Quase ela deu o "sim"; mas...
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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João Cazu era um moço suburbano,
forte e saudável, mas pouco ativo e amigo do trabalho.
Vivia em casa dos tios, numa
estação de subúrbios, onde tinha moradia, comida, roupa, calçado e algum
dinheiro que a sua bondosa tia e madrinha lhe dava para os cigarros.
Ele, porém, não os comprava;
"filava-os" dos outros. "Refundia" os níqueis que lhe dava
a tia, para flores a dar às namoradas e comprar bilhetes de tômbolas, nos
vários "mafuás", mais ou menos eclesiásticos, que há por aquelas
redondezas.
O conhecimento do seu hábito de
"filar" cigarros aos camaradas e amigos, estava tão espalhado que,
mal um deles o via, logo tirava da algibeira um cigarro; e, antes de saudá-lo,
dizia:
— Toma lá o cigarro, Cazu.
Vivia assim muito bem, sem
ambições nem tenções. A maior parte do dia, especialmente a tarde, empregava
ele, com outros companheiros, em dar loucos pontapés, numa bola, tendo por
arena um terreno baldio das vizinhanças da residência dele ou melhor: dos seus
tios e padrinhos.
Contudo, ainda não estava
satisfeito. Restava-lhe a grave preocupação de encontrar quem lhe lavasse e
engomasse a roupa, remendasse as calças e outras peças do vestuário, cerzisse
as meias, etc., etc.
Em resumo: ele queria uma mulher,
uma esposa, adaptável ao seu jeito descansado.
Tinha visto falar em sujeitos que
se casam com moças ricas e não precisam trabalhar; em outros que esposam
professoras e adquirem a meritória profissão de "maridos da
professora"; ele, porém, não aspirava a tanto.
Apesar disso, não desanimou de
descobrir uma mulher que lhe servis convenientemente.
Continuou a jogar
displicentemente, o seu football vagabundo e a viver cheio de segurança e
abundância com os seus tios e padrinhos.
Certo dia, passando pela porteira
da casa de uma sua vizinha mais ou menos conhecida, ela lhe pediu:
— "Seu" Cazu, o senhor
vai até à estação?
— Vou, Dona Ermelinda.
— Podia me fazer um favor?
— Pois não.
— É ver se o "Seu"
Gustavo da padaria "Rosa de Ouro", me pode ceder duas estampilhas de
seiscentos réis. Tenho que fazer um requerimento ao Tesouro, sobre coisas do
meu montepio, com urgência, precisava muito.
— Não há dúvida, minha senhora.
Cazu, dizendo isto, pensava de si
para si: “É um bom partido. Tem montepio, é viúva; o diabo são os filhos!"
Dona Ermelinda, à vista da resposta dele, disse:
— Está aqui o dinheiro.
Conquanto dissesse várias vezes
que não precisava daquilo — o dinheiro — o impenitente jogador de football e feliz hóspede dos tios, foi
embolsando os nicolaus, por causa das dúvidas.
Fez o que tinha a fazer na
estação, adquiriu as estampilhas e voltou para entregá-las à viúva.
De fato, Dona Ermelinda era viúva
de um contínuo ou coisa parecida de uma repartição pública. Viúva e com pouco
mais de trinta anos, nada se falava da sua reputação.
Tinha uma filha e um filho que
educava com grande desvelo e muito sacrifício.
Era proprietária do pequeno chalé
onde morava, em cujo quintal havia laranjeiras e algumas outras árvores
frutíferas.
Fora o seu falecido marido que o
adquirira com o produto de uma "sorte" na loteria; e, se ela, com a
morte do esposo, o salvara das garras de escrivães, escreventes, meirinhos,
solicitadores e advogados "mambembes", devia-o à precaução do marido
que comprara a casa, em nome dela.
Assim mesmo, tinha sido preciso a
intervenção do seu compadre, o Capitão Hermenegildo, a fim de remover os
obstáculos que certos " águias" começavam a pôr, para impedir que ela
entrasse em plena posse do imóvel e abocanhar-lhe afinal o seu chalezito
humilde.
De volta, Cazu bateu à porta da
viúva que trabalhava no interior, com cujo rendimento ela conseguia aumentar de
muito o módico, senão irrisório montepio, de modo a conseguir fazer face às
despesas mensais com ela e os filhos.
Percebendo a pobre viúva que era
o Cazu, sem se levantar da máquina, gritou:
— Entre, "Seu" Cazu.
