11/21/2017

Quem boa cama faz… (Conto), de Machado de Assis


Quem boa cama faz…

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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CAPÍTULO 1

Ao sair do gabinete do pai, o bacharel Luís Fonseca trazia o rosto fechado, rangia os dentes e dava-se interiormente a todos os diabos de ambos os mundos, este e o outro. Entrou na alcova e fechou-se por dentro. Alguns minutos passeou de um lado para outro, gesticulando e murmurando palavras soltas, até que se sentou numa cadeira de balanço e fumou seguidamente dois charutos. Vieram chamá-lo para jantar e não quis; mas recebendo um recado intimativo do desembargador, seu pai, lá se foi arrastando até à mesa, onde pouco mais de nada comeu.

A causa de todo este mistério era nem mais nem menos um casamento. Logo depois do almoço desse dia, que era um domingo, o desembargador Fonseca mandou chamar o filho ao seu gabinete, e mal o vira entrar fechou a porta. Luís franziu a testa, mas esperou.

– Luís, disse o pai depois de alguns instantes: eu e tua mãe assentamos em fazer-te feliz. Estamos velhos e queremos deixar-te arranjado e tranquilo. Resolvemos casar-te.

Luís estremeceu.

Naquela ocasião a ideia de casar valia o mesmo para o bacharel que a ideia de se atirar de um terceiro andar à rua. Sua vida era a coisa mais simples deste mundo e ao mesmo tempo a menos matrimonial: vadiava e divertia-se. Estava então na aurora o Alcazar Lírico da Rua da Vala, onde o bacharel passava as noites, digo mal, uma parte das noites, que o resto ia ele passá-las nos hotéis e outros sítios. Um casamento nestas alturas equivalia a um assassinato. O instinto de conservação chegou a abrir os lábios do moço, mas o pai, que adivinhou a objeção, continuou:

– A vida que levas é própria da tua idade, mas é já tempo de lhe pôr cobro; o casamento que te ofereço – poupa-me a ocasião de dizer que te imponho – é o meio mais eficaz de dar nova direção à tua vida. Tens uma carta de bacharel e um escritório de advocacia, mas nem o escritório, nem a carta te servem de coisa nenhuma. Isto não é vida, ou pelo menos não é vida séria. Com vinte e oito anos, creio que é tempo de te emendares.

O desembargador, que desde o adjetivo eficaz já tinha tirado a boceta do bolso, abriu-a tranquilamente, tomou uma pitada, sem olhar para o filho, cujo rosto se fazia de mil cores, e que procurava alguma coisa que opor ao libelo do pai.

O pai continuou:

– Estou certo de que ficarás muito contente quando souberes a pessoa que te destino: é uma moça altamente prendada e digna de honrar o seu e o teu nome. Sei que ela gosta de ti, nem de outro modo poderia fazer-se o casamento.

Luís ouviu com indiferença este panegírico da sua noiva; fosse ela a formosa Helena ou a virtuosa Lucrécia, era para ele a mesma coisa, isto é, um fardo muito pesado, que ele desde já repelia do seu coração.

– Casas com tua prima Fernanda, concluiu o desembargador.

Um sorriso de lástima entreabriu os lábios de Luís ao ouvir o nome da noiva. A razão era que de todas as mulheres então existentes debaixo do sol, Fernanda lhe parecia a mais aborrecível de todas. Não negava algumas graças naturais; mas achava um ar de mortal insipidez. Nada que ela vestisse lhe parecia bem; e tudo o que ela dissesse lhe parecia mal. Mosca morta foi o nome com que ele a brindou um dia de anos, ao ver a indiferença que havia entre ela e as outras moças alegres e vivazes. Queria a sua desgraça que ao infortúnio do casamento se seguisse o do casamento com Fernanda.

– Se ao menos, dizia ele consigo depois na alcova, se ao menos me enforcassem com uma corda de seda, vá. Mas, não, senhor; enforcam-me com uma corda de estopa. Em cima de queda, coice. Matam-me e esfolam-me ao mesmo tempo.

O pai do bacharel ficou assaz admirado com a impressão que viu causar no filho o nome da noiva. Imaginava ele, pelo contrário, que Fernanda seria o mel de que fala o poeta, com que se adoça a beira da xícara do remédio para fazê-lo beber à criança. Nem por isso recuou; era disposição sua que o filho casasse, e por mais amargo que lhe parecesse o transe, o filho havia de obedecer.

– Estamos em dezembro, disse ele levantando-se, casas-te em março. Estou certo de que em abril me virás agradecer esta resolução.

O desembargador despediu o filho com um gesto. Luís apressou-se a sair, não tendo articulado uma só palavra, mas firmemente resolvido a afrontar tudo, antes de que entregar o colo ao cutelo.

– Não! exclamava ele na alcova logo depois da entrevista que acabo de resumir, não! Vai longe o tempo em que os pais preparavam os casamentos ainda contra a vontade dos filhos. Não sou criança nem menina inexperiente; seria até ridículo que eu me prestasse a semelhante comédia.

Com estas e semelhantes reflexões, encheu Luís Fonseca tempo até a hora de jantar, a que, como vimos, não pôde deixar de ir. Às ave-marias saiu de casa para ir narrar as suas desgraças a seus amigos íntimos.


CAPÍTULO 2

Um dos amigos morava na Rua dos Ciganos, que era, como sabem, o nome antigo da atual Rua da Constituição. Quis a sua fortuna que em casa desse encontrasse o outro amigo, e que uma só narração bastasse para unir as lágrimas deles às suas. Lágrimas é figura.

