistério era nem mais nem menos
um casamento. Logo depois do almoço desse dia, que era um domingo, o desembargador
Fonseca mandou chamar o filho ao seu gabinete, e mal o vira entrar fechou a
porta. Luís franziu a testa, mas esperou.
– Luís, disse o pai depois de alguns instantes: eu e
tua mãe assentamos em fazer-te feliz. Estamos velhos e queremos deixar-te arranjado
e tranquilo. Resolvemos casar-te.
Luís estremeceu.
Naquela ocasião a ideia de casar valia o mesmo para o
bacharel que a ideia de se atirar de um terceiro andar à rua. Sua vida era a
coisa mais simples deste mundo e ao mesmo tempo a menos matrimonial: vadiava e
divertia-se. Estava então na aurora o Alcazar Lírico da Rua da Vala, onde o
bacharel passava as noites, digo mal, uma parte das noites, que o resto ia ele
passá-las nos hotéis e outros sítios. Um casamento nestas alturas equivalia a
um assassinato. O instinto de conservação chegou a abrir os lábios do moço, mas
o pai, que adivinhou a objeção, continuou:
– A vida que levas é própria da tua idade, mas é já
tempo de lhe pôr cobro; o casamento que te ofereço – poupa-me a ocasião de
dizer que te imponho – é o meio mais eficaz de dar nova direção à tua vida.
Tens uma carta de bacharel e um escritório de advocacia, mas nem o escritório,
nem a carta te servem de coisa nenhuma. Isto não é vida, ou pelo menos não é
vida séria. Com vinte e oito anos, creio que é tempo de te emendares.
O desembargador, que desde o adjetivo eficaz já tinha
tirado a boceta do bolso, abriu-a tranquilamente, tomou uma pitada, sem olhar
para o filho, cujo rosto se fazia de mil cores, e que procurava alguma coisa
que opor ao libelo do pai.
O pai continuou:
– Estou certo de que ficarás muito contente quando
souberes a pessoa que te destino: é uma moça altamente prendada e digna de
honrar o seu e o teu nome. Sei que ela gosta de ti, nem de outro modo poderia
fazer-se o casamento.
Luís ouviu com indiferença este panegírico da sua
noiva; fosse ela a formosa Helena ou a virtuosa Lucrécia, era para ele a mesma
coisa, isto é, um fardo muito pesado, que ele desde já repelia do seu coração.
– Casas com tua prima Fernanda, concluiu o desembargador.
Um sorriso de lástima entreabriu os lábios de Luís ao
ouvir o nome da noiva. A razão era que de todas as mulheres então existentes
debaixo do sol, Fernanda lhe parecia a mais aborrecível de todas. Não negava
algumas graças naturais; mas achava um ar de mortal insipidez. Nada que ela
vestisse lhe parecia bem; e tudo o que ela dissesse lhe parecia mal. Mosca
morta foi o nome com que ele a brindou um dia de anos, ao ver a indiferença que
havia entre ela e as outras moças alegres e vivazes. Queria a sua desgraça que
ao infortúnio do casamento se seguisse o do casamento com Fernanda.
– Se ao menos, dizia ele consigo depois na alcova, se
ao menos me enforcassem com uma corda de seda, vá. Mas, não, senhor;
enforcam-me com uma corda de estopa. Em cima de queda, coice. Matam-me e
esfolam-me ao mesmo tempo.
O pai do bacharel ficou assaz admirado com a impressão
que viu causar no filho o nome da noiva. Imaginava ele, pelo contrário, que
Fernanda seria o mel de que fala o poeta, com que se adoça a beira da xícara do
remédio para fazê-lo beber à criança. Nem por isso recuou; era disposição sua
que o filho casasse, e por mais amargo que lhe parecesse o transe, o filho
havia de obedecer.
– Estamos em dezembro, disse ele levantando-se,
casas-te em março. Estou certo de que em abril me virás agradecer esta
resolução.
O desembargador despediu o filho com um gesto. Luís
apressou-se a sair, não tendo articulado uma só palavra, mas firmemente
resolvido a afrontar tudo, antes de que entregar o colo ao cutelo.
– Não! exclamava ele na alcova logo depois da
entrevista que acabo de resumir, não! Vai longe o tempo em que os pais
preparavam os casamentos ainda contra a vontade dos filhos. Não sou criança nem
menina inexperiente; seria até ridículo que eu me prestasse a semelhante
comédia.
Com estas e semelhantes reflexões, encheu Luís Fonseca
tempo até a hora de jantar, a que, como vimos, não pôde deixar de ir. Às
ave-marias saiu de casa para ir narrar as suas desgraças a seus amigos íntimos.
CAPÍTULO 2
Um dos amigos morava na Rua dos Ciganos, que era, como
sabem, o nome antigo da atual Rua da Constituição. Quis a sua fortuna que em
casa desse encontrasse o outro amigo, e que uma só narração bastasse para unir
as lágrimas deles às suas. Lágrimas é figura.
Ernesto Guimarães chamava-se o dono da casa; o segundo
acudia ao nome de Martins. Tinham ambos pouco mais ou menos a mesma idade,
trinta anos. Martins era baixinho, cheio de corpo, buliçoso e alegre. Era menos
alegre e menos buliçoso Ernesto Guimarães; media um palmo mais que o outro, e
era além disso um bonito rapaz, coisa que se não podia dizer do Martins, e
muito mais naturalmente elegante do que este.
Luís Fonseca achou-os a folhear um álbum de dançarinas
de Paris, lembrança que o Martins trouxera da sua viagem à Europa alguns meses
antes. Com o louvável desejo de que Ernesto Guimarães admirasse os portentos
coreográficos da grande cidade, o alegre viajante saíra de casa com o álbum e
foi dá-lo de presente ao amigo. A chegada de Luís Fonseca foi saudada com estrepitosas
manifestações, que ficaram no meio, ao verem os dois a cara transtornada do
filho do desembargador.
