Qual dos dois?
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
CAPÍTULO 1
A Rua do Ouvidor é a gazeta viva do Rio de
Janeiro. Ali se fazem planos políticos e candidaturas eleitorais; ali correm as
notícias; ali se discutem as grandes e as pequenas coisas: o artigo de fundo dá
o braço à mofina, o anúncio vive em santa paz com o folhetim.
Não é, pois, de admirar que ali comece este
romance, que é ao mesmo tempo o romance do Dr. Daniel E... rapaz de vinte e
oito anos, formado aos vinte e dois, e regressado há pouco da Europa. Daniel é
formado em direito, mas até a idade em que o vemos aparecer não pleiteou um só
processo, e, a julgar pelo gênero de vida que leva, não promete ser coisa que
preste na ordem judicial. E, no entanto, não lhe falta talento, nem amigos, nem
protetores, três elementos capazes de levantar um homem quando ele não tem má
estrela. Mas apesar de todas essas vantagens, Daniel não tinha nem gosto nem
profissão de advogado, e estava mais longe dela do que o polo ártico está do
polo antártico.
Falemos verdade: o grande obstáculo que havia
em Daniel, não só para a vida forense como para qualquer outra vida ativa, era
a preguiça, o poderoso móvel do espírito humano descoberto por La Rochefoucault, isso que Madame de
Schönberg dizia ser — “um sentiment si
cachê et si véritable”. A preguiça quebrava-lhe os arrojos, como lhe
arrancava as paixões; e como felizmente ele possuía bens de fortuna, podia
afoitamente dispensar-se de tentar qualquer carreira trabalhosa, ou que
simplesmente lhe exigisse atenção.
Indiferente ao movimento público, a queda de
um ministério valia para ele tanto como a extinção de um charuto. Nunca lera um
discurso parlamentar. Conhecia a Constituição por tê-la lido na academia. Não
votava nunca, nem tinha disposição de fazê-lo.
Nenhuma grande ordem de ideias chamava a sua
atenção; tinha em pouco as fadigas do gênero humano por bens que lhe pareciam
nulos, sem que desse a razão por quê, operação que lhe exigiria certa
atividade, que não tinha.
— A vida é um ônibus, dizia ele; cada um paga
a sua passagem e desce do veículo na primeira cova que encontra. Ora, num
ônibus, anda-se quieto; deixem-me andar quieto.
Vê-se que o sentimento da preguiça aliava-se
um pouco a certa filosofia apática, resultando deste consórcio a mais perfeita
tranquilidade de ânimo que jamais entrou num peito daquela idade.
A sua vida era, pois, serena, plana e
uniforme. Nem tinha as grandes tempestades que agitam o mar, nem os aspectos
sombrios de um terreno cercado de montanhas. Era a quietação do lago e a
regularidade da planície. Pode ser que houvesse dentro dele o germe das grandes
paixões, mas faltava fecundá-lo.
Vivia Daniel na Rua do Ouvidor; os seus
horizontes não passavam da casa do Bernardo ou da livraria Garnier. Fazia
algumas excursões a Andaraí, a Botafogo ou à Tijuca, do mesmo modo que se faz a
viagem a Buenos Aires ou a Lisboa; mas o seu país natal era a Rua do Ouvidor.
Se a Rua do Ouvidor não existisse, dizia ele, era preciso inventá-la. Depois da
Rua do Ouvidor, só uma coisa lhe merecia cultos: a alcova em que dormia.
Era elegante por indiferença; vestia o que
lhe davam os alfaiates. Ia ao teatro por matar o tempo; entrava sem curiosidade
e saía sem comoções.
Não havia memória de que se houvesse zangado
alguma vez, nem com os escravos, nem com os amigos, que ele aliás confundia até
ao ponto de dizer que via um amigo em cada escravo e um escravo em cada amigo.
Não consta que depois de formado concluísse a
leitura de um livro, qualquer que fosse, nem que soubesse o título dos que lia
à noite para chamar o sono.
Tinha, entretanto, talento, como disse, e
podia ser alguma coisa, na política, no foro, nas letras e até no amor, porque
era um tipo singularmente belo, um desses rapazes com que sonham as meninas de
15 anos. Mas não amava, nem era amado.
Vivia com o pai; e completavam ambos toda a
família. O contraste era expressivo; tão apático era um, quão ativo era o
outro. O velho Marcos era negociante desde longa data; ganhara no comércio
todos os seus cabedais; agora, trabalhava para não vadiar. Entendia que o
trabalho não era um meio, mas um fim. Quando o filho se dava algumas vezes ao
trabalho de provar o contrário, o bom do velho limitava-se a sorrir e a
responder:
— Tens razão, meu peralta; tens razão, porque
eu não posso admitir que não tenhas razão, mas deixa-me continuar no erro.
Outro contraste: Marcos era sempre folgazão;
Daniel ria poucas vezes, menos por misantropia que por indolência. Mas, como
não se zangava, também não apresentava nenhum contraste.
Tinha ido a dois ou três saraus em toda a sua
vida; não dançou, nem jogou, nem ceou; limitou-se a olhar, a fumar e a trocar
algumas palavras. Não se demorou em nenhum deles mais de uma hora.
Tal é o Dr. Daniel a quem os leitores vão ver
na Rua do Ouvidor, à porta de uma loja de modas.
CAPÍTULO
2
Era há cinco anos, e na época das câmaras. A
Rua do Ouvidor é nessa época o grande pasmatório da capital; ali vão ter os
deputados e os curiosos, os políticos por ofício e por devoção. À porta da loja
em que vemos Daniel estão dois deputados conversando; trata-se de uma
interpelação para o dia seguinte. Daniel, encostado ao mostrador, do lado da
rua, fuma negligentemente um charuto, e olha distraído algumas mulheres que vão
passando.
De quando em quando lhe chega aos ouvidos algumas
palavras truncadas da conversa política; a única impressão que produz no rapaz
é um sorriso.
No fim de algum tempo, parou diante de Daniel
um rapaz baixinho, representando ter trinta anos, nem bonito nem feio, mas
elegantemente vestido. Eu diria que era um dandy,
se a novíssima expressão francesa petit
crevé não correspondesse melhor ao tipo do recém-chegado.
— Adeus, Daniel! disse este.
— Como estás, Valadares? Que fazes?
— Faço horas para jantar. São três e meia,
não? Queres tu vir jantar comigo?
— Pois sim.
Valadares encostou-se também ao mostrador,
cavalgou o pince-nez, e pôs-se a olhar para quem passava. Houve entre ambos um
silêncio de alguns minutos.
No entanto, a conversa dos deputados
tornara-se animada, a ponto que Daniel voltou rapidamente a cabeça, justamente
na ocasião em que um deles tirava do bolso um papel que ia ler ao outro.
Daniel sorriu.
— Quem são estes dois sujeitos? perguntou
Valadares.
— Deputados.
Novo silêncio, interrompido por Valadares:
— Sabes que o Abreu fugiu? disse ele.
— Por quê?
— Achou-se alcançado na caixa do patrão; e
não querendo expor-se a alguma vergonha, achou mais prudente retirar-se da
cena.
A resposta de Daniel foi sacudir a cinza do
charuto.
Valadares continuou:
— Nem sabes a causa disto?
— A Mariquinhas?
— Justo.
— Era previsto. Quando fugires também...
— Eu?
— Tu.
— Mas se eu tenho caixa à minha disposição...
— Não se foge só do Rio de Janeiro, foge-se
também do mundo.
— Um suicídio?
— Isso mesmo.
— Assim era eu tolo!
— Quando fugires do planeta, eu saberei logo
que é por causa da Luisinha.
— Não digas mal da pequena...
— Bem sei que é um anjo, disse Daniel; mas
isso não impede que lhe sacrifiques a vida; acho até natural...
— Com que cara ficarás quando eu te der uma
notícia...
— Que notícia?
— Vou casar-me.
— Com ela?