Ernesto Guimarães chamava-se o dono da casa; o segundo acudia ao nome de Martins. Tinham ambos pouco mais ou menos a mesma idade, trinta anos. Martins era baixinho, cheio de corpo, buliçoso e alegre. Era menos alegre e menos buliçoso Ernesto Guimarães; media um palmo mais que o outro, e era além disso um bonito rapaz, coisa que se não podia dizer do Martins, e muito mais naturalmente elegante do que este.

Luís Fonseca achou-os a folhear um álbum de dançarinas de Paris, lembrança que o Martins trouxera da sua viagem à Europa alguns meses antes. Com o louvável desejo de que Ernesto Guimarães admirasse os portentos coreográficos da grande cidade, o alegre viajante saíra de casa com o álbum e foi dá-lo de presente ao amigo. A chegada de Luís Fonseca foi saudada com estrepitosas manifestações, que ficaram no meio, ao verem os dois a cara transtornada do filho do desembargador.

– Que temos de novo? perguntou Ernesto.

– Há arenga no beco? inquiriu Martins.

– Estás arrufado com a Lúcia, aposto.

– Ou perdeste a carteira.

Luís Fonseca deu um grande golpe com o punho cerrado em cima da mesa, e esta resposta explicou aos dois amigos que o assunto era mais sério do que nenhum dos que eles supunham, motivo pelo qual Ernesto Guimarães fechou o álbum, Martins tirou o charuto da boca, e ambos assumiram o ar interrogativo que o caso pedia e a sua curiosidade lhes indicava.

Luís explicou em poucas palavras a situação. A impressão dos dois amigos foi diferente; Martins achou que o caso era para rir e que o desembargador apenas merecia compaixão.

– Teu pai, disse ele, está caduco… ou doido.

Ernesto Guimarães estava de acordo em que a exigência do desembargador era pelo menos um despropósito, mas nem o achava doido ou caduco, nem via que Luís pudesse facilmente esquivar-se ao casamento. O bacharel teve ímpetos de pegar o chapéu ao ouvir semelhante opinião. Ernesto insistiu:

– Não vejo que possas fugir ao casamento, se ele insistir, salvo se rasgadamente lhe desobedeceres, o que me não parece bom.

– Parece-te bom que me case contra a vontade, só para obedecer a um capricho?

– É um sacrifício, convenho.

– Uma impossibilidade.

– Eu assim penso, confirmou Martins.

– Tu estás ainda debaixo da impressão da conversa com teu pai. Achas que o casamento é detestável, e eu penso do mesmo modo, mas não vejo praticamente um meio de lhe fugir. Há certamente um; é recusares; mas teu pai com certeza põe-te na rua, e eu não vejo que haja muita gente disposta a perder as suas coisas, só com o fim de te encher as algibeiras. É sacrifício de que não há exemplo. Além de que, seria uma coisa muito feia e que te faria mal, o saber-se que teu pai te expulsara de casa, ainda mesmo não tendo razão.

Estas palavras deixaram de boca aberta os dois ouvintes; a substância delas e o modo com que foram ditas, tudo era novo para eles, que até então conheciam em Ernesto Guimarães um rapaz como eles, e nunca esperavam ouvir um tal sermão de lágrimas. Martins aventurou a ideia de que Ernesto estava peitado pelo desembargador, e Luís achou a ideia tão alegre que não pôde deixar de rir.

Até às nove horas da noite foi o casamento de Luís assunto da conversa entre os três amigos, que àquela hora foram dar uma vista d’olhos ao Alcazar. Uma pessoa, de quem já se falou neste capítulo, deu-lhes a honra de cear com eles, e afirma um entregador do Jornal do Comércio que os viu sair do hotel às três horas e meia da noite. Valha a verdade: Ernesto entrou em casa às quatro horas.

– Vamos lá, dizia ele consigo na ocasião em que abria a porta, é preciso salvar o Luís. Hei de achar algum meio que salve tudo, pensarei nisto amanhã.


CAPÍTULO 3

No dia seguinte estava achado o meio. Luís recebeu um bilhetinho do amigo concebido nestes termos:

Vem hoje à Rua dos Ciganos, às três horas da tarde, ou às sete, se quiseres ir jantar à casa. Tenho uma ideia boa que te pode salvar.
Luís Fonseca não esperou as sete horas; foi à casa dizer que jantava fora, e às três horas estava na Rua dos Ciganos.

– Então que achaste? perguntou ele apenas entrou.

– Um meio que me não parece mau.

– Vejamos.

– Espera. Disseste-me que tua prima Fernanda gosta de ti?

– Assim o diz meu pai.

– E ele acrescenta que se ela não gostasse de ti, não se faria o casamento?

– Justo.

– Pois bem; talvez se arranje tudo.

– Como?

– Fazendo com que ela goste de outro.

Luís deixou cair os braços.

Entrara com a esperança de que a dificuldade ia ser vencida, e para isso contava com um meio realmente decisivo e imediato. A ideia de Ernesto pareceu ridícula. Ia dizer com todas as letras, quando o amigo continuou:

– Achas isto naturalmente muito vago; também a mim me parece; mas pensando bem, não vejo que seja de impossível execução.

– Sim? disse Luís com ironia.

– Sim.

– Diremos então ao coração de Fernanda: não te voltes para a direita, que há um precipício, volta-te…

– Volta-te para a esquerda, é a única coisa que se lhe dirá. Não se deve falar mal de ti; que isso é agravar o mal e enraizar o amor. O que cumpre fazer é chamá-la para outro ponto.

– Tu estás doido! Não me dirás de que maneira se fará esse chamado?

– Simplesmente, respondeu com tranquilidade Ernesto Guimarães; incumba-se alguém de lhe captar a atenção, de se insinuar primeiro no espírito, e depois no coração. Entre um que adora e outro que a trata com indiferença, é possível que a escolha não se demore, e tudo está salvo. Que te parece?