– Que temos de novo? perguntou Ernesto.
– Há arenga no beco? inquiriu Martins.
– Estás arrufado com a Lúcia, aposto.
– Ou perdeste a carteira.
Luís Fonseca deu um grande golpe com o punho cerrado
em cima da mesa, e esta resposta explicou aos dois amigos que o assunto era
mais sério do que nenhum dos que eles supunham, motivo pelo qual Ernesto
Guimarães fechou o álbum, Martins tirou o charuto da boca, e ambos assumiram o
ar interrogativo que o caso pedia e a sua curiosidade lhes indicava.
Luís explicou em poucas palavras a situação. A
impressão dos dois amigos foi diferente; Martins achou que o caso era para rir
e que o desembargador apenas merecia compaixão.
– Teu pai, disse ele, está caduco… ou doido.
Ernesto Guimarães estava de acordo em que a exigência
do desembargador era pelo menos um despropósito, mas nem o achava doido ou
caduco, nem via que Luís pudesse facilmente esquivar-se ao casamento. O
bacharel teve ímpetos de pegar o chapéu ao ouvir semelhante opinião. Ernesto
insistiu:
– Não vejo que possas fugir ao casamento, se ele
insistir, salvo se rasgadamente lhe desobedeceres, o que me não parece bom.
– Parece-te bom que me case contra a vontade, só para
obedecer a um capricho?
– É um sacrifício, convenho.
– Uma impossibilidade.
– Eu assim penso, confirmou Martins.
– Tu estás ainda debaixo da impressão da conversa com
teu pai. Achas que o casamento é detestável, e eu penso do mesmo modo, mas não
vejo praticamente um meio de lhe fugir. Há certamente um; é recusares; mas teu
pai com certeza põe-te na rua, e eu não vejo que haja muita gente disposta a
perder as suas coisas, só com o fim de te encher as algibeiras. É sacrifício de
que não há exemplo. Além de que, seria uma coisa muito feia e que te faria mal,
o saber-se que teu pai te expulsara de casa, ainda mesmo não tendo razão.
Estas palavras deixaram de boca aberta os dois
ouvintes; a substância delas e o modo com que foram ditas, tudo era novo para
eles, que até então conheciam em Ernesto Guimarães um rapaz como eles, e nunca
esperavam ouvir um tal sermão de lágrimas. Martins aventurou a ideia de que
Ernesto estava peitado pelo desembargador, e Luís achou a ideia tão alegre que
não pôde deixar de rir.
Até às nove horas da noite foi o casamento de Luís
assunto da conversa entre os três amigos, que àquela hora foram dar uma vista
d’olhos ao Alcazar. Uma pessoa, de quem já se falou neste capítulo, deu-lhes a
honra de cear com eles, e afirma um entregador do Jornal do Comércio que os viu sair do hotel às três horas e meia da
noite. Valha a verdade: Ernesto entrou em casa às quatro horas.
– Vamos lá, dizia ele consigo na ocasião em que abria
a porta, é preciso salvar o Luís. Hei de achar algum meio que salve tudo,
pensarei nisto amanhã.
CAPÍTULO 3
No dia seguinte estava achado o meio. Luís recebeu um
bilhetinho do amigo concebido nestes termos:
Vem hoje à Rua dos Ciganos, às três horas da tarde, ou
às sete, se quiseres ir jantar à casa. Tenho uma ideia boa que te pode salvar.
Luís Fonseca não esperou as sete horas; foi à casa
dizer que jantava fora, e às três horas estava na Rua dos Ciganos.
– Então que achaste? perguntou ele apenas entrou.
– Um meio que me não parece mau.
– Vejamos.
– Espera. Disseste-me que tua prima Fernanda gosta de
ti?
– Assim o diz meu pai.
– E ele acrescenta que se ela não gostasse de ti, não
se faria o casamento?
– Justo.
– Pois bem; talvez se arranje tudo.
– Como?
– Fazendo com que ela goste de outro.
Luís deixou cair os braços.
Entrara com a esperança de que a dificuldade ia ser
vencida, e para isso contava com um meio realmente decisivo e imediato. A ideia
de Ernesto pareceu ridícula. Ia dizer com todas as letras, quando o amigo
continuou:
– Achas isto naturalmente muito vago; também a mim me
parece; mas pensando bem, não vejo que seja de impossível execução.
– Sim? disse Luís com ironia.
– Sim.
– Diremos então ao coração de Fernanda: não te voltes
para a direita, que há um precipício, volta-te…
– Volta-te para a esquerda, é a única coisa que se lhe
dirá. Não se deve falar mal de ti; que isso é agravar o mal e enraizar o amor.
O que cumpre fazer é chamá-la para outro ponto.
– Tu estás doido! Não me dirás de que maneira se fará
esse chamado?
– Simplesmente, respondeu com tranquilidade Ernesto
Guimarães; incumba-se alguém de lhe captar a atenção, de se insinuar primeiro
no espírito, e depois no coração. Entre um que adora e outro que a trata com
indiferença, é possível que a escolha não se demore, e tudo está salvo. Que te
parece?
– Sim, o meio não seria mau, respondeu Luís; mas não é
decisivo nem pronto.
– Decisivo não é, mas é um meio e pode ser tentado;
pelo que respeita à prontidão, o casamento não é já e há tempo para mudar muita
coisa.
Luís refletiu alguns instantes.
– Que te parece? perguntou outra vez Ernesto
Guimarães.
– Uma tolice. Duas objeções oponho que deitam por
terra o teu projeto.
– Vejamos a primeira.