Estava só, os filhos ainda não
tinham vindo do colégio. Cazu entrou.
Após entregar as estampilhas,
quis o rapaz retirar-se; mas foi obstado por Ermelinda nestes termos:
— Espere um pouco,
"Seu" Cazu. Vamos tomar café.
Ele aceitou e, embora, ambos se
serviram da infusão da "preciosa rubiácea", como se diz no estilo "valorização".
A viúva, tomando café,
acompanhado com pão e manteiga, pôs-se a olhar o companheiro com certo
interesse. Ele notou e fez-se amável e galante, demorando em esvaziar a xícara.
A viuvinha sorria interiormente de contentamento. Cazu pensou com os seus
botões: "Está aí um bom partido: casa própria, montepio, renda das
costuras; e além de tudo, há de lavar-me e consertar a roupa. Se calhou, fico
livre das censuras da tia..."
Essa vaga tenção ganhou mais
corpo, quando a viúva, olhando-lhe a camisa, perguntou:
-"Seu " Cazu, se eu lhe
disser uma coisa, o senhor fica zangado?
— Ora, qual, Dona Ermelinda?
— Bem. A sua camisa está rasgada
no peito. O senhor traz " ela" amanhã, que eu conserto
"ela".
Cazu respondeu que era preciso
lavá-la primeiro; mas a viúva prontificou-se em fazer isso também. O player dos pontapés, fingindo relutância
no começo, aceitou afinal; e doido por isso estava ele, pois era uma "
entrada", para obter uma lavadeira em condições favoráveis.
Dito e feito: daí em diante, com
jeito e manha, ele conseguiu que a viúva se fizesse a sua lavadeira bem em
conta.
Cazu, após tal conquista,
redobrou de atividade no football,
abandonou os biscates e não dava um passo, para obter emprego. Que é que ele
queria mais? Tinha tudo...
Na redondeza, passavam como
noivos; mas não eram, nem mesmo namorados declarados.
Havia entre ambos, unicamente um
" namoro de caboclo", com o que Cazu ganhou uma lavadeira, sem
nenhuma exigência monetária e cultivava-o carinhosamente.
Um belo dia, após ano e pouco de
tal namoro, houve um casamento na casa dos tios do diligente jogador de football. Ele, à vista da cerimônia e da
festa, pensou: "Porque também eu não me caso? Porque eu não peço Ermelinda
em casamento? Ela aceita, por certo; e eu..."
Matutou domingo, pois o casamento
tinha sido no sábado; refletiu segunda e, na terça, cheio de coragem, chegou-se
à Ermelinda e pediu-a em casamento.
— É grave isto, Cazu. Olhe que
sou viúva e com dois filhos!
— Tratava " eles" bem;
eu juro!
— Está bem. Sexta-feira, você vem
cedo, para almoçar comigo e eu dou a resposta.
Assim foi feito. Cazu chegou cedo
e os dois estiveram a conversar. Ela, com toda a naturalidade, e ele, cheio de
ansiedade e, apreensivo.
Num dado momento, Ermelinda foi
até à gaveta de um móvel e tirou de lá um papel.
— Cazu — disse ela, tendo o papel
na mão — você vai à venda e à quitanda e compra o que está aqui nesta "nota".
É para o almoço.
Cazu agarrou trêmulo o papelucho
e pôs-se a ler o seguinte:
1 quilo de feijão.............................600
rs.
1/2 de farinha................................200
rs.
1/2 debacalhau...............................1.200
rs.
1/2 debatatas.................................360
rs.
Cebolas.........................................200
rs.
Alhos...........................................100
rs.
Azeite..........................................300
rs.
Sal..............................................100
rs.
Vinagre.........................................200
rs.
Quitanda:
..................................................3.260 rs.
Carvão..........................................280
rs.
Couve...........................................200
rs.
Salsa............................................100
rs.
Cebolinha......................................100
rs.
Tudo
..................................................3.860
rs.
Acabada a leitura, Cazu não se
levantou logo da cadeira; e, com a lista na mão, a olhar de um lado a outro,
parecia atordoado, estuporado.
— Anda Cazu, fez a viúva. Assim,
demorando, o almoço fica tarde...
— É que...
— Que há?
— Não tenho dinheiro.
Mas você não quer casar comigo? É
mostrar atividade meu filho! Dê os seus passos... Vá! Um chefe de família não
se atrapalha... É agir!
João Cazu, tendo a lista de
gêneros na mão, ergueu-se da cadeira, saiu e não mais voltou...
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