– Sim, o meio não seria mau, respondeu Luís; mas não é decisivo nem pronto.

– Decisivo não é, mas é um meio e pode ser tentado; pelo que respeita à prontidão, o casamento não é já e há tempo para mudar muita coisa.

Luís refletiu alguns instantes.

– Que te parece? perguntou outra vez Ernesto Guimarães.

– Uma tolice. Duas objeções oponho que deitam por terra o teu projeto.

– Vejamos a primeira.

– A primeira é que eu não vejo quem se encarregará de atrair a Fernanda.

– Eu.

– Tu?

– Que tem?

Luís não pôde deixar de rir-se às bandeiras despregadas. O amigo riu-se também, mas afinal foi obrigado a interromper a hilaridade do amigo pedindo-lhe que dissesse em que pecava a sua pessoa para o papel a que se propunha.

– Em coisa nenhuma, respondeu o bacharel; acho-te excelente.

– Rio-me de ver que te queres prestar a este capítulo de romance, verdadeiro capítulo de maçada.

– Vejamos a segunda objeção, disse Ernesto.

– A segunda objeção é clara e não tem fácil resposta. Vamos que alcancemos tudo. Que adiantamos nós? A Fernanda não é um fim, é um meio; meu pai quer casar-me, é o seu fim. Escolhe minha prima porque ela me tem alguma afeição; no caso em que ela goste de outro, nem por isso meu pai desiste do primeiro intento.

Ernesto abanou a cabeça.

– És um pateta, Luís. Não nasceste para as grandes dificuldades. Que importa que teu pai não desista do intento? Daqui até março tens tempo bastante para iniciar certa reforma de costumes…

– Reforma?

– Aparente.

– Ah!

– Dissipada a paixão de tua prima, não é crível que teu pai ache logo à mão outra noiva. Tu continuas, entretanto, a tua reforma; vais ao júri; encomendas algumas coisas; eu posso até mandar citar o Martins por uns cem mil-réis que me deve há quinze dias. Teu pai vai perdendo a ideia do casamento à medida que te for vendo moderado… e o resto à sorte.

– Não há que dizer, observou Luís quando o amigo acabou de expor-lhe assim a traços largos o seu sistema; a ideia não é má e visto que não há outra, é certamente a melhor. Está dito; vais salvar-me.

– Às tuas ordens.

– Pobre amigo! é um verdadeiro sacrifício o que vais fazer.

– Não é, replicou Ernesto Guimarães, é distração. Eu ando enjoado, Luís; é-me necessário torcer por algum tempo o rumo à vida para lhe achar depois melhor sabor. A monotonia é o veneno do espírito. Um ano mais da vida que levo mata-me de aborrecimento; mas se me afastar dela alguns meses, com que alegria não voltarei depois! com que novas forças me atirarei a este mundo, que é o meu! Não é um favor que te faço; é um remédio que tomo e me há de curar. Incapaz de namorar uma moça por mim mesmo, acho certo prazer para servir a um amigo. Eis tudo.

– Sabes a minha opinião a teu respeito?

– Dize.

– Acho-te feroz.

– Eu acho-me angélico.

– Tenho medo de vir a ser como tu.

– Então casa-te.

– Antes a morte.

– Ou esta vida.

– Apoiado!

– Fica pois assentado que eu vou sitiar o coração de tua prima. É bonita?

– Não é feia.

– Espirituosa?

– Como um cepo.

– Paciência! é uma paixão interina. Vamos jantar.

– Vamos.


CAPÍTULO 4

Mal sabia D. Fernanda Tavares a que experiências a destinavam estes dois amigos, e de que maneira nova e romântica o primo se queria desfazer dela.

Que ela gostava do primo era coisa que podia ver quem lhe examinasse os olhos nas ocasiões em que se achavam juntos na casa dele ou na casa dela. Só o bacharel nunca reparara nisso; a mãe dele porém que a amava como filha, e que desde longa data imaginara uma união entre ambos, logo percebeu o que se passava no coração da sobrinha. Não se demorou em comunicá-lo à mãe de Fernanda, que era sua irmã mais moça, e, depois, ao desembargador.

Nenhum caso fez este da descoberta durante os primeiros tempos; mas um dia vendo que o filho não tomava emenda, achou que era azado meio casar os dois primos, e comunicou, como vimos, a resolução ao bacharel. Sua opinião era que o rapaz ia ficar contentíssimo.

Tinha razão de o supor.

Fernanda era realmente bonita. Tinha a cor morena, os olhos negros e naturalmente lânguidos, todas as feições delicadas e corretas. As mãos em que o bacharel nunca reparara, eram obras-primas, e o pé, nas poucas vezes em que se atrevia a transpor a fímbria do vestido, convenceu aos profanos de que além daquilo só se fosse invisível de todo.

Nenhum desses dotes, nem todos juntos, seduziram nunca o coração desocupado do primo Luís. O amor em que ela ardia era silencioso e paciente. Tinha esperança de que mais tarde ou mais cedo viria a triunfar, e com essa esperança vivia e sofria. Uma só palavra de Luís causaria alegria a toda a família – a prima, o pai, a mãe, e a tia; mas essa palavra os lábios dele teimavam em não dizer.

– Esperemos, dizia o coração de Fernanda.

E esperava.

Alguns dias depois da conversa de Luís e Ernesto, foi este apresentado em casa do desembargador Fonseca. Há homens que nunca perdem o gesto e o ar do centro em que vivem. Ernesto não era assim. Numa casa de família era um homem circunspecto e grave. Naquela ocasião esta mudança era essencial; mas não lhe custava, e tudo correu às mil maravilhas. O desembargador ficou encantado com o amigo de Luís; D. Teresa, sua mulher, achou-lhe uma série de boas qualidades que sinceramente julgava perdidas na mocidade. Ernesto foi convidado a considerar aquela casa como sua.