– A primeira é que eu não vejo quem se encarregará de
atrair a Fernanda.
– Eu.
– Tu?
– Que tem?
Luís não pôde deixar de rir-se às bandeiras
despregadas. O amigo riu-se também, mas afinal foi obrigado a interromper a
hilaridade do amigo pedindo-lhe que dissesse em que pecava a sua pessoa para o
papel a que se propunha.
– Em coisa nenhuma, respondeu o bacharel; acho-te
excelente.
– Rio-me de ver que te queres prestar a este capítulo
de romance, verdadeiro capítulo de maçada.
– Vejamos a segunda objeção, disse Ernesto.
– A segunda objeção é clara e não tem fácil resposta.
Vamos que alcancemos tudo. Que adiantamos nós? A Fernanda não é um fim, é um
meio; meu pai quer casar-me, é o seu fim. Escolhe minha prima porque ela me tem
alguma afeição; no caso em que ela goste de outro, nem por isso meu pai desiste
do primeiro intento.
Ernesto abanou a cabeça.
– És um pateta, Luís. Não nasceste para as grandes
dificuldades. Que importa que teu pai não desista do intento? Daqui até março
tens tempo bastante para iniciar certa reforma de costumes…
– Reforma?
– Aparente.
– Ah!
– Dissipada a paixão de tua prima, não é crível que
teu pai ache logo à mão outra noiva. Tu continuas, entretanto, a tua reforma;
vais ao júri; encomendas algumas coisas; eu posso até mandar citar o Martins
por uns cem mil-réis que me deve há quinze dias. Teu pai vai perdendo a ideia
do casamento à medida que te for vendo moderado… e o resto à sorte.
– Não há que dizer, observou Luís quando o amigo
acabou de expor-lhe assim a traços largos o seu sistema; a ideia não é má e
visto que não há outra, é certamente a melhor. Está dito; vais salvar-me.
– Às tuas ordens.
– Pobre amigo! é um verdadeiro sacrifício o que vais
fazer.
– Não é, replicou Ernesto Guimarães, é distração. Eu
ando enjoado, Luís; é-me necessário torcer por algum tempo o rumo à vida para
lhe achar depois melhor sabor. A monotonia é o veneno do espírito. Um ano mais
da vida que levo mata-me de aborrecimento; mas se me afastar dela alguns meses,
com que alegria não voltarei depois! com que novas forças me atirarei a este
mundo, que é o meu! Não é um favor que te faço; é um remédio que tomo e me há
de curar. Incapaz de namorar uma moça por mim mesmo, acho certo prazer para
servir a um amigo. Eis tudo.
– Sabes a minha opinião a teu respeito?
– Dize.
– Acho-te feroz.
– Eu acho-me angélico.
– Tenho medo de vir a ser como tu.
– Então casa-te.
– Antes a morte.
– Ou esta vida.
– Apoiado!
– Fica pois assentado que eu vou sitiar o coração de
tua prima. É bonita?
– Não é feia.
– Espirituosa?
– Como um cepo.
– Paciência! é uma paixão interina. Vamos jantar.
– Vamos.
CAPÍTULO 4
Mal sabia D. Fernanda Tavares a que experiências a
destinavam estes dois amigos, e de que maneira nova e romântica o primo se
queria desfazer dela.
Que ela gostava do primo era coisa que podia ver quem
lhe examinasse os olhos nas ocasiões em que se achavam juntos na casa dele ou
na casa dela. Só o bacharel nunca reparara nisso; a mãe dele porém que a amava
como filha, e que desde longa data imaginara uma união entre ambos, logo
percebeu o que se passava no coração da sobrinha. Não se demorou em comunicá-lo
à mãe de Fernanda, que era sua irmã mais moça, e, depois, ao desembargador.
Nenhum caso fez este da descoberta durante os
primeiros tempos; mas um dia vendo que o filho não tomava emenda, achou que era
azado meio casar os dois primos, e comunicou, como vimos, a resolução ao
bacharel. Sua opinião era que o rapaz ia ficar contentíssimo.
Tinha razão de o supor.
Fernanda era realmente bonita. Tinha a cor morena, os
olhos negros e naturalmente lânguidos, todas as feições delicadas e corretas.
As mãos em que o bacharel nunca reparara, eram obras-primas, e o pé, nas poucas
vezes em que se atrevia a transpor a fímbria do vestido, convenceu aos profanos
de que além daquilo só se fosse invisível de todo.
Nenhum desses dotes, nem todos juntos, seduziram nunca
o coração desocupado do primo Luís. O amor em que ela ardia era silencioso e
paciente. Tinha esperança de que mais tarde ou mais cedo viria a triunfar, e
com essa esperança vivia e sofria. Uma só palavra de Luís causaria alegria a toda
a família – a prima, o pai, a mãe, e a tia; mas essa palavra os lábios dele
teimavam em não dizer.
– Esperemos, dizia o coração de Fernanda.
E esperava.
Alguns dias depois da conversa de Luís e Ernesto, foi
este apresentado em casa do desembargador Fonseca. Há homens que nunca perdem o
gesto e o ar do centro em que vivem. Ernesto não era assim. Numa casa de
família era um homem circunspecto e grave. Naquela ocasião esta mudança era
essencial; mas não lhe custava, e tudo correu às mil maravilhas. O desembargador
ficou encantado com o amigo de Luís; D. Teresa, sua mulher, achou-lhe uma série
de boas qualidades que sinceramente julgava perdidas na mocidade. Ernesto foi
convidado a considerar aquela casa como sua.
No dia seguinte, Luís veio dizer-lhe que a prima lá
estava e que convinha ir nessa noite.
– Não, senhor, disse Ernesto; convém pelo contrário
que eu lá não vá. É preciso que teu pai e tua mãe me preparem o terreno.