— Pateta! vou casar com uma conhecida nossa:
uma das Seabra.
— Qual delas?
— A Amélia.
— Creio que são minhas primas remotas.
— Vê lá se um homem, às portas do casamento,
pode lá matar-se por...
Daniel sorriu batendo com a bengala na ponta
do pé, e replicou:
— Mas isso e o que eu digo é a mesma coisa.
Casar é fugir ao mundo; a bênção nupcial não é mais do que uma encomendação em
regra. Ora, se tu te metes na sepultura do casamento, é justamente por causa da
Luisinha, cujos caprichos já não estão de acordo com os teus sentimentos.
Pode-se afirmar que esta meia dúzia de
palavras produziu o maior discurso que Daniel fez em toda a sua vida. Por isso
mesmo, apenas as proferiu, recolheu-se ao silêncio e não respondeu mais às mil
razões que Valadares lhe dava relativamente ao casamento com a Amélia e ao
rompimento com a Luísa.
Desculpem-me se resumo no mesmo período estes
dois nomes: o de uma noiva e o de uma cortesã. Estavam unidas também na memória
do rapaz, andam por aí ligados na vida; eu não faço mais do que copiar.
Valadares acabava de dar as mil razões do seu
casamento, quando à porta da loja parou um carro; o lacaio foi abrir a
portinhola e saíram de dentro duas senhoras: uma velha, ainda conservada, e uma
rapariga de cerca de vinte anos.
Um dos deputados que estavam à porta
conhecera-as apenas parou o carro e foi oferecer-lhes a mão. Saiu primeiramente
a velha, e depois a rapariga; entraram ambas na loja.
Daniel tinha, como um amigo meu, a mania de
examinar os pés às mulheres.
— A mulher, dizia ele, é um livro; o pé é o
índice do livro.
E já por aqui vê o leitor que Daniel tinha
outra mania, que era a dos aforismos e sentenças.
Com a mania de examinar o pé às mulheres,
Daniel não soube se a rapariga era bonita ou feia, morena ou clara; soube,
apenas, que tinha um bonito pé. Quando quis olhar-lhe para a cara, já ela havia
entrado na loja. Mas nem procurou vê-la através da vidraça; limitou-se a
voltar-se para Valadares e perguntar:
— Que gente é esta?
— É da família do B...
B... era um deputado do Norte.
Valadares olhou pela vidraça.
— Vê, Daniel, vê, como é bonita!
Daniel voltou o rosto e viu com efeito que a
pequena era bonita; mas não soltou nenhuma exclamação.
As duas senhoras pouco tempo se demoraram;
alguns minutos depois, chegaram à porta para entrar no carro. A moça ficou
justamente ao lado de Daniel. Este olhou para ela, a fim de confirmar a
primeira opinião, e deu com os olhos dela que, por acaso, se cravaram nele. À
claridade, a moça pareceu-lhe mais bonita do que a princípio; mas não teve
tempo de admirá-la, porque ela, fazendo com a boca um gesto de desdém,
voltou-lhe as costas e encaminhou-se para o carro, cuja portinhola estava
aberta.
A velha entrou depois e o carro partiu logo;
Daniel olhou para dentro: a moça ia conversando com a velha, e sem prestar
atenção a coisa alguma.
Toda esta cena, aliás rápida, escapou a
Valadares; Daniel, um pouco despeitado com o gesto da moça, sorriu-se e tirou o
relógio do bolso dizendo:
— Vamos jantar?
— Vamos, disse Valadares.
Na ocasião em que iam descer para o Hotel
Inglês (onde Valadares jantava habitualmente), Daniel viu na calçada uma liga,
abaixou-se e apanhou-a.
— Será a liga da pequena? perguntou
Valadares.
— Honny
soit qui mal y pense! respondeu Daniel sorrindo e guardando a liga no
bolso.
Foram jantar.
Durante o jantar, não se conversou mais no
episódio da liga, nem da moça do Norte. Apenas, quando veio o café, Daniel
perguntou onde morava aquela família, e soube que em Mata-cavalos. A conversa
não passou disso.
A verdade histórica pede que se diga que
ainda durante essa tarde a lembrança da dona da liga perturbou um pouco o
espírito de Daniel; mas posso afirmar que à noite já ele de nada mais se
lembrava.
Quando voltou à casa, atirou a liga para
dentro de uma secretária, e nisto ficou tudo.
CAPÍTULO
3
As senhoras do carro moravam em Mata-cavalos.
A velha era irmã de um deputado do Norte;
chamava-se Madalena e era viúva de um oficial do exército. Augusta, sua filha,
contava perto de vinte anos, e era, no dizer dos que a conheciam, a mais bela
cara da província. Mas não se lhe notavam somente as feições; Augusta
distinguia-se principalmente pela graça e elegância das maneiras, a que dava
realce um certo ar de altivez.
Tendo sido eleito deputado, o Dr. B... irmão
da velha e tio da moça, entendeu que aproveitaria o ensejo de ver a capital do
império trazendo consigo as duas senhoras. A proposta foi aceita com entusiasmo
por Madalena e simples agrado por Augusta.
Efetuou-se a viagem, e na época em que começa
esta narrativa já eles aqui se achavam havia dois meses, tendo vindo um mês
antes da abertura das câmaras.
Augusta fez sensação nas salas em que
apareceu; a beleza, a graça, as maneiras da moça a todos impressionavam e
todavia eram comuns essas coisas na vida fluminense; mas em Augusta tudo isso
trazia um ar característico, um cunho pessoal, que distinguia a moça das demais
mulheres.
Impressionado pela distinção de Augusta, um
desalmado rapaz disse-lhe uma noite que não supunha a província capaz de
produzir obra tão prima, e que ela era com certeza a fênix das provincianas.
— A natureza compensa tudo, respondeu
Augusta; é possível que na província as senhoras como eu sejam raras, mas os
homens como o senhor com certeza são raríssimos.
Esta resposta foi ouvida por um amigo do
rapaz, que não tardou em espalhá-la, e dentro de pouco tempo foram comentadas
as palavras da bela provinciana.
— De mais a mais tem espírito, observou um
sujeito.
— Parece.
A vítima do dito estava presente, e disse:
— É pena, porque é bem bonita.
— É um realce, acudiu o primeiro; e para
resumir na mesma designação as suas graças e as suas arranhaduras, chamar-se-á
a onça de Médicis.
O nome não pegou, porque dos cinco rapazes
então presentes, apenas o autor da ideia sabia da existência de uma Vênus de
Médicis, condição essencial para compreender o dito; contudo, foi este acolhido
com o riso dos circunstantes, um desses risos esquerdos que não querem dizer
coisa nenhuma.
A reputação de Augusta ficou firmada com mais
um ou dois repentes iguais ao primeiro, de maneira que quando a gente a
encontrava, se sentia tomada por dois sentimentos diversos: a fascinação e o
temor. Admirava-se a moça como se admirava uma bela pantera.
Nenhum destes antecedentes era conhecido
pelos dois rapazes com quem travamos conhecimento na Rua do Ouvidor; Valadares,
o único que conhecia a família, só a conhecia de vista, por tê-la encontrado em
casa de terceiro.
Mas, se em vez de seguirem para o Hotel
Inglês tivessem entrado na loja, depois da partida do carro, ouviriam este
diálogo dos dois deputados a meia voz:
— Como vão os seus negócios com a Augusta?
perguntou o mais velho dos dois.
— Na mesma, respondeu o mais moço.
— Então, nenhuma esperança?
— Esperança sempre. Já lhe disse uma vez e
repito: eu tenho a ambição de ser Ministro de Estado, ou Embaixador ou qualquer
outra coisa por este gênero; não tanto porque esses cargos pudessem
legitimamente seduzir a ambição política; mas principalmente porque talvez
assim obtenha as boas graças de Augusta.
— Disse-me isso uma vez, respondeu o outro;
mas cuidei que fosse simplesmente gracejo; há de lembrar-se que o disse rindo.