No dia seguinte, Luís veio dizer-lhe que a prima lá estava e que convinha ir nessa noite.

– Não, senhor, disse Ernesto; convém pelo contrário que eu lá não vá. É preciso que teu pai e tua mãe me preparem o terreno.

Efetivamente tanto o desembargador como a mulher não se fartaram de elogiar o amigo de Luís. Tudo lhe achavam: gravidade, instrução, graça, boas maneiras, formosura, e mais um não sei quê que insensivelmente a todos arrastava. A curiosidade de Fernanda e de sua mãe foi naturalmente excitada ao último ponto.

Ernesto voltou à casa do desembargador alguns dias depois, e amiudou as visitas à proporção que a intimidade ia sendo maior. Ao cabo de um mês era quase um amigo velho.

– Prouvera a Deus, dizia consigo o desembargador, que todos os amigos de Luís fossem como este!

Ernesto não deixava ocasião de louvar as qualidades de Luís Fonseca. Referia ao desembargador as discussões que costumava a ter com ele em sua casa, sobre questões de direito e de filosofia.

– Muitas vezes sai de lá às quatro horas, continuava o fiel amigo; moído, é verdade, mas vencedor.

O velho ficava pasmado.

– Ah! dizia ele, se ele só discutisse lá todas as noites!

– Todas as noites seria impossível, tornava Ernesto; mas as discussões são frequentes. Demais, ele é rapaz e naturalmente diverte-se…

Com estas e outras petas, com o procedimento cauteloso e regrado de Luís, o desembargador foi acreditando que realmente o filho se havia emendado.

Seis semanas depois de assídua frequência, pôde haver o primeiro encontro entre Ernesto e Fernanda. Tanto haviam falado dele a ela, que a moça ardia por contemplar essa espécie de fênix da mocidade. A impressão foi realmente boa. Ernesto tinha o tato preciso para aparecer aos olhos de Fernanda com as melhores cores e as mais adequadas ao seu intento.

De sua parte a impressão foi magnífica. Achou-lhe uma bela figura, ainda que um ar extremamente frio.

– Não importa, disse ele ao bacharel; a frieza é uma camada de neve, que se pode e se há de derreter. Demais, é sabido que ela arde lá por dentro.

– Mas, olha, que já lá vai mais de um mês, e o tempo voa.

– Descansa. Cuida de ti. Ontem entraste tarde para casa.

– Às onze horas apenas.

– Foi tarde demais.

– Mas então às ave-marias?

– Não, mas às nove. Deves tomar o chá em casa. Sacrifica-te alguns meses para gozares o resto dos teus dias.

– Terrível remédio!

– Mas necessário.

Ernesto advogava sinceramente a causa do companheiro. Não menos sinceramente entrou a cortejar a sobrinha do desembargador, não logo de supetão, mas a pouco e pouco, como o Jácome amansa cavalos, como os políticos amansam os povos rebeldes.


CAPÍTULO 5

Fernanda gostava da conversação de Ernesto, mas nem se mostrava alegre nem desejosa de o ter ao pé de si. Seus olhos buscavam a miúdo os do primo, que fugiam cautelosamente com o fim sabido de lhe ir matando as esperanças aos poucos. As esperanças porém não morriam assim do pé para a mão. O amor tinha raízes e vinha de longe; não se apaga um incêndio com uma bochecha d’água.

Entendia Luís que era de bom efeito fazer o amigo no espírito da prima algumas insinuações contra ele. Ernesto abanou a cabeça quando ele lhe disse isto.

– Seria estragar tudo, acrescentou Ernesto.

– Estragar?

– Sem dúvida. Dizer mal de ti é aguçar-lhe e multiplicar-lhe a paixão. Tu não conheces o coração das mulheres, Luís. Nada de deitar lenha ao fogo.

Luís insistiu; a única resposta do amigo foi dizer-lhe que achara um processo para ele.

– Sim?

– É verdade; o meu padeiro teve uma briga com um vizinho por causa de questões amorosas. Perguntou-me se eu conhecia algum advogado bom. Respondi que conhecia um excelente, em cujas mãos ninguém perdia processo dessa ordem.

– Mas que houve?

– O rival injuriou o padeiro; o padeiro quer tirar vingança judicial.

– Está feito, disse Luís, não será processo muito maçante. Olha, não me dês processos maçantes.

– Pelo contrário, já te livrei de um.

– Ah!

– Um tio meu tem umas velhas questões de terrenos em São Cristóvão, coisa muito complicada e grave. Teve ideia de te dar a demanda; mas eu respondi-lhe que tu andavas muito atarefado. Livrei-te a ti da maçada, e a ele de perder os terrenos.

– Pelintra!

O processo do padeiro foi uma data na casa do desembargador. Luís aproveitou o ensejo para fazer muitas e muitas consultas ao pai, que andava contentíssimo com este renascimento judicial do filho.

Eram já passados mais de dois meses desde a entrevista do desembargador com o bacharel e ainda Ernesto não tinha encetado efetivamente a campanha. Longe de fazer insinuações contrárias ao amigo, elogiava-o muito na presença da moça. Ninguém o elogiava tanto e por isso Fernanda preferia a conversa dele. A princípio fria, Fernanda foi revelando a pouco e pouco brilhantes dotes do espírito e sólidas qualidades do coração. A mosca morta, como lhe chamava o primo, era apenas mosca escondida; rompeu o invólucro e começou a esvoaçar com suma agilidade e graça.