Efetivamente tanto o desembargador como a mulher não
se fartaram de elogiar o amigo de Luís. Tudo lhe achavam: gravidade, instrução,
graça, boas maneiras, formosura, e mais um não sei quê que insensivelmente a
todos arrastava. A curiosidade de Fernanda e de sua mãe foi naturalmente
excitada ao último ponto.
Ernesto voltou à casa do desembargador alguns dias
depois, e amiudou as visitas à proporção que a intimidade ia sendo maior. Ao
cabo de um mês era quase um amigo velho.
– Prouvera a Deus, dizia consigo o desembargador, que
todos os amigos de Luís fossem como este!
Ernesto não deixava ocasião de louvar as qualidades de
Luís Fonseca. Referia ao desembargador as discussões que costumava a ter com
ele em sua casa, sobre questões de direito e de filosofia.
– Muitas vezes sai de lá às quatro horas, continuava o
fiel amigo; moído, é verdade, mas vencedor.
O velho ficava pasmado.
– Ah! dizia ele, se ele só discutisse lá todas as
noites!
– Todas as noites seria impossível, tornava Ernesto;
mas as discussões são frequentes. Demais, ele é rapaz e naturalmente
diverte-se…
Com estas e outras petas, com o procedimento cauteloso
e regrado de Luís, o desembargador foi acreditando que realmente o filho se
havia emendado.
Seis semanas depois de assídua frequência, pôde haver
o primeiro encontro entre Ernesto e Fernanda. Tanto haviam falado dele a ela,
que a moça ardia por contemplar essa espécie de fênix da mocidade. A impressão
foi realmente boa. Ernesto tinha o tato preciso para aparecer aos olhos de
Fernanda com as melhores cores e as mais adequadas ao seu intento.
De sua parte a impressão foi magnífica. Achou-lhe uma
bela figura, ainda que um ar extremamente frio.
– Não importa, disse ele ao bacharel; a frieza é uma
camada de neve, que se pode e se há de derreter. Demais, é sabido que ela arde
lá por dentro.
– Mas, olha, que já lá vai mais de um mês, e o tempo
voa.
– Descansa. Cuida de ti. Ontem entraste tarde para
casa.
– Às onze horas apenas.
– Foi tarde demais.
– Mas então às ave-marias?
– Não, mas às nove. Deves tomar o chá em casa.
Sacrifica-te alguns meses para gozares o resto dos teus dias.
– Terrível remédio!
– Mas necessário.
Ernesto advogava sinceramente a causa do companheiro.
Não menos sinceramente entrou a cortejar a sobrinha do desembargador, não logo
de supetão, mas a pouco e pouco, como o Jácome amansa cavalos, como os
políticos amansam os povos rebeldes.
CAPÍTULO 5
Fernanda gostava da conversação de Ernesto, mas nem se
mostrava alegre nem desejosa de o ter ao pé de si. Seus olhos buscavam a miúdo
os do primo, que fugiam cautelosamente com o fim sabido de lhe ir matando as
esperanças aos poucos. As esperanças porém não morriam assim do pé para a mão.
O amor tinha raízes e vinha de longe; não se apaga um incêndio com uma bochecha
d’água.
Entendia Luís que era de bom efeito fazer o amigo no
espírito da prima algumas insinuações contra ele. Ernesto abanou a cabeça
quando ele lhe disse isto.
– Seria estragar tudo, acrescentou Ernesto.
– Estragar?
– Sem dúvida. Dizer mal de ti é aguçar-lhe e
multiplicar-lhe a paixão. Tu não conheces o coração das mulheres, Luís. Nada de
deitar lenha ao fogo.
Luís insistiu; a única resposta do amigo foi dizer-lhe
que achara um processo para ele.
– Sim?
– É verdade; o meu padeiro teve uma briga com um
vizinho por causa de questões amorosas. Perguntou-me se eu conhecia algum
advogado bom. Respondi que conhecia um excelente, em cujas mãos ninguém perdia
processo dessa ordem.
– Mas que houve?
– O rival injuriou o padeiro; o padeiro quer tirar
vingança judicial.
– Está feito, disse Luís, não será processo muito
maçante. Olha, não me dês processos maçantes.
– Pelo contrário, já te livrei de um.
– Ah!
– Um tio meu tem umas velhas questões de terrenos em
São Cristóvão, coisa muito complicada e grave. Teve ideia de te dar a demanda;
mas eu respondi-lhe que tu andavas muito atarefado. Livrei-te a ti da maçada, e
a ele de perder os terrenos.
– Pelintra!
O processo do padeiro foi uma data na casa do
desembargador. Luís aproveitou o ensejo para fazer muitas e muitas consultas ao
pai, que andava contentíssimo com este renascimento judicial do filho.
Eram já passados mais de dois meses desde a entrevista
do desembargador com o bacharel e ainda Ernesto não tinha encetado efetivamente
a campanha. Longe de fazer insinuações contrárias ao amigo, elogiava-o muito na
presença da moça. Ninguém o elogiava tanto e por isso Fernanda preferia a
conversa dele. A princípio fria, Fernanda foi revelando a pouco e pouco
brilhantes dotes do espírito e sólidas qualidades do coração. A mosca morta,
como lhe chamava o primo, era apenas mosca escondida; rompeu o invólucro e
começou a esvoaçar com suma agilidade e graça.
Ernesto tornou-se uma necessidade da casa. Ele sabia
jogar todos os jogos, desde o xadrez até às prendas; discutia sobre literatura,
andava em dia com as modas, recitava ao piano, conhecia receitas de doces; era
uma enciclopédia doméstica e viva. Todos o queriam ao pé de si; e mais ainda
que todos a noiva de Luís. Ernesto dividia-se com discrição, mas sempre de
maneira que a Fernanda coubesse quinhão maior. Gabava-lhe o rapaz todos os seus
dotes naturais, ria-se dos seus ditos, aplaudia as suas observações, e com este
sistema foi ganhando terreno incalculável.