Desta vez, fala-me com seriedade. Será certo que as suas ambições têm por
principal esse motivo?
— Estou apaixonado.
O interlocutor sorriu e replicou:
— Espécie nova: político por amor. Há de ser
bonito num romance, mas no Parlamento é...
— Ridículo, bem sei.
— Justamente.
— E, no entanto, é verdade.
Houve um instante de silêncio.
— Luís, disse o interlocutor do namorado,
deixe-me dar-lhe este nome: tenho o direito da idade. Como contaremos com você,
se o seu procedimento depende todo do capricho de uma moça?
— Nem por isso deixei de ser até hoje aliado
fiel e ativo. Cuida que quando subo à tribuna não vou levado por uma convicção
sincera? Vou; mas, se emprego às vezes demasiado ardor, confesso que uma parte
dele é o resultado da intenção em que estou de fundar uma posição dominante...
por causa dela.
— Mas não vejo...
— Vejo eu. Cuido que desse modo poderei
vencer-lhe o orgulho.
O velho abanou a cabeça e franziu os lábios
com um gesto de desagrado.
Mas a conversa parou aqui.
Luís saiu para o hotel em que morava; o velho
foi jantar com um dos chefes da oposição.
Ao despedirem-se, disse o velho ao rapaz:
— Então, amanhã é a interpelação.
— Amanhã.
CAPÍTULO
4
Oito dias depois destas cenas, estando Daniel
almoçando em casa, e só, porque eram 11 horas e o velho Marcos almoçava às 8,
apareceu Valadares alegre e rubicundo.
Daniel ofereceu-lhe o almoço.
— Aceito, porque ainda não almocei, e
confesso que não pretendia fazê-lo por não ter vontade nenhuma. Mas pode ser
que a tua companhia me abra o apetite. O velho está cá?
— Não.
Valadares sentou-se à mesa e começou a
almoçar.
Durante os primeiros minutos, apenas trocaram
raros monossílabos.
Daniel acabou primeiro e acendeu um charuto.
— Que novidade há? perguntou ele.
— Uma grande novidade, respondeu Valadares.
— Imagino.
— Verás: uma novidade incrível e entretanto
verdadeira, uma novidade, que não é para ti, porque já te dei parte dela, mas
então foi um pouco vagamente.
— Vamos ver o que é.
— Caso-me.
— Ah!
— Caso-me daqui a um mês.
— Estimo muito.
Valadares cruzou o talher e recebeu a xícara
de café que lhe ofereceu o servente.
— Caso-me com a Amélia Seabra, e deste modo
fico aparentado contigo. Ora, queres que te diga? por muito superior que seja
um homem, esta ideia de casamento é sempre uma grande preocupação. De cada vez
que me levanto da cama pergunto a mim mesmo se é certo que dentro de pouco
tempo estarei eternamente unido a uma mulher. Eternamente! eu que nunca dei ao
amor mais de dois meses de vida. Que te parece?
— Nada.
Valadares engoliu rapidamente o café, recuou
a cadeira, e acendeu também um charuto.
— Dou um baile, sabes? disse ele a Daniel; e
peço-te por especial obséquio que assistas a ele.
Daniel fez um gesto de assentimento.
— Creio que terei muita gente, continuou
Valadares; conto já com dois ministros e quatro senadores; são convites de meu
sogro. Eu apenas me encarrego de convidar os rapazes. A propósito, lá teremos a
pequena da liga.
— Que pequena?
— Ora, aquela que deixou cair a liga na Rua
do Ouvidor... não te lembras?
— Ah!
Daniel recordou-se então do incidente da Rua
do Ouvidor.
— Que fizeste da liga? perguntou Valadares.
— Creio que a pus na secretária.
Levantaram-se da mesa.
Indo para o seu gabinete, Daniel abriu a
secretária e encontrou ainda a liga perdida por Augusta.
— Maganão! disse Valadares, guardaste-a!
— Por distração... respondeu Daniel.
E tornou a fechar a secretária.
Depois do encontro com Augusta, era a
primeira vez que ela lhe voltava ao pensamento. Daniel recordava-se do gesto de
supremo desdém e indiferença com que ela desviara os olhos e entrara no carro.
Se a preguiça, como quer o moralista, destrói
todas as paixões, confessemo-lo que o faz lentamente e não de um lance. Daniel
ainda tinha em si uma boa dose de orgulho que resistia à ação do elemento
dissolvente. A lembrança de Augusta foi de orgulho ofendido. O seu amor-próprio
sofreu naquele momento com a evocação da cena da Rua do Ouvidor.
— Com que então a moça da liga vai ao teu
baile...
— Vai; é também convite de meu sogro. Sogro!
Acho uma novidade nisto; parece-me que vou mudar da terra. Meu sogro! não
pensei nunca que tivesse de dar este nome a alguém. E no entanto... É o que te
há de acontecer.
Daniel levantou os ombros.
— A mim? disse ele; se toda a humanidade
esperar por mim para casar, podemos dar por extinta a raça humana.
— Era justamente o que eu dizia...
— Importa-me pouco o que tu dizias...
— Verás... verás...
Valadares saiu pouco depois e foi direitinho,
não para a casa da noiva, mas para a casa de alguém já indicada neste romance.
Hão de ter notado que Valadares em toda a
conversa sobre casamento só de passagem aludira à mulher. Contrário a todos os
noivos, a futura esposa não lhe merecera cinco minutos de atenção nas suas
expansões com um amigo. Nem mais nem menos, tratava-se de um desses mercados a
que, por cortesia, se chama — casamento de conveniência, — dois vocábulos
inimigos que a civilização aliou.
Valadares tinha chegado naquele ponto em que
se bifurca a estrada da vida de um estroina: de um lado, o casamento de
conveniência, do outro a perdição completa. É difícil naquela situação
encontrar uma mulher que se disponha a dar a mão ao estroina; achou-a
Valadares.
Estas mesmas reflexões fê-las consigo Daniel,
apenas se separou do outro, e, fazendo-as, comentou-as por modo que eu
estenderia muito estas páginas se quisesse desenvolver as suas reflexões.
Não se davam com Daniel as circunstâncias de
Valadares. Daniel era mais que tudo um homem extremamente pessoal. O casamento
impor-lhe-ia uma preocupação que ele não queria ter; quanto aos prazeres do lar
doméstico, eram coisa frívola para ele.
Quando o velho Marcos, ouvindo dele a notícia
de que Valadares se ia casar, insinuou ao filho que o exemplo era bom de
seguir:
— Pois não fosse! respondeu Daniel,
oferecendo um charuto ao pai.
CAPÍTULO
5
O casamento de Valadares produziu grande
impressão dans un certain monde, não
acreditaram nele à primeira notícia, mas afinal não havia contestação que o
boêmio, o estroina, o desalmado Valadares ia tomar estado.
A alguns parecia um sacrilégio, outros
acharam que era simplesmente um milagre.
— Com que direito, dizia a Luisinha já
citada, com que direito nos arrancam as pérolas do nosso adereço?
Havia um adereço em que Valadares era pérola.
Os rapazes já enraizados no país de Citera
davam o noivo por maluco, posto que, no ânimo de alguns, o casamento era
natural à vista dos bens da noiva.
Enfim, apesar de mil comentários e algumas
apostas, Valadares casou.
Foi excelente a reunião em casa do sogro. Lá
se achou, como prometera, o misantropo Daniel e mais o pai, que foi um dos
padrinhos do casamento.
A noiva de Valadares era uma rapariga bonita,
mas extremamente faceira, e apesar da especialidade do dia, em que todas as
mulheres se parecem, era fácil adivinhar nela uma casquinha de primeira ordem.
Via-se que era uma menina que casara para adquirir a liberdade de arruar. Caía
em boas mãos.
Daniel, segundo o seu costume, não dançava;
divertia-se em ver dançar os outros.
A família do deputado B... entrou às 10
horas; acompanhava-a Luís, o interpelante oposicionista que já encontramos na
Rua do Ouvidor.