Ernesto tornou-se uma necessidade da casa. Ele sabia jogar todos os jogos, desde o xadrez até às prendas; discutia sobre literatura, andava em dia com as modas, recitava ao piano, conhecia receitas de doces; era uma enciclopédia doméstica e viva. Todos o queriam ao pé de si; e mais ainda que todos a noiva de Luís. Ernesto dividia-se com discrição, mas sempre de maneira que a Fernanda coubesse quinhão maior. Gabava-lhe o rapaz todos os seus dotes naturais, ria-se dos seus ditos, aplaudia as suas observações, e com este sistema foi ganhando terreno incalculável.

Um dia percebeu que Fernanda tinha uma tal ou qual tendência poética. Não se deteve; entrou a falar de luas e boninas.

– Oh! que bela coisa não seria, dizia ele, viver ao pé de um lago, dentro de um castelo que só a imaginação poderia construir, ao lado de quem se ama, livres ambos dos cuidados deste mundo, divorciados da prosa, entre a terra e o céu!

A moça não respondeu; estava embebida a ver o quadro que ele lhe pintava.

Ernesto continuou:

– Não lhe parece que a imaginação é um triste dom do homem?

– Talvez.

– Imaginar impossíveis, ou pelo menos, ambicionar gozos raríssimos na terra é a maior desgraça que o espírito pode conceber. Eu nunca pude compreender Werther; Carlota não me apaixonaria, creio eu. Detesto o que vai terra-a-terra.

Ernesto esquecia-se neste ponto, que ainda na véspera fizera a apologia do arroz com ervilhas e ensinara à mulher do desembargador a melhor maneira de comer costeletas de porco. Mas se ele se esquecia, não menos se esquecia a prima de Luís Fonseca. Quando ele acabou de desenvolver a sua teoria acerca do amor, a moça que olhava justamente para a lua, estando ambos à janela, suspirou e disse:

– Eu tenho às vezes ideias fantásticas. Dizem que há habitantes na lua; se os há, penso que só lá existe a vida tal qual eu a imagino. Se ela é tão bela vista de longe, o que não será, vista de perto?

– Talvez não.

– Oh! não me tire então este sonho!

– Melhor é que lhe tire a reflexão do que a experiência. A lua é a imagem exata da felicidade; formosa de longe, vulgar de perto.

– Quem sabe?

– A astronomia, que nos tira as ilusões. Eu também as tive, e ainda hoje as tenho, mas padeci e padeço.

– Padece?

Ernesto suspirou. A moça que parecia ansiosa por ouvir confidências, talvez para poder fazer as suas, repetiu a pergunta. Ernesto abanou a cabeça.

– Não, disse ele, não falemos mais nisto.

– Prefere então a terra?

– Prefiro o céu. Essas lembranças não eram céu nem terra; mas infernos com todas as suas chamas.

A conversa continuou deste modo entre os dois até que a mãe de Fernanda os veio interromper. Não tinha vontade disso a pobre velha, que já no seu coração dizia ser muito melhor que a filha casasse com Ernesto; mas era tarde e era preciso voltar para casa.

CAPÍTULO 6

A noite para Fernanda foi já povoada de mil pensamentos diversos, de que Ernesto era o principal assunto. Pareceu evidente que o rapaz amava alguém, mas sem esperanças ou pelo menos com tão poucas como ela. Também não lhe pareceu fora de propósito que as meias palavras de Ernesto aludissem a algum amor já passado e infeliz. Em ambos os casos era uma alma com quem a sua simpatizava; a igualdade dos sentimentos e talvez das circunstâncias as chamavam uma para outra. A isto vinha juntar-se uma natural curiosidade feminil. De maneira que Fernanda, depois de pensar longo tempo na conversa de Ernesto, sonhou com ele quase toda a noite.

Daí a quatro dias encontraram-se outra vez em casa do desembargador. Ernesto estava alegre como das outras vezes.

– Ainda bem! disse-lhe ela apenas pôde conversar com ele no sofá.

– Por quê?

– Porque o vejo mais alegre.

– Oh! é o meu gênio que me faz assim, não a minha estrela. A natureza foi mãe comigo; deu-me esta máscara.

– Sabe de uma coisa? perguntou Fernanda sorrindo.

– O que é?

– Eu desejava…

Calou-se.

– Desejava?…

– Ser sua confidente, concluiu Fernanda fazendo-se rubra.

Ernesto estremeceu tão naturalmente, que a moça olhou assustada para as outras pessoas que estavam na sala.

Houve um momento de silêncio.

– Não tente encarar o inferno, disse Ernesto com melancolia; pode cair nele.

E ao mesmo tempo que dizia isto, tomou um ar alegre e estouvado.

– Mas por que estou eu a dizer estas coisas? observou ele; são talvez ridículas ao seu espírito.

– Oh! não! protestou ela.

A conversa tomou caminho diverso e jovial. Todo o esforço de Ernesto se resumia em parecer que afetava bom humor, mas que realmente estava triste. A moça acreditou perfeitamente nessa afetação. Sua simpatia por semelhante estado do rapaz era já tamanha, que nessa noite apenas olhou para Luís umas sete ou oito vezes. Nas outras noites regulava por quarenta e tantas; houve uma noite de cento e cinco.

No meio da conversa indiferente em que estavam todos, uma senhora aludiu em voz alta ao casamento de Fernanda e Luís. A moça, que nessa ocasião olhava para Ernesto, notou-lhe a dolorosa impressão que isto produziu no rapaz; abaixou os olhos e ficaram ambos em profundo silêncio.

Nessa mesma noite, Luís perguntou a Ernesto:

– Que estiveram vocês conversando?