Um dia percebeu que Fernanda tinha uma tal ou qual
tendência poética. Não se deteve; entrou a falar de luas e boninas.
– Oh! que bela coisa não seria, dizia ele, viver ao pé
de um lago, dentro de um castelo que só a imaginação poderia construir, ao lado
de quem se ama, livres ambos dos cuidados deste mundo, divorciados da prosa,
entre a terra e o céu!
A moça não respondeu; estava embebida a ver o quadro
que ele lhe pintava.
Ernesto continuou:
– Não lhe parece que a imaginação é um triste dom do
homem?
– Talvez.
– Imaginar impossíveis, ou pelo menos, ambicionar
gozos raríssimos na terra é a maior desgraça que o espírito pode conceber. Eu
nunca pude compreender Werther; Carlota não me apaixonaria, creio eu. Detesto o
que vai terra-a-terra.
Ernesto esquecia-se neste ponto, que ainda na véspera
fizera a apologia do arroz com ervilhas e ensinara à mulher do desembargador a
melhor maneira de comer costeletas de porco. Mas se ele se esquecia, não menos
se esquecia a prima de Luís Fonseca. Quando ele acabou de desenvolver a sua
teoria acerca do amor, a moça que olhava justamente para a lua, estando ambos à
janela, suspirou e disse:
– Eu tenho às vezes ideias fantásticas. Dizem que há
habitantes na lua; se os há, penso que só lá existe a vida tal qual eu a
imagino. Se ela é tão bela vista de longe, o que não será, vista de perto?
– Talvez não.
– Oh! não me tire então este sonho!
– Melhor é que lhe tire a reflexão do que a
experiência. A lua é a imagem exata da felicidade; formosa de longe, vulgar de
perto.
– Quem sabe?
– A astronomia, que nos tira as ilusões. Eu também as
tive, e ainda hoje as tenho, mas padeci e padeço.
– Padece?
Ernesto suspirou. A moça que parecia ansiosa por ouvir
confidências, talvez para poder fazer as suas, repetiu a pergunta. Ernesto
abanou a cabeça.
– Não, disse ele, não falemos mais nisto.
– Prefere então a terra?
– Prefiro o céu. Essas lembranças não eram céu nem terra;
mas infernos com todas as suas chamas.
A conversa continuou deste modo entre os dois até que
a mãe de Fernanda os veio interromper. Não tinha vontade disso a pobre velha,
que já no seu coração dizia ser muito melhor que a filha casasse com Ernesto;
mas era tarde e era preciso voltar para casa.
CAPÍTULO 6
A noite para Fernanda foi já povoada de mil
pensamentos diversos, de que Ernesto era o principal assunto. Pareceu evidente
que o rapaz amava alguém, mas sem esperanças ou pelo menos com tão poucas como
ela. Também não lhe pareceu fora de propósito que as meias palavras de Ernesto
aludissem a algum amor já passado e infeliz. Em ambos os casos era uma alma com
quem a sua simpatizava; a igualdade dos sentimentos e talvez das circunstâncias
as chamavam uma para outra. A isto vinha juntar-se uma natural curiosidade
feminil. De maneira que Fernanda, depois de pensar longo tempo na conversa de
Ernesto, sonhou com ele quase toda a noite.
Daí a quatro dias encontraram-se outra vez em casa do
desembargador. Ernesto estava alegre como das outras vezes.
– Ainda bem! disse-lhe ela apenas pôde conversar com
ele no sofá.
– Por quê?
– Porque o vejo mais alegre.
– Oh! é o meu gênio que me faz assim, não a minha
estrela. A natureza foi mãe comigo; deu-me esta máscara.
– Sabe de uma coisa? perguntou Fernanda sorrindo.
– O que é?
– Eu desejava…
Calou-se.
– Desejava?…
– Ser sua confidente, concluiu Fernanda fazendo-se
rubra.
Ernesto estremeceu tão naturalmente, que a moça olhou
assustada para as outras pessoas que estavam na sala.
Houve um momento de silêncio.
– Não tente encarar o inferno, disse Ernesto com
melancolia; pode cair nele.
E ao mesmo tempo que dizia isto, tomou um ar alegre e
estouvado.
– Mas por que estou eu a dizer estas coisas? observou
ele; são talvez ridículas ao seu espírito.
– Oh! não! protestou ela.
A conversa tomou caminho diverso e jovial. Todo o
esforço de Ernesto se resumia em parecer que afetava bom humor, mas que
realmente estava triste. A moça acreditou perfeitamente nessa afetação. Sua
simpatia por semelhante estado do rapaz era já tamanha, que nessa noite apenas
olhou para Luís umas sete ou oito vezes. Nas outras noites regulava por
quarenta e tantas; houve uma noite de cento e cinco.
No meio da conversa indiferente em que estavam todos,
uma senhora aludiu em voz alta ao casamento de Fernanda e Luís. A moça, que
nessa ocasião olhava para Ernesto, notou-lhe a dolorosa impressão que isto
produziu no rapaz; abaixou os olhos e ficaram ambos em profundo silêncio.
Nessa mesma noite, Luís perguntou a Ernesto:
– Que estiveram vocês conversando?
– Várias coisas.
– O negócio marcha?
– Lentamente, mas há de ir até o fim.
No dia seguinte, Fernanda, que não era janeleira,
esteve toda a tarde à janela, com bom fruto, pois que viu aparecer ao longe a
figura de Ernesto. O rapaz olhou para ela três ou quatro vezes, cumprimentou-a,
e antes de voltar o canto ainda voltou a cabeça com a esperança de a ver.