Augusta estava radiante; a sua beleza, que
reunia magnificamente a graça e a severidade, era dessas que centuplicam com as
luzes da sala e perdem com a luz do dia. Quer isto dizer que, se Daniel a
achara bonita na Rua do Ouvidor, achou-a divinamente bela no salão dos Seabras.
Quando ela entrou, fez sensação. Todos se
curvavam involuntariamente por onde ela passava, semelhante à Vênus clássica,
cuja divindade se percebia simplesmente pelo andar. Daniel achava-se encostado
a uma porta por onde Augusta entrou na sala da dança. Não se curvou, nem deu
sinal de si. Augusta pareceu recordar-se das feições do rapaz, e demorou-se
alguns segundos a olhar para ele, mas para logo retirou os olhos, repetindo o
mesmo gesto de desdém que tanto impressionara o filho do velho Marcos.
— Por que este gesto?
Perguntava Daniel a si mesmo. Nunca a tinha
visto, nem pretendido. De onde vinha essa espécie de prevenção contra ele? A
curiosidade e o amor-próprio do rapaz estavam sofrivelmente aguçados.
Augusta entrou na sala pelo braço do tio; Luís
dava o braço a Madalena.
Quando Valadares a viu entrar, foi ter com
Daniel.
— Tive uma ideia, disse ele ao amigo.
— No dia de hoje, nenhuma ideia pode ser boa.
— Pois é. Casa-te com Augusta.
A dança interrompeu o diálogo.
Daniel colocou-se de modo que visse Augusta;
esta dançava com Valadares.
Durante a maior parte da quadrilha, os olhos
de Daniel não se encontraram com os de Augusta; mas no fim, por simples acaso,
a moça olhou para o rapaz, e sustentou por alguns instantes o olhar dele.
Pareciam interrogar um ao outro. Desta vez, foi Daniel o primeiro que afastou
os olhos, e retirou-se.
Saiu dali, foi para uma sala intermediária, e
ali atirou-se a um divã.
Estava só.
Consultou o relógio, olhou para o teto,
examinou as luvas, concertou a gravata, levantou-se, deu alguns passos, e
tornou a sentar-se até que a quadrilha acabou.
A sala foi invadida por alguns pares.
Posto que fosse perfeito homem de sociedade,
nada o aborrecia mais que o frufru das sedas, o estalar dos leques, o murmúrio
das conversações, todos esses rumores de uma festa alegre, que destoavam com o
seu espírito reservado e solitário.
O fastio começou a invadi-lo; dentro de uma
hora, se lhe não tivessem mão, estaria entre os lençóis.
Levantou-se e ia dirigir-se para a outra
sala, quando lhe apareceu o pai, dando o braço a Madalena. Marcos chamou-o.
Daniel aproximou-se; o velho apresentou o filho à mãe de Augusta.
Daniel recebeu a apresentação com frieza;
porém, Madalena foi tão amável que era impossível esquivar-se-lhe. Consequentemente,
conversaram os três durante algum tempo.
O grupo foi aumentado daí a alguns minutos
com a chegada de Valadares que trazia Augusta pelo braço. Nova apresentação e
desta vez mais solene para os dois apresentados. Nenhuma palavra foi trocada
além do simples cumprimento que Daniel dirigiu a Augusta e que esta ouviu
inclinando levemente a cabeça e olhando-lhe para os pés.
Não tinha que ver: aquelas duas criaturas
antipatizavam um com o outro. Não se casava a altivez de uma com o orgulho do
outro. Era o caso do provérbio: duro com duro...
Mas se ambos antipatizavam a tal ponto, nem
por isso Daniel deixava de admirar a beleza de Augusta, e Augusta a desdenhar a
severidade de Daniel; e essa mesma admiração os afastava mais; porque a
admiração é um preito; e nas poucas e curtas vezes que se haviam encontrado,
claramente se percebia em cada um deles a consciência da superioridade.
Não era entretanto do mesmo modo que Augusta
olhava para Luís; para este olhava com certa compaixão. Parecia ter pena dele.
Quando este lhe falava, ela respondia com bondade e doçura, mas a doçura e a
bondade de quem trata com um inferior, o que contrastava com o respeito do
namorado político. E, no entanto, o crime dele era simplesmente gostar dela, e
havê-la pedido em casamento, ao que ela se escusou, dizendo que era melhor
ficarem simples amigos.
Luís não dançava; tinha como Daniel, a
opinião de que a dança é um prazer dos olhos.
No fim, porém, de meia hora, Valadares foi
ter com Daniel insistindo para que ele dançasse ao menos uma quadrilha, ao que
ele recusou. Como estivessem a discutir este importantíssimo ponto, passou
Augusta, e Valadares interrompeu-a para dizer-lhe oficiosamente:
— O Dr. Daniel incumbiu-me de lhe pedir esta
quadrilha para ele.
Daniel mordeu os beiços.
Augusta respondeu olhando para Valadares.
— Mas eu não danço mais.
— Por quê?
— Estou cansada.
Daniel interveio.
— O Valadares, disse ele, pediu-lhe
espontaneamente uma honra que eu não ousava desejar, nem esperar.
— Estou cansada, repetiu secamente Augusta, a
quem Valadares deu o braço, escapando assim a uma repreensão do amigo.
Daí a um quarto de hora, Daniel desapareceu
do baile.
CAPÍTULO
6
Despontava-lhe já uma espécie de ódio contra
Augusta. Seria esse o caminho do amor?
Quinze dias depois dos acontecimentos que
acabamos de narrar, achava-se Augusta sentada ao piano, na casa de
Mata-cavalos, quando lhe entrou pela sala a dentro a mulher de Valadares.
Começava a moça a usar da liberdade que
procurara no casamento.
— Tua mãe? perguntou ela a Augusta, depois
dos primeiros beijos.
— Está lá dentro; vou mandá-la chamar.
— Creio que o moleque já lhe foi dizer que eu
estava aqui.
— Anda sentar-te.
Amélia sentou-se e disse sorrindo para
Augusta:
— Não me perguntas por meu marido?
— Ia fazê-lo.
— Está na repartição. A primeira coisa em que
concordamos, é que eu saísse a passeio quando me parecesse. Eu não sou criança
para andar agarrada a meu marido. Na Europa, não se usa isso. Demais, tenho
toda a confiança nele. Acho-te pálida hoje...
— Dormi pouco.
— Alguma preocupação?
— Uma enxaqueca.
— Que calor!
— Com efeito, o dia está quente.
Amélia agitou o leque lançando pelos móveis
da casa esse olhar de curiosidade indiscreto que tanta gente emprega numa casa
onde entra pela primeira vez, sintoma de uma grosseria sem-par.
Augusta olhava para ela sorrindo.
Nesse momento, entrou Madalena.
— Já de passeio! disse ela, beijando a mulher
de Valadares.
— Não é cedo.
— Seu marido está bom?
— Está.
— São felizes, creio.
— Completamente. Ah! o casamento foi a melhor
invenção deste mundo. Por que razão não casa sua filha?
— Porque não encontrou noivo.
— Isso é fácil.
— Não tanto, acudiu Augusta; além de que não
tenho pressa.
— Pois quanto mais cedo melhor, disse Amélia.
— Augusta, disse Madalena, terá um noivo
quando quiser. Agora
mesmo...
— Ah! algum apaixonado?...
Augusta levantou-se e foi buscar o lenço ao
piano.
— Não falemos nisso, disse ela.
Amélia levantou-se também.
— Já se vai? perguntou Madalena.
— Já; tenho de ir escolher uns vestidos. Quer
D. Augusta ir comigo?
— Não posso.
— Então, adeus. Olhe, dou-lhe um conselho:
não seja cruel.
— Por que não vem tomar chá conosco esta
noite? Perguntou Augusta.
— Não posso, respondeu a moça, tenho de ir
com meu marido visitar o velho Marcos. Conhece, não?