– Várias coisas.

– O negócio marcha?

– Lentamente, mas há de ir até o fim.

No dia seguinte, Fernanda, que não era janeleira, esteve toda a tarde à janela, com bom fruto, pois que viu aparecer ao longe a figura de Ernesto. O rapaz olhou para ela três ou quatro vezes, cumprimentou-a, e antes de voltar o canto ainda voltou a cabeça com a esperança de a ver. Viu-a, porque ela não saíra da janela, e também foi visto, porque ela não desviara os olhos dele.

Depois das circunstâncias que acabo de relatar, era impossível que o primeiro encontro dos dois não fosse um tanto acanhado e esquerdo. Assim foi na verdade. Fernanda não se atrevia a levantar os olhos para ele, e ele pela sua parte mostrava igual receio.
Mas como ela não revelasse irritação nem sequer aborrecimento, Ernesto concluiu que as coisas não andavam mal. Teve certeza disso na segunda noite, em que se encontraram na casa do desembargador. Desta vez o próprio Luís foi testemunha de que os olhos da prima frequentemente se dirigiam para o lado de Ernesto, e que os dois pareciam começar uma conversação que prometia ser mais íntima.

– Bravo! disse ele ao amigo no dia seguinte almoçando no hotel, agora as coisas tomaram o verdadeiro aspecto. Já se carteiam?

– Ainda não, mas não tarda.

Tardou algum tempo que se carteassem; mas os olhos trabalhavam já com muito afinco, os dedos diziam uns aos outros coisas muito expressivas, na ocasião de chegada ou de despedida, e o terreno estava magnífico para a primeira epístola amorosa.

Literalmente, Fernanda já não fazia caso do primo. A frieza com que ele a tratava comparada com a atenção e o amor incubado de Ernesto era a sentença de morte da paixão que ela nutrira durante tanto tempo.

Luís preferira decerto que a prima fizesse algumas desfeitas, que ele receberia com desdém, mas que lhe tocariam agradavelmente no amor-próprio. Chegou até a provocá-las, mostrando-se solícito e afetuoso; mas foi o mesmo que se rendesse finezas ao chafariz do Largo do Paço. A moça nem se abalou; tratou-o como prima e não como noiva.

Não era um desastre; era justamente o que ele queria. Por isso não se zangou o bacharel; mas lá no fundo do coração lhe ficou um amargor.

Ernesto caminhou de vento em popa. Arriscou a primeira carta, tímida e desesperançada. Fernanda respondeu algumas palavras ternas e judiciosas. Luís teve conhecimento desses primeiros tiros de bala. A carta de Fernanda foi de comum acordo declarada um modelo.

– Não se pode negar, observou Ernesto, que é uma moça de coração e de inteligência.

– Sim, não contesto, respondeu Luís.

– E está apaixonada, vês?

– Vejo.

Seguiu-se um silêncio.

– E tu? disse repentinamente o bacharel cravando os olhos no amigo.

– Eu? respondeu Ernesto coçando a cabeça, não estou nem estarei, conquanto julgue que ela seria capaz de fazer um homem feliz. Uma coisa porém me preocupa.

– O que é?

– Entrei nisto, cuidando que ia substituir um namoro por outro. Vejo que não. Tua prima apaixona-se deveras. Não quisera contribuir para um desgosto na família.

O bacharel ainda nessa manhã ouvira ao pai falar no casamento dele com Fernanda, não em março que estava já no fim, mas em junho ou julho. A ideia de que a prima de novo se voltasse para ele, e de que não houvesse remédio senão casar, o levou a dissuadir o amigo dos tardios escrúpulos.

– Qual desgosto! disse ele; assim como se esqueceu de mim, há de esquecer-se de ti; e tudo volta aos antigos eixos.

– Vá feito.

– Falaste-lhe em mim alguma vez? perguntou Luís depois de alguns instantes.

– Só para elogiar-te.

– E ela?

– Alegrava-se com o que eu dizia. Se eu dissesse o contrário, não se alegrava, mas aferrava-se a ti cada vez mais; é da regra.

– Vais responder a essa carta?

– Hoje mesmo.

A resposta foi ardente, mas muito calculada. Fernanda subiu ao sétimo céu, e a carta com que replicou podia medir meças à do Ernesto; o namoro continuou assim por meio de cartas, olhares, sorrisos e conversas, todo o arsenal, em suma, usado neste gênero de campanhas.


CAPÍTULO 7

Ao cabo de dois meses já o namoro não era segredo para ninguém. Na opinião da família nenhum deles podia fazer mais acertada escolha; a mesma opinião era compartida pelas pessoas estranhas.

– Escolheu um anjo! diziam as senhoras.

– Escolheu um cavalheiro! diziam os homens.

Fernanda parecia até mais bonita do que antes; a razão era que a felicidade lhe dava à beleza um ar que a tristeza lhe tirou. Ernesto pela sua parte mostrava-se igualmente terno e solícito com a moça. Nenhum deles confessara o namoro; mas nenhum deles buscava escondê-lo dos olhos estranhos.

– Vê bem o que perdeste! dizia o desembargador ao filho um dia em que estava de mau humor. Como aquela, raras mulheres se encontram!

Luís abaixou a cabeça, sem proferir palavra, mas com um ar que, bem examinado, era antes de mortificação que de prazer. A vitória do amigo, tão de longe preparada, começava a picar-lhe o amor-próprio. Via os louvores e as invejas de que era objeto o amigo, e apesar de ter contribuído para isso mesmo, começava a irritar-se contra o vencedor e contra todos.