Viu-a, porque ela não saíra da janela, e também foi visto, porque ela não
desviara os olhos dele.
Depois das circunstâncias que acabo de relatar, era
impossível que o primeiro encontro dos dois não fosse um tanto acanhado e
esquerdo. Assim foi na verdade. Fernanda não se atrevia a levantar os olhos
para ele, e ele pela sua parte mostrava igual receio.
Mas como ela não revelasse irritação nem sequer
aborrecimento, Ernesto concluiu que as coisas não andavam mal. Teve certeza
disso na segunda noite, em que se encontraram na casa do desembargador. Desta
vez o próprio Luís foi testemunha de que os olhos da prima frequentemente se
dirigiam para o lado de Ernesto, e que os dois pareciam começar uma conversação
que prometia ser mais íntima.
– Bravo! disse ele ao amigo no dia seguinte almoçando
no hotel, agora as coisas tomaram o verdadeiro aspecto. Já se carteiam?
– Ainda não, mas não tarda.
Tardou algum tempo que se carteassem; mas os olhos
trabalhavam já com muito afinco, os dedos diziam uns aos outros coisas muito
expressivas, na ocasião de chegada ou de despedida, e o terreno estava
magnífico para a primeira epístola amorosa.
Literalmente, Fernanda já não fazia caso do primo. A
frieza com que ele a tratava comparada com a atenção e o amor incubado de
Ernesto era a sentença de morte da paixão que ela nutrira durante tanto tempo.
Luís preferira decerto que a prima fizesse algumas
desfeitas, que ele receberia com desdém, mas que lhe tocariam agradavelmente no
amor-próprio. Chegou até a provocá-las, mostrando-se solícito e afetuoso; mas
foi o mesmo que se rendesse finezas ao chafariz do Largo do Paço. A moça nem se
abalou; tratou-o como prima e não como noiva.
Não era um desastre; era justamente o que ele queria.
Por isso não se zangou o bacharel; mas lá no fundo do coração lhe ficou um
amargor.
Ernesto caminhou de vento em popa. Arriscou a primeira
carta, tímida e desesperançada. Fernanda respondeu algumas palavras ternas e
judiciosas. Luís teve conhecimento desses primeiros tiros de bala. A carta de
Fernanda foi de comum acordo declarada um modelo.
– Não se pode negar, observou Ernesto, que é uma moça
de coração e de inteligência.
– Sim, não contesto, respondeu Luís.
– E está apaixonada, vês?
– Vejo.
Seguiu-se um silêncio.
– E tu? disse repentinamente o bacharel cravando os
olhos no amigo.
– Eu? respondeu Ernesto coçando a cabeça, não estou
nem estarei, conquanto julgue que ela seria capaz de fazer um homem feliz. Uma
coisa porém me preocupa.
– O que é?
– Entrei nisto, cuidando que ia substituir um namoro
por outro. Vejo que não. Tua prima apaixona-se deveras. Não quisera contribuir
para um desgosto na família.
O bacharel ainda nessa manhã ouvira ao pai falar no
casamento dele com Fernanda, não em março que estava já no fim, mas em junho ou
julho. A ideia de que a prima de novo se voltasse para ele, e de que não
houvesse remédio senão casar, o levou a dissuadir o amigo dos tardios
escrúpulos.
– Qual desgosto! disse ele; assim como se esqueceu de
mim, há de esquecer-se de ti; e tudo volta aos antigos eixos.
– Vá feito.
– Falaste-lhe em mim alguma vez? perguntou Luís depois
de alguns instantes.
– Só para elogiar-te.
– E ela?
– Alegrava-se com o que eu dizia. Se eu dissesse o
contrário, não se alegrava, mas aferrava-se a ti cada vez mais; é da regra.
– Vais responder a essa carta?
– Hoje mesmo.
A resposta foi ardente, mas muito calculada. Fernanda
subiu ao sétimo céu, e a carta com que replicou podia medir meças à do Ernesto;
o namoro continuou assim por meio de cartas, olhares, sorrisos e conversas,
todo o arsenal, em suma, usado neste gênero de campanhas.
CAPÍTULO 7
Ao cabo de dois meses já o namoro não era segredo para
ninguém. Na opinião da família nenhum deles podia fazer mais acertada escolha;
a mesma opinião era compartida pelas pessoas estranhas.
– Escolheu um anjo! diziam as senhoras.
– Escolheu um cavalheiro! diziam os homens.
Fernanda parecia até mais bonita do que antes; a razão
era que a felicidade lhe dava à beleza um ar que a tristeza lhe tirou. Ernesto
pela sua parte mostrava-se igualmente terno e solícito com a moça. Nenhum deles
confessara o namoro; mas nenhum deles buscava escondê-lo dos olhos estranhos.
– Vê bem o que perdeste! dizia o desembargador ao
filho um dia em que estava de mau humor. Como aquela, raras mulheres se
encontram!
Luís abaixou a cabeça, sem proferir palavra, mas com
um ar que, bem examinado, era antes de mortificação que de prazer. A vitória do
amigo, tão de longe preparada, começava a picar-lhe o amor-próprio. Via os
louvores e as invejas de que era objeto o amigo, e apesar de ter contribuído
para isso mesmo, começava a irritar-se contra o vencedor e contra todos.
Esta impressão foi crescendo com o tempo. A
transformação da prima contribuía ainda mais para lhe arredar o espírito.
Estava longe de ver nela a mosca morta, como lhe chamava antigamente. Intenção
de casar não tinha decerto, ou ainda lhe não chegara; apesar disso magoava-o a
atenção que ela prestava a outro. Enquanto Fernanda lhe queria unicamente a
ele, não se dava por achado o bacharel; bastou que ela se voltasse a outro para
que lhe nascesse o ciúme.