— É aquele homem que me apresentou na noite
do seu casamento? perguntou Madalena.
— Justamente; somos parentes. Está muito mal.
— Parecia vender saúde.
— O filho foi lá hoje à nossa casa dar-nos
parte da moléstia do pai.
— O Dr. Daniel?
— Sim. Adeus!
Amélia saiu.
Depois do baile, era a primeira vez que
Augusta ouvia o nome do rapaz, e qualquer que fosse a razão, não pôde ouvi-lo
sem algum abalo.
Ficando só na sala, Augusta foi sentar-se ao
piano e começou a dedilhar não sei que composição alemã. Mas evidentemente o
seu pensamento estava ausente. Algum tempo depois, entrou em casa o tio,
acompanhado de Luís.
Depois da recusa que fora dada na província,
era a primeira vez que Luís aceitava um convite de B... para jantar em casa dele.
Era um escrúpulo pueril, se querem; mas o moço tinha esse escrúpulo e
obedecia-lhe involuntariamente. Mas, como resistir às instâncias do velho? E
sobretudo como recusar o prazer de respirar o mesmo ar que a moça?
Quando os dois deputados entraram na sala,
Augusta levantara-se do piano.
O jantar foi imediatamente posto na mesa.
Depois do jantar, Luís esteve algum tempo a
sós com Augusta. Conversaram de coisas indiferentes. A moça felicitou-o pelos
aplausos que lhe deram como orador. Luís recebia-os com um ar de modéstia que
não escondia completamente o sentimento de satisfação que lhe dava aquele
elogio vindo da boca de Augusta.
Depois, acrescentou:
— Todos esses aplausos têm para mim uma única
vantagem: adiantar a minha posição.
— Tem ambição política?
— Não; bem sabe qual é a minha ambição.
A moça ficou séria.
Luís contemplou-a com um sorriso de dor;
depois procurou pegar-lhe na mão, que ela retirou apressada, dizendo:
— Perdão! tenho que fazer...
E como desse um passo para fora, Luís adiantou-se
e disse-lhe:
— Engana-se, D. Augusta, eu não venho
falar-lhe de coisas em que não posso tocar. Queria simplesmente pedir-lhe
desculpas se alguma vez a ofendo com alusões a um sentimento de que não tenho
culpa.
— Nem eu, creio.
— Voluntariamente, não.
A moça recuou e foi sentar-se.
— Olhe, disse ela; disse-lhe uma vez que
podíamos ser bons amigos. Quer assim?
— Aceito, e já é muito; mas creio que me é
lícito esperar o seu amor.
— Esperança inútil.
— Inútil? será, mas espero.
Augusta sorriu.
— Ambiciosa, disse consigo Luís.
Mas ao mesmo tempo, como que arrependido
desta exclamação interior, o namorado entrou a sorrir para ela, — sorriso de
súplica e de contrição.
Augusta não reparou nisso.
No entanto, a tarde caía, e a melancolia da
hora servia de fundo àquele quadro já de si tão triste: um coração de fogo ao
pé de um coração de rocha, um destino inteiro nas mãos de uma mulher
indiferente, a vida ou a morte de um homem dependente do olhar compassivo de
uma mulher.
Uns terão simpatia pela posição de Luís;
outros tédio. Depende dos caracteres. Os altivos julgarão que nenhum homem deve
aspirar à mão de uma mulher, quando esta lha recusa. São leis boas para o
papel. Quem conhece o coração humano compreende, lastimando embora, essas
situações humilhantes em que o amor pode colocar um homem, aliás brioso e digno
de si.
Não poucas vezes, Luís discutira consigo
mesmo a situação em que se achava, e nunca o seu espírito lavrou uma sentença
de abandono que lha não reformasse o coração, juiz em última instância nestas
matérias de amor.
Todavia, a cena daquela tarde impressionara
singularmente o moço. Pareceu-lhe que a insistência seria já degradação;
resolveu lutar e esperar.
Despediu-se de Augusta pouco depois e saiu.
Augusta, quando se achou só, respirou; era
evidente que a presença de Luís a importunava.
CAPÍTULO
7
A doença de Marcos foi mortal; dois dias
depois da visita de Amélia o bom velho faleceu, deixando saudades a todos
quantos o conheciam.
Na vida de Daniel foi um vácuo. Não se
costumara à ideia de que viria a perder o pai; era a única família que tinha, e
provavelmente o único ente a quem estimava neste mundo.
Os amigos deram-lhe as consolações do
costume; alguns discursos foram proferidos na ocasião de dar-se o cadáver à
sepultura; mas discursos, nem consolações podiam distrair o moço da dor que
acabava de sofrer.
Para os outros pais foi um fausto
acontecimento; era o noivo rico que convinha prender de algum modo. Por isso
foi grande a afluência de senhoras à missa do sétimo dia.
Lá estavam Madalena e Augusta.
Quando no fim da missa, começou a cerimônia
dos pêsames, Daniel recebia-os maquinalmente e sem dar sinal de si. Não
aconteceu o mesmo, quando Augusta se aproximou dele e murmurou algumas palavras
de consolação; não contava que ela estivesse na igreja.
Todavia, nem o estado dele, nem o lugar eram
próprios para maiores espantos. A moça seguiu a mãe, e Daniel ouviu as
consolações do resto dos assistentes.
Valadares convidou Daniel para ir passar
alguns dias em casa dele; apesar das recusas, tanto instou que Daniel cedeu, e
para lá foi mesmo dali.
A morte do velho Marcos punha nas mãos de
Daniel uma magnífica fortuna. Não contando com ela tão cedo, o rapaz não sabia
em que empregá-la. A mulher de Valadares era da opinião que se casasse; Daniel
abanou a cabeça; Valadares aconselhou-lhe uma viagem à Europa como coisa de
maior proveito. Este conselho provocou entre o marido e a mulher uma pequena
discussão que ia terminando por um ataque de nervos, desenlace seguro de muitas
tragédias domésticas.
A ideia de viagem também não agradou a
Daniel.
— Afinal, disse ele, a minha situação é a
mesma, a diferença é que eu hoje administro aquilo que outrora fruía
simplesmente.
— Por isso, digo eu, atalhou Amélia, como os
trabalhos de administração são enfadonhos, procure uma companheira. Olhe, eu
creio que tenho uma... que não se lhe dava de...
— Quem é? perguntou Daniel.
— A Augusta B...
Daniel franziu a testa. Acreditou que a
solicitude da moça, indo à missa, era simplesmente um cálculo. Figurava-lhe um
espírito altivo, e saía-lhe uma mulher interesseira. Acaso a mulher de
Valadares adivinhou esta impressão de Daniel? O certo é que imediatamente
acrescentou:
— Mas repare que isto é lembrança minha; ela
não me disse coisa alguma. Creio que até não seria coisa fácil; porque me
parece orgulhosa demais...
— Parece-lhe isso?
— Sim. No entanto, se quiser que eu lhe fale...
— Oh! não! não tenho vontade de me casar.
De casar, creio que Daniel não tinha vontade
nenhuma, mas nem por isso a lembrança de Augusta deixava de preocupá-lo. Havia
naquela moça um mistério que ele queria aprofundar. A ocasião era boa para
aproximar-se dela. Já haviam decorrido vinte dias depois da missa fúnebre.
Daniel resolveu ir visitar a família de Augusta para agradecer-lhe a presença
no ato religioso, tanto mais de agradecer quanto não se ligavam por estreitos
laços de amizade.
Só as duas senhoras estavam em casa, quando
se anunciou a visita de Daniel.
Augusta desapareceu da sala pouco antes de
entrar o rapaz, que apenas encontrou Madalena, com quem travou uma conversa de
cerca de meia hora. Durante esse tempo todo, Augusta não apareceu na sala. O
rapaz esperou ainda alguns minutos, mas vendo que não chegava, levantou-se para
sair.
— Espero, disse Madalena, que não será esta a
última vez que nos honre com a sua visita.