Esta impressão foi crescendo com o tempo. A transformação da prima contribuía ainda mais para lhe arredar o espírito. Estava longe de ver nela a mosca morta, como lhe chamava antigamente. Intenção de casar não tinha decerto, ou ainda lhe não chegara; apesar disso magoava-o a atenção que ela prestava a outro. Enquanto Fernanda lhe queria unicamente a ele, não se dava por achado o bacharel; bastou que ela se voltasse a outro para que lhe nascesse o ciúme.

Ciúme é o termo; ciúme filho do amor-próprio, e mais tarde filho do amor sem apelido nenhum. Luís começou a sentir que o menor gesto da moça o perturbava, e que de cada vez que ela e Ernesto conversavam sozinhos era o mesmo que se lhe metessem um alfinete no coração.

Ao mesmo tempo começou ele próprio a fugir de Ernesto; e isto mesmo lhe deu azo a mortificação maior, porque entrou a reparar que também Ernesto o não procurava tão amiudadamente.

Dar-se-á caso quê? … perguntou Luís Fonseca a si mesmo, sem ousar concluir a pergunta que naturalmente a leitora já completou.

Redobrou de atenção; tomou-se caseiro mais que nunca. Espiava por assim dizer as ações da prima; sempre que podia os ia interromper, e então observava no rosto de ambos a impressão que lhes causava. Mais de uma vez se convenceu de que a impressão não podia ser pior. Vingava-se não se desviando mais durante a noite inteira.

Luís não pôde enfim encobrir de si próprio que amava a prima, tanto quanto a desprezara outrora. Esta triste convicção foi um golpe ainda maior que o da entrevista com que esta narrativa começou. Eu afinal de contas sou um asno, dizia consigo Luís Fonseca. Teci a corda que me há de enforcar. Que diabo me mandou confiar as minhas penas a um estranho? Saiu-me um peralta, um pérfido. Enganou-me. Estou roubado. Mas se eu mesmo fui chamar o ladrão!

Luís Fonseca dizia isto entremeado de muitos repelões em si mesmo, até que caía em si, e se lembrava de que Ernesto pouca ou nenhuma culpa tivera naquilo, que era puramente obra dele.

Ia além o bacharel.

– Quem sabe se me não engano? Ernesto foi sempre bom amigo. Talvez aquilo ainda seja necessário para livrar-me do casamento. É o que há de ser.

Esta ideia o levou a ir ter com o amigo. Achou-o a ler uma cartinha, que escondeu logo. Luís franziu a testa.

– Carta dela? perguntou ele.

– Não, respondeu Ernesto depois de alguma hesitação.

– De outra?

– De ninguém.

Luís mordeu o bigode mas conteve-se.

Seguiram-se cinco minutos de silêncio.

– Ernesto, disse enfim o bacharel, venho pedir-te uma explicação e um conselho.

– Caso grave? perguntou Ernesto sorrindo.

– Talvez.

Ernesto ofereceu-lhe um charuto, que o outro não aceitou. Novo silêncio que o bacharel foi ainda o primeiro a interromper.

– Começo pelo conselho, disse ele. Sabes que o tempo deu os seus frutos. Aquele furor que me causou a resolução de meu pai passou completamente. Encaro hoje o casamento com outra cara. Acho-me disposto a aceitá-lo como uma doce necessidade do coração. Que te parece?

– Que me há de parecer? disse Ernesto levantando os ombros.

– É verdade que as tuas ideias são opostas a esta; assim me disseste quando eu aqui vim há cinco meses pedir-te conselho. Em todo o caso, apesar de seres o que eu fui, sempre te considerei com mais juízo do que eu. Desejava portanto saber se faço bem em obedecer a meu pai.

– Sem dúvida.

– Devo então aceitar o casamento com ambas as mãos?

– Uma vez que te não repugna, é um dever.

Luís teve um movimento de alegria, que logo reprimiu. Ernesto começou a brincar com a corrente do relógio, com o ar de um homem que se não acha em posição demasiado cômoda. Houve um pequeno silêncio. Luís continuou:

– Agora a explicação. Em que estado para…

Hesitou.

– O quê? disse Ernesto.

– Poupa-me dizer mais; creio que me entendeste.

Ernesto levantou-se, deu alguns passos na sala, e parou enfim defronte de Luís Fonseca. Olhou-o a fito durante alguns rápidos segundos, e enfim lhe disse:

– Luís, fizemos um dia uma coisa feia e perigosa; feia porque não era bonito ir perturbar o espírito de uma moça, com o único fim de zombar dela e comprar com isso alguns dias de vida dissoluta…

– Perdão…

– Perigosa, continuou Ernesto sem atender à interrupção do amigo, perigosa porque era arriscar eu próprio o sossego do meu espírito. Não me salvei do perigo; mas o único meio que tenho para compensá-lo é apagar o lado feio da aventura.

– Dizes então?…

– Que eu gosto de tua prima.

Luís levantou-se de um salto. Os dois rivais encararam-se longo tempo sem dizer palavra, até que Ernesto foi sentar-se tranquilamente. Luís levantou os ombros e foi a ele:

– Felizmente para mim conheço as tuas ideias a respeito do casamento, e creio que não pretenderás…

– É justamente o contrário, interrompeu Ernesto; pretendo casar com ela.

– Oh! mas isto é demais! exclamou Luís. Estás caçoando comigo, creio eu.

– Falo sério.

– Mas então…

– O quê?

– Andaste em tudo isto infamemente.

– Perdoo-te porque não sabes o que dizes.

A estas palavras, replicou Luís com duas ainda mais fortes, as quais provocaram da parte de Ernesto uma tréplica vigorosa; Luís voltou à carga com mais energia; Ernesto recebeu-o com quatro pedras na mão até que depois de dizerem muitas coisas duras e feias um ao outro, separaram-se os dois, acabando assim a conversa e o capítulo.