Ciúme é o termo; ciúme filho do amor-próprio, e mais
tarde filho do amor sem apelido nenhum. Luís começou a sentir que o menor gesto
da moça o perturbava, e que de cada vez que ela e Ernesto conversavam sozinhos
era o mesmo que se lhe metessem um alfinete no coração.
Ao mesmo tempo começou ele próprio a fugir de Ernesto;
e isto mesmo lhe deu azo a mortificação maior, porque entrou a reparar que
também Ernesto o não procurava tão amiudadamente.
Dar-se-á caso quê? … perguntou Luís Fonseca a si
mesmo, sem ousar concluir a pergunta que naturalmente a leitora já completou.
Redobrou de atenção; tomou-se caseiro mais que nunca.
Espiava por assim dizer as ações da prima; sempre que podia os ia interromper,
e então observava no rosto de ambos a impressão que lhes causava. Mais de uma
vez se convenceu de que a impressão não podia ser pior. Vingava-se não se
desviando mais durante a noite inteira.
Luís não pôde enfim encobrir de si próprio que amava a
prima, tanto quanto a desprezara outrora. Esta triste convicção foi um golpe
ainda maior que o da entrevista com que esta narrativa começou. Eu afinal de
contas sou um asno, dizia consigo Luís Fonseca. Teci a corda que me há de
enforcar. Que diabo me mandou confiar as minhas penas a um estranho? Saiu-me um
peralta, um pérfido. Enganou-me. Estou roubado. Mas se eu mesmo fui chamar o
ladrão!
Luís Fonseca dizia isto entremeado de muitos repelões
em si mesmo, até que caía em si, e se lembrava de que Ernesto pouca ou nenhuma
culpa tivera naquilo, que era puramente obra dele.
Ia além o bacharel.
– Quem sabe se me não engano? Ernesto foi sempre bom
amigo. Talvez aquilo ainda seja necessário para livrar-me do casamento. É o que
há de ser.
Esta ideia o levou a ir ter com o amigo. Achou-o a ler
uma cartinha, que escondeu logo. Luís franziu a testa.
– Carta dela? perguntou ele.
– Não, respondeu Ernesto depois de alguma hesitação.
– De outra?
– De ninguém.
Luís mordeu o bigode mas conteve-se.
Seguiram-se cinco minutos de silêncio.
– Ernesto, disse enfim o bacharel, venho pedir-te uma
explicação e um conselho.
– Caso grave? perguntou Ernesto sorrindo.
– Talvez.
Ernesto ofereceu-lhe um charuto, que o outro não
aceitou. Novo silêncio que o bacharel foi ainda o primeiro a interromper.
– Começo pelo conselho, disse ele. Sabes que o tempo
deu os seus frutos. Aquele furor que me causou a resolução de meu pai passou
completamente. Encaro hoje o casamento com outra cara. Acho-me disposto a
aceitá-lo como uma doce necessidade do coração. Que te parece?
– Que me há de parecer? disse Ernesto levantando os
ombros.
– É verdade que as tuas ideias são opostas a esta;
assim me disseste quando eu aqui vim há cinco meses pedir-te conselho. Em todo
o caso, apesar de seres o que eu fui, sempre te considerei com mais juízo do
que eu. Desejava portanto saber se faço bem em obedecer a meu pai.
– Sem dúvida.
– Devo então aceitar o casamento com ambas as mãos?
– Uma vez que te não repugna, é um dever.
Luís teve um movimento de alegria, que logo reprimiu.
Ernesto começou a brincar com a corrente do relógio, com o ar de um homem que
se não acha em posição demasiado cômoda. Houve um pequeno silêncio. Luís
continuou:
– Agora a explicação. Em que estado para…
Hesitou.
– O quê? disse Ernesto.
– Poupa-me dizer mais; creio que me entendeste.
Ernesto levantou-se, deu alguns passos na sala, e
parou enfim defronte de Luís Fonseca. Olhou-o a fito durante alguns rápidos
segundos, e enfim lhe disse:
– Luís, fizemos um dia uma coisa feia e perigosa; feia
porque não era bonito ir perturbar o espírito de uma moça, com o único fim de zombar
dela e comprar com isso alguns dias de vida dissoluta…
– Perdão…
– Perigosa, continuou Ernesto sem atender à
interrupção do amigo, perigosa porque era arriscar eu próprio o sossego do meu
espírito. Não me salvei do perigo; mas o único meio que tenho para compensá-lo
é apagar o lado feio da aventura.
– Dizes então?…
– Que eu gosto de tua prima.
Luís levantou-se de um salto. Os dois rivais
encararam-se longo tempo sem dizer palavra, até que Ernesto foi sentar-se
tranquilamente. Luís levantou os ombros e foi a ele:
– Felizmente para mim conheço as tuas ideias a
respeito do casamento, e creio que não pretenderás…
– É justamente o contrário, interrompeu Ernesto;
pretendo casar com ela.
– Oh! mas isto é demais! exclamou Luís. Estás caçoando
comigo, creio eu.
– Falo sério.
– Mas então…
– O quê?
– Andaste em tudo isto infamemente.
– Perdoo-te porque não sabes o que dizes.
A estas palavras, replicou Luís com duas ainda mais
fortes, as quais provocaram da parte de Ernesto uma tréplica vigorosa; Luís
voltou à carga com mais energia; Ernesto recebeu-o com quatro pedras na mão até
que depois de dizerem muitas coisas duras e feias um ao outro, separaram-se os
dois, acabando assim a conversa e o capítulo.