Daniel curvou a cabeça, agradecendo.
Depois apertou a mão de Madalena e dirigiu-se
para a porta, justamente no momento em que Augusta entrava na sala.
Cumprimentaram-se friamente.
Daniel saiu.
CAPÍTULO
8
— Por que não vieste à sala mais cedo?
perguntou Madalena a Augusta.
— Tive uma vertigem; não podia vir, respondeu
a moça.
— Foi pena, porque este moço é muitíssimo
amável; passei meia hora agradavelmente.
— Foi pena! murmurou a moça, disfarçando um
sorriso que lhe estava a brincar nos lábios.
Não disfarçou tanto que a mãe o não
percebesse.
— Há alguma coisa, pensou ela.
Augusta não lhe disse mais nada; mas quem
pudesse penetrar no seu espírito, ouviria a seguinte reflexão:
— São todos os mesmos!
Reflexão que aliás não esclarece muito a
situação. É provável que pelo romance adiante compreendamos essas palavras
interiores de Augusta.
CAPÍTULO
9
O casamento é a perfeita união de duas
existências; e mais do que a união, é a fusão completa e absoluta. Se o
casamento não é isto, é um encontro fortuito de hospedaria; apeiam-se à mesma
porta, escolhem o mesmo aposento, comem à mesma mesa, nem mais, nem menos.
Este é o casamento mais comum. O outro, o
legítimo, o raro, esse é outra coisa que não isto. A religião santifica o
casamento, mas supõe sempre a existência anterior de um elo tão sagrado como o
do altar.
Não se parecia com este o casamento de
Valadares. Casou o rapaz por motivos alheios ao coração: primeiramente por
interesse, depois por novidade. O casamento foi para ele uma espécie de passeio
ao Corcovado. Ora, todos são de acordo que do Corcovado se goza uma vista
magnífica, mas a ninguém lembrou ainda a ideia de lá fundar uma cidade. Ninguém
lá fica; sobe-se, goza-se, desce-se.
Valadares começava a sentir a necessidade de
descer do Corcovado; a ideia de que estava ligado para sempre era um verdadeiro
pesadelo que lhe sufocava o espírito. Verdade é que a sua liberdade não estava
tolhida; os boudoirs célebres que
frequentara outrora começaram a festejar a volta do filho pródigo. Mas era
sempre um vínculo, o pobre já sentia que este o apertava. Podia ser de rosas;
mas achou-o de ferro.
Amélia casara com Valadares como casaria com
outro qualquer; simples mudança de estado. Comprou a liberdade sob a forma de
uma prisão. Contratou um braceiro para os dias em que lhe conviesse sair a pé;
e um protetor para abrigar a sua existência, a sua reputação. Com estas
condições, qualquer noivo lhe servia. O que estava mais à mão foi o escolhido.
Imaginem já por aqui qual era a alegria
conjugal daquelas duas criaturas.
Não tardou que o aborrecimento viesse
sentar-se no lugar que o amor não ocupava; em vez de dois entes unidos por um
grande sentimento achavam-se como dois condenados ligados pela mesma calceta,
com a diferença que a comunhão do infortúnio e do crime estabelece certa
simpatia entre os dois condenados, a qual debalde se procuraria entre Valadares
e a filha de Seabra.
Começava a dissolver-se a forma conjugal; não
se precisava ser águia para adivinhar que, dentro de pouco tempo, a casa
liquidaria e os dois achariam na separação um remédio aos seus males.
Ora, este espetáculo e esta previsão
desagradavam profundamente a Daniel, que morava com os dois, segundo se disse
acima. Um dia de manhã, resolveu mudar-se, e assim o declarou aos donos da
casa.
— Mudar-se? exclamou Amélia. E por quê?
— Porque devo morar só; além disso, está com
o meu gênio.
— Se assim é, observou Valadares, não te
obrigo ao contrário. Mas hás de vir jantar comigo todos os dias...
— Todos os dias, não sei, respondeu Daniel.
— Já tem casa? perguntou Amélia.
— O meu procurador, respondeu Daniel,
disse-me ter encontrado uma em Mata-cavalos.
— Ah!
A mulher de Valadares sorriu maliciosamente;
o marido, por imitação, sorriu também.
Daniel viu os sorrisos e pareceu-lhe
compreender.
— Mas que tem isso? perguntou ele.
— Nada, acudiu Amélia, quer dizer que está
mais perto.
— De quem?
— Ora de quem! dela!
— Não conheço!
— Augusta.
— Ora!
Daniel respondeu com uma expressão que
simulava indiferença; mas, se devo confessar a verdade, não o era. Quando o
procurador lhe trouxe a notícia de que havia casa na Rua de Mata-cavalos, o
rapaz estimou a notícia e aceitou a casa.
— O fato é, disse Amélia, que ela pensa no
senhor.
— Em mim?
— Cuido que sim, porque há dias, indo eu lá,
duas vezes me perguntou se estava bom. Quando me perguntou a segunda vez sorri,
como há pouco fiz, e ela protestou calorosamente, mas debalde; via-se que era
um protesto aparente.
Daniel ouviu atento as palavras de Amélia.
— E que não fosse! disse ele; como eu não vou
para lá por causa dela...
— Creio, respondeu Amélia, mas o fogo ao pé
da pólvora...
— Eu não sou pólvora, nem fogo...
A conversa ficou aqui. Daniel, daí a dias,
estava completamente mudado.
A casa de Daniel ficava do lado oposto ao da
casa de Augusta, e um pouco distante, mas ainda assim podiam ver-se de uma
janela; e ele a viu no primeiro dia, depois, nunca mais a viu. Seria fortuito
ou expressivo? Não sabia.
CAPÍTULO
10
No fim de quinze dias, recebeu Daniel um
bilhete do tio de Augusta convidando-o a ir passar a noite com ele.
Deveria ir? Sem dúvida que sim. Não queria
parecer que se metia à cara da moça. O orgulho lutava nele por dois modos;
lutava, retendo-o para não parecer que a adulava; lutava impelindo-o para lá, a
ver se triunfava dela. É difícil que, de uma luta colocada neste terreno, venha
bom resultado.
Daniel só pela tarde adiante resolveu ir à
casa de Augusta.
Era uma reunião íntima; conversou-se e
tocou-se; não se dançou.
O tio de Augusta desejou que Daniel
considerasse a casa como sua; que se não prendesse por simples consideração de
cerimônias enfadonhas. Posto que Daniel tivesse em pouco a conversa das salas,
não por desprezo refletivo, mas por gênio e educação, todavia não ficava na
sombra desde que lhe fosse necessário desempenhar-se como cavalheiro polido.
Tinha natural espírito; sua conversa era fácil, brilhante, sem ser profunda,
coisa que agrada absolutamente às mulheres. Além disso, o rapaz queria impor-se
no espírito da moça; e como fazê-lo senão por meio desses triunfos de
eloquência familiar?
Mas Augusta parecia conhecer todas essas
armas e a intenção com que eram manejadas; tratou Daniel como a todos os
outros, em perfeito pé de igualdade. Nem lhe concedeu desta vez a distinção do
desdém, que tanto agrada a certos caracteres; nivelou-o com as demais pessoas.
Numa ocasião, pediu um dos amigos da casa que
a moça cantasse a cavatina da Norma,
justamente na ocasião em que Daniel, por entabular intimidade, lhe pedia um
pedaço de Lúcia.
Colocada entre os dois pedidos, Augusta
observou:
— Não posso executar ambas as coisas ao mesmo
tempo. Uma há de ser primeira. Qual delas? Resolvam entre si.
Enquanto o sujeito que pedira a Norma inclinava-se diante de Daniel, cedendo-lhe
a vez, Augusta com ar distraído e indiferente brincava com as tranças de uma
amiga que se lhe aproximara e que ia acompanhá-la ao piano.