CAPÍTULO 8

Saiu Luís Fonseca disposto a fazer alguma estralada. A distância porém entre a casa de Ernesto e a sua foi bastante para lhe deitar água na fervura.

Não perdoou decerto ao pérfido, como ele dizia, nem se dispôs a derrear-lhe fácil vitória; mas a ideia do escândalo foi posta de lado. Meteu-se a noite de permeio, e no dia seguinte estava Luís mais tranquilo.

Oh! mais tranquilo não! O mísero sentia-se cada vez mais apaixonado; o amor tocava já ao delírio. Era-lhe absolutamente impossível assistir à felicidade do rival.

Mas como impedir-lha?

Ir contar tudo ao pai?

Aceitou este primeiro alvitre, mas logo abriu mão dele. O pai naturalmente daria razão ao outro, a quem estimava já.

Tentar arrancar o rival às boas graças da prima era tarefa escabrosa e difícil.

Luís Fonseca deitou os olhos a todos os pontos do horizonte a ver se descobria um meio eficaz de derribar o rival.

Nenhum ocorreu.

Dois dias gastou nestas pesquisas infrutíferas.

No terceiro, estando a almoçar, e justamente ao meter o garfo no terceiro pedaço de bife, um súbito pensamento lhe alumiou o espírito.

– Eureka!

Estava achada a grande arma.

Luís preparou-se e foi à casa da tia. Fernanda recebeu-o com afabilidade, e a maior prova de que já nada sentia por ele foi a tranquilidade que lhe ficara no coração. Nem uma saudade! nem um estremecimento!

O primo não se deu a averiguar até que ponto deixara vestígio no espírito da ex-noiva. A ideia de vingança o dominava.

– Está preocupado, disse Fernanda vendo que ele se sentava sem dizer palavra.

– É verdade; uma grave preocupação.

– Motivo de família?

– Talvez.

Luís Fonseca acompanhou esta resposta com um gesto de desespero que assustou a moça:

– Que é? disse esta.

– Prima, sabe qual era o projeto de meu pai há meses a nosso respeito?

Fernanda abaixou a cabeça.

– Sabe, decerto, continuou Luís, e o projeto não era só dele, mas de toda a nossa família. Tive a crueza e a insensatez de me opor interiormente ao casamento que se projetava. Abertamente não podia recusar; consultei a um amigo…

– Primo, interrompeu Fernanda, falemos de outra coisa.

– Não; falemos desta.

Fernanda levantou-se.

– Bem, disse ela, sou obrigada a sair.

– Há de ficar, disse o bacharel, quando souber que se trata do decoro da família e de a salvar de um perigo…

– Um perigo? murmurou a moça tornando a sentar-se.

– Nem mais nem menos. Ouça.

Fernanda tremia.

– O amigo a quem consultei, continuou Luís, lembrou um meio que lhe pareceu excelente para afastar-me do casamento: o meio era procurar fazer-se amado da senhora e esfriar no seu coração o afeto que eu lhe inspirara.

Fernanda fez um movimento.

Luís continuou.

– Tive a covardia de aceitar o plano, e ajudá-lo a executar. Confesso todos os meus erros para melhor ver a sinceridade do meu arrependimento. Fui eu quem apresentou esse amigo em minha casa, onde ele logo captou as boas graças da família; e começou essa espécie de assédio em volta do seu coração. Ajudei-o, é verdade, com vergonha o digo, ajudei-o nessa infame tarefa!

A moça empalideceu no começo desta narrativa; mas as faces para logo se avermelharam. Luís continuou a referir tudo o que se passara entre ele e Ernesto.

– Com o que eu não contava, porém, disse ele, era a punição que me reservou o céu. Esse amor silencioso, casto, que eu tive o desazo de desprezar, veio acender-se em mim, e aquilo que há poucos meses recusei como uma grande desgraça, hoje almejo e peço como uma das maiores fortunas da terra.

Luís esperou algum tempo a resposta de Fernanda às revelações que acabava de fazer; a moça olhava para ele sem articular palavra; parecia nem ouvir nada.

– Bem sei, disse ele, que não tenho direito a esperar o que lhe peço; mas há certamente no seu coração misericórdia para me perdoar. Do perdão virá talvez o amor que espero mais tarde. Quanto ao pérfido que me iludiu…

A moça estremeceu.

– Quanto ao pérfido que nos iludiu, continuou Luís, estou certo de que não lhe merecerá nem uma expressão de desprezo.

Fernanda sorriu e murmurou:

– Por quê?

Luís olhou para ela com espanto. Seus olhos pareciam perguntar à moça se na realidade ele ouvira bem; por isso repetiu:

– Por quê?

E como Luís não se atrevesse a responder, a prima continuou:

– É difícil de crer que tudo isso que me referiu seja verdade; mas dado que seja, que deseja agora o primo? Que eu o ame? Nunca mais; o senhor mesmo tornou isso impossível. Que lhe perdoe? Perdoo-lhe de boa vontade…

– Mas…

– Nem só lhe perdoo; agradeço-lhe também, porque ao senhor devo eu a felicidade da minha vida.

– Como? Julga que esse homem que tão vilmente zombou da sua boa fé…

– Esse homem ama-me, e está perdoado. A história que o primo me contou já eu a sabia por boca dele mesmo, a quem desculpei tudo em troco da felicidade que me vai dar. Saiba que minha mãe consente ao nosso casamento e que este será oficialmente declarado daqui a poucos dias.

A leitora compreende, sem que seja necessário dizer-lhe, o estado do miserável moço ao ouvir estas palavras. Pegou no chapéu, cumprimentou, e foi chorar na cama que é lugar quente.

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