CAPÍTULO 8
Saiu Luís Fonseca disposto a fazer alguma estralada. A
distância porém entre a casa de Ernesto e a sua foi bastante para lhe deitar
água na fervura.
Não perdoou decerto ao pérfido, como ele dizia, nem se
dispôs a derrear-lhe fácil vitória; mas a ideia do escândalo foi posta de lado.
Meteu-se a noite de permeio, e no dia seguinte estava Luís mais tranquilo.
Oh! mais tranquilo não! O mísero sentia-se cada vez
mais apaixonado; o amor tocava já ao delírio. Era-lhe absolutamente impossível
assistir à felicidade do rival.
Mas como impedir-lha?
Ir contar tudo ao pai?
Aceitou este primeiro alvitre, mas logo abriu mão
dele. O pai naturalmente daria razão ao outro, a quem estimava já.
Tentar arrancar o rival às boas graças da prima era
tarefa escabrosa e difícil.
Luís Fonseca deitou os olhos a todos os pontos do
horizonte a ver se descobria um meio eficaz de derribar o rival.
Nenhum ocorreu.
Dois dias gastou nestas pesquisas infrutíferas.
No terceiro, estando a almoçar, e justamente ao meter
o garfo no terceiro pedaço de bife, um súbito pensamento lhe alumiou o
espírito.
– Eureka!
Estava achada a grande arma.
Luís preparou-se e foi à casa da tia. Fernanda
recebeu-o com afabilidade, e a maior prova de que já nada sentia por ele foi a
tranquilidade que lhe ficara no coração. Nem uma saudade! nem um
estremecimento!
O primo não se deu a averiguar até que ponto deixara
vestígio no espírito da ex-noiva. A ideia de vingança o dominava.
– Está preocupado, disse Fernanda vendo que ele se
sentava sem dizer palavra.
– É verdade; uma grave preocupação.
– Motivo de família?
– Talvez.
Luís Fonseca acompanhou esta resposta com um gesto de
desespero que assustou a moça:
– Que é? disse esta.
– Prima, sabe qual era o projeto de meu pai há meses a
nosso respeito?
Fernanda abaixou a cabeça.
– Sabe, decerto, continuou Luís, e o projeto não era
só dele, mas de toda a nossa família. Tive a crueza e a insensatez de me opor
interiormente ao casamento que se projetava. Abertamente não podia recusar;
consultei a um amigo…
– Primo, interrompeu Fernanda, falemos de outra coisa.
– Não; falemos desta.
Fernanda levantou-se.
– Bem, disse ela, sou obrigada a sair.
– Há de ficar, disse o bacharel, quando souber que se
trata do decoro da família e de a salvar de um perigo…
– Um perigo? murmurou a moça tornando a sentar-se.
– Nem mais nem menos. Ouça.
Fernanda tremia.
– O amigo a quem consultei, continuou Luís, lembrou um
meio que lhe pareceu excelente para afastar-me do casamento: o meio era
procurar fazer-se amado da senhora e esfriar no seu coração o afeto que eu lhe
inspirara.
Fernanda fez um movimento.
Luís continuou.
– Tive a covardia de aceitar o plano, e ajudá-lo a
executar. Confesso todos os meus erros para melhor ver a sinceridade do meu
arrependimento. Fui eu quem apresentou esse amigo em minha casa, onde ele logo
captou as boas graças da família; e começou essa espécie de assédio em volta do
seu coração. Ajudei-o, é verdade, com vergonha o digo, ajudei-o nessa infame
tarefa!
A moça empalideceu no começo desta narrativa; mas as
faces para logo se avermelharam. Luís continuou a referir tudo o que se passara
entre ele e Ernesto.
– Com o que eu não contava, porém, disse ele, era a
punição que me reservou o céu. Esse amor silencioso, casto, que eu tive o
desazo de desprezar, veio acender-se em mim, e aquilo que há poucos meses
recusei como uma grande desgraça, hoje almejo e peço como uma das maiores
fortunas da terra.
Luís esperou algum tempo a resposta de Fernanda às
revelações que acabava de fazer; a moça olhava para ele sem articular palavra;
parecia nem ouvir nada.
– Bem sei, disse ele, que não tenho direito a esperar
o que lhe peço; mas há certamente no seu coração misericórdia para me perdoar.
Do perdão virá talvez o amor que espero mais tarde. Quanto ao pérfido que me
iludiu…
A moça estremeceu.
– Quanto ao pérfido que nos iludiu, continuou Luís,
estou certo de que não lhe merecerá nem uma expressão de desprezo.
Fernanda sorriu e murmurou:
– Por quê?
Luís olhou para ela com espanto. Seus olhos pareciam
perguntar à moça se na realidade ele ouvira bem; por isso repetiu:
– Por quê?
E como Luís não se atrevesse a responder, a prima
continuou:
– É difícil de crer que tudo isso que me referiu seja
verdade; mas dado que seja, que deseja agora o primo? Que eu o ame? Nunca mais;
o senhor mesmo tornou isso impossível. Que lhe perdoe? Perdoo-lhe de boa
vontade…
– Mas…
– Nem só lhe perdoo; agradeço-lhe também, porque ao
senhor devo eu a felicidade da minha vida.
– Como? Julga que esse homem que tão vilmente zombou
da sua boa fé…
– Esse homem ama-me, e está perdoado. A história que o
primo me contou já eu a sabia por boca dele mesmo, a quem desculpei tudo em
troco da felicidade que me vai dar. Saiba que minha mãe consente ao nosso
casamento e que este será oficialmente declarado daqui a poucos dias.
A leitora compreende, sem que seja necessário
dizer-lhe, o estado do miserável moço ao ouvir estas palavras. Pegou no chapéu,
cumprimentou, e foi chorar na cama que é lugar quente.
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