Arranjara as coisas de modo que, nem mostrava
preferência, nem desdém por Daniel, o que aconteceria (pensava ela) se cantasse
primeiro ou depois o trecho reclamado pelo rapaz.
Estes e outros incidentes produziram em
Daniel o efeito natural; o orgulho foi-se pouco a pouco transformando; quando
dali saiu, naquela noite, já se pode dizer que no coração do rapaz rompia a
aurora do amor.
E, coisa singular, esse amor não era, como em
outros casos, um resultado de simpatia, mas sim da antipatia de duas criaturas,
que, se se odiassem alguma vez, seriam mortais inimigos.
CAPÍTULO
11
Não é minha intenção apresentar Augusta como
um caráter excepcional, nem como um espírito superior. Os sentimentos da moça
eram, em resumo, os mesmos das outras mulheres. O que a dominava, porém, era
uma certa frieza de temperamento que a tornava incompetente para os grandes
afetos. Acrescente-se a isto uma tal ou qual vaidade de sua beleza, e aí temos
o que era a filha de Madalena.
Educada pela mãe com uma perfeita
independência de espírito, Augusta adquiriu certa aspereza que lhe fazia o
caráter antipático. Era imperiosa, altiva, às vezes bondosa, mas bondosa por
orgulho, não acreditando muito nem pouco na violência dos sentimentos; o amor
para ela era simplesmente uma coisa que ela não compreendia, nem desejava
compreender. Parecia-lhe melhor o triunfo numa sala que num coração.
Nem Luís nem Daniel compreendiam isto; a
indiferença da moça era apreciada por eles diversamente do que cumpria ser, e
daí vinha a esperança de um e o capricho de outro. O verdadeiro triunfo seria
abandonar o campo; talvez que o despeito produzisse nela o resultado favorável.
Quem sabe? seria talvez a primeira a dar um passo para o esquivo namorado.
Luís supunha que podia fascinar a moça pela
grandeza de posição; algumas circunstâncias lhe davam razão para crer assim;
mas eram simples circunstâncias.
Quanto a Daniel, um pouco picado em seu
amor-próprio, assentou que de uma luta pertinaz poderia resultar proveito.
Pareceu-lhe que era preciso ser um bom general em vez de diplomata fino.
Afigurava-lhe que a espada de Condé tinha para o caso mais virtude que a pena de
Metternich.
Com estas impressões saiu da casa de Augusta.
Era a primeira vez que no espírito do moço a
vontade anunciava um papel ativo. Não era decerto o amor, senão o amor-próprio
que o inspirava assim. Mas neste caso, amor-próprio já não era um sintoma do
próprio amor? Daniel não percebeu isto; atirou-se à luta.
Começou a frequentar a casa de Augusta na
qualidade de amigo e vizinho. A moça foi com ele e com todos os outros
atenciosa e polida, mas fria; distribuía a sua atenção com igualdade. Não dava
direito a queixas nem esperanças; valia tanto para ela Daniel como Luís.
Luís frequentava pouco a casa; nem se podia
dizer que a frequentava; ia lá de longe em longe; conversava meia hora e saía
logo.
Posto que Daniel não entrasse nunca nas
campanhas do namoro, e apenas contasse em toda a vida alguns fáceis triunfos do
tempo da academia, todavia houve-se desde princípio como um verdadeiro cabo de
guerra.
Foi difícil à moça resistir aos primeiros
ímpetos da força arregimentada do rapaz. Aos tiros de artilharia, isto é, os
olhares, resistiu ela com facilidade; ninguém tinha maior expressão de desdém
do que ela quando se tratava de repelir os olhares de um cortesão.
Mas quando, depois de seus primeiros tiros,
Daniel aproveitou uma situação adequada e atirou contra a fortaleza as massas
compactas da infantaria, isto é, quando ele fez uma declaração em regra,
Augusta não foi tão fácil na defesa, e, se repeliu o inimigo, foi com sensíveis
perdas de sua parte.
Daniel acabava de declarar que a amava.
— Não creia, disse ele, que se trata de um
amor de poeta. Eu não tenho nada de poeta; nem é coisa que me penalize. O meu
amor vem um pouco da razão. Sou um homem temperado. Confesso que as suas graças
me impressionaram bastante; mas creia que, se não a achasse digna de ser minha
mulher, não lhe falava nisso. Estou que o amor duraria pouco mais que as rosas
de Malherbe. Quer ser minha mulher?
Esta declaração, em que misturava a
sinceridade com a insolência, foi dita com volubilidade, sem fogo nem lágrimas
na voz, no meio de tudo com certa graça. Augusta, tão fácil em responder, se
encontrasse um homem louco de amores, não achou logo uma palavra para opor à
pergunta e pedido de Daniel.
A moça tinha encontrado um sapato para o seu
pé.
A conversa que estou mencionando dava-se a um
canto da sala; as demais pessoas estavam entretidas em grupos distintos.
Augusta desejou que ali chegasse alguém, cuja
presença interrompesse a conversação; mas ninguém apareceu.
— Que me responde? perguntou Daniel.
— Respondo, disse Augusta, que não posso
aceitar o seu amor, nem o seu pedido.
— Por quê?
Augusta olhou para ele espantada com a
pergunta; mas como visse o olhar do moço, sereno e fixo, respondeu sorrindo:
— Formalmente, porque o não amo.
— Isso não é razão muito forte...
— No entanto...
— O amor viria com o tempo; bastava que me
tivesse alguma afeição. Não tem?
— Não tenho.
— Que é preciso fazer para vir a tê-la?
— Isso não sei, respondeu Augusta.
Daniel tirou o relógio do bolso e depois de
consultá-lo, tornou a guardá-lo silenciosamente. Na indiferença do rapaz, havia
um tanto de cálculo, mas um tanto de sincero. Apenas guardou o relógio:
— Pois eu acho, D. Augusta, disse ele, que
dificilmente poderia encontrar marido mais conveniente do que eu.
— Tem boa opinião em si, disse a moça
sorrindo.
— A melhor opinião deste mundo, acudiu
Daniel. Convencido de que os outros homens hão de ter sempre a meu respeito uma
péssima opinião, eu compenso esse juízo infundado, pensando a meu respeito as
melhores coisas possíveis. Por exemplo, a sua observação quer dizer que me
julga fátuo; eu penso justamente o contrário a meu respeito.
— É uma compensação, observou Augusta.
— Então confessa?...
— Confesso que estou com muito calor, disse
Augusta, levantando-se.
Daniel mordeu os beiços; mas levantou-se e
ofereceu-lhe o braço.
— Vamos para a janela?
Augusta aceitou sem repugnância, nem vontade.
— Com efeito, aqui faz menos calor, disse
Daniel apenas chegara à janela. E a noite está bonita.
— Está bonita, repetiu Augusta; mas se lá
está calor, aqui está frio.
— Não tanto, não tanto. Estou a ver uma
coisa, D. Augusta.
— O que é?
— É que tudo lhe parece exagerado. Nem lá faz
tanto calor, nem aqui tanto frio. Por que esta maneira de apreciar as coisas?
Não lhe parece que isso há de levá-la muita vez a ser injusta?
— Quando assim seja, disse Augusta, eu creio
que a primeira vítima da injustiça serei eu.
— Perdão! nem sempre assim acontece; e é
justamente por isso que a justiça me parece uma bela coisa. Queira meditar bem
nestas palavras, D. Augusta: não julgue nunca pelos olhos do seu capricho.
Daniel dizia todas estas palavras com uma
graça tão respeitosa que desarmava a moça; e no entanto já tinha o direito de
deixá-la à janela e voltar à sala.
Quando ele lhe falou nos olhos do capricho,
Augusta olhou espantada para ele; depois, respondeu:
— Os olhos do meu capricho podem ser maus; em
todo caso, porém, não usarei dos óculos do seu despeito.
A alusão era clara; Daniel não contava com
esta carga de baioneta.
— O meu despeito? disse ele; já sei ao que
alude. Eu poderia calar-me, mas acaso é digno de nós deixar sem resposta uma
alusão tão graciosamente feita? D. Augusta, eu repito o que lhe disse; amo-a,
quisera recebê-la em casamento; mas a sua recusa é para mim tão sagrada que eu
nem quero discuti-la; e inspira-me o mesmo sentimento que inspiraria a Virgem
Maria se eu lhe pedisse uma graça e ela ma negasse; resigno-me sem pensar mais
nisto.
Foi uma felicidade que entrassem neste
momento Valadares e a mulher. Augusta foi abraçar Amélia, enquanto Daniel
adiantou-se para ir apertar a mão a Valadares.
CAPÍTULO
12
Protestos de resignação em amor são como
sentenças escritas na areia; desfazem-se ao primeiro vento. Daniel, que era o
tipo da indiferença, começava a sentir a dolorosa convicção de que lhe seria
difícil viver sem aquela mulher. Quando chegou a casa, recordou todos os
episódios da noite, repetiu entre si as palavras trocadas com Augusta,
arrependeu-se das que proferira; por um instante, teve ideia de ir-lhe pedir
perdão. O tiro da peça ainda o achou acordado.
Se durante esse tempo, Daniel pudesse estar
no quarto de Augusta, veria a luz da vela confundir-se com os raios da manhã. A
moça dormiu apenas duas horas e ainda o seu sono foi sobressaltado. Seriam as
mesmas impressões? Eu poderia, no interesse do romance, deixar em claro este
ponto; mas prefiro dizer francamente aos leitores os sentimentos dos meus
personagens.
Augusta não velara pelo mesmo motivo que
Daniel. Era outro. Era despeito. A orgulhosa Augusta sentia-se envergonhada com
a cena que se passara durante a noite. Humilhara-se com a fácil resignação de
Daniel; era a sua primeira derrota.
O seu primeiro pensamento foi um pensamento
vulgar; lembrou-se de vingar-se do moço, vendo-o a seus pés. Mas, para
alcançá-lo, não seria preciso conceder-lhe esperanças, e estas não exprimiam a
confissão de um triunfo, que lhe parecia odioso?
Cálculos inúteis, dirá o leitor de boa fé, os
desta moça provinciana, que fazia do amor um jogo de xadrez. Que importa? eu
narro a verdade. Confesso que era mais bonito, mais juvenil, mais digno,
resolver simplesmente pelo coração, amar ou dar de tábua ao pretendente,
conforme lhe falasse o sentimento. Mas, se assim fosse, o romance acabaria e
seria outra coisa que não a história que estou relatando.
Quando Augusta se levantou tinha os olhos
pesados; a vigília deixara-lhe impressos os seus vestígios. E eram belos os
seus olhos, não sei até se mais poéticos, com a languidez do cansaço, do que
com a viveza natural. Direi mais: aquele aspecto tornara-a mais mulher, porque
Augusta tem no olhar e nas feições um quê de enérgico e severo, que indicava
antes um caráter masculino.
Passaram-se dias sem que os dois se
encontrassem: nem Daniel foi à casa de Augusta, nem esta se mostrou à janela.
Numa segunda-feira, apareceu Valadares em
casa de Daniel.
Convidou-o para um passeio à Tijuca em
companhia de várias famílias.
— A Augusta vai, disse ele.
— Que tenho eu com isso? perguntou Daniel.
Valadares sorriu.
— Que tens com isto? cuidei que tinhas alguma
coisa... Não se amam?
— Ela tem-me ódio.
— É caminho para o amor, ouvi dizer; e tu?
— Desprezo.
— Dizem que também é um atalho que vai ter à
grande cidade do conjugo vobis.
— Para a tua cidade! disse Daniel, sorrindo
maliciosamente.
Valadares suspirou.
— Para a minha cidade, tens razão! Mas antes
não fosse!
— A coisa vai mal?
— Vai o pior possível.
— Hão de acomodar-se... Tu tratarás de ver
uma compensação fora das fronteiras conjugais; e ela contentar-se-á com as
modas novas... Escusas de franzir a testa; é esta a tua convicção e a minha. O
casamento, meu caro Valadares, é uma loteria; o teu bilhete saiu branco. É
dinheiro perdido, ou antes dinheiro ganho, porque ainda que percas tudo, ainda
te fica o dinheiro...
Valadares engoliu dificilmente a observação
de Daniel, falou outra vez no passeio à Tijuca e assentou-se que Daniel iria.
O passeio fez-se daí a oito dias.
Entre outras pessoas achavam-se lá Augusta e Luís.
Daniel ignorava os sentimentos de Luís em
relação a Augusta; demais, conhecia-o pouco.
Na primeira ocasião que pôde alcançar, Daniel
perguntou a Augusta se estava com a mesma resolução em relação a ele.
— A mesma, respondeu Augusta.
Daniel inclinou-se e começou a falar da
beleza do sítio em que se achava.
Augusta ouviu-o não sem espanto.
— Tem grande amor à natureza? perguntou ela.
— Imenso. A natureza não fala.
— Os poetas dizem o contrário, retorquiu a
moça sorrindo.
— E dizem bem; a natureza fala, mas fala como
uma alma deve falar a outra, sem intermédio dos lábios. Ora, eu tenho notado
que o falar é perigoso para as nossas ilusões; uma palavra destrói às vezes um
mundo.
Augusta mordeu os lábios.
— Veja, disse Daniel, colhendo uma flor
agreste que lhe ficava ao alcance da mão. Há nada mais do que isto? Esta flor
diz mil coisas justamente porque não pode articular o que me diz: o perfume é a
sua linguagem; esta cor branca ligada com esta cor azul formam uma frase que eu
compreendo sem explicar. A coitadinha desta flor não pode fazer mal; mas, se eu
por um capricho qualquer, achasse na sua linguagem alguma coisa que me
ofendesse, tinha o remédio nas mãos; destruí-la-ia assim...
E Daniel esmagou a flor entre os dedos.
Augusta olhou para a flor e para Daniel. Nem
um gesto de surpresa ou de despeito; apenas sorriu, dizendo:
— Mas, ainda esmagada entre as suas mãos,
essa flor vale mais que o senhor, porque...
Luís aproximou-se do grupo quando Augusta ia
continuar.
— D. Augusta, disse ele; sua mãe quer
falar-lhe.
Augusta foi ter com a mãe.
— Está um bonito dia, disse Luís a Daniel.
— Está, respondeu o rapaz distraído.
E voltou os olhos para Augusta que se
afastava.
Luís viu o gesto e procurou adivinhar o olhar
de Daniel. Palpitou-lhe o coração mais fortemente; que haveria entre eles?
Alguns minutos durou o silêncio; no fim
deles, Daniel voltou-se para Luís e encetou uma conversa; Luís respondeu por
monossílabos ao interlocutor, até que o jantar veio pôr termo à situação
esquerda em que se achavam os dois.
CAPÍTULO
13
Daniel levantou-se um dia com a ideia de
fazer uma viagem a Minas.
Sentia que Augusta já o prendia mais do que
convinha ao seu coração; nasciam-lhe forças até então ignoradas. A indiferença
da moça fazia-lhe supor que lutava em vão; temia o desgosto. Resolveu viajar.
Valadares recebeu uma manhã a seguinte carta:
“Valadares,
Vou para Minas amanhã. Não sei se terei tempo
de ir fazer-te as minhas despedidas. Recomenda-me à tua senhora. Teu do coração
Daniel”
Apenas Valadares recebeu a carta, foi
imediatamente ter com o amigo.
— Vais para Minas?
— É verdade.
— Que tempo te demoras lá?
— Uns cinco meses. Queres alguma coisa?
— Estava capaz de ir contigo.
— E tua mulher?
— Fica.
— Pois tens ânimo?
— Pois então! Eu te digo; tenho até
necessidade de ver-me livre por algum tempo de semelhante algoz...
— Valadares, isso não é bonito...
— Seja bonito ou não, eu vou contigo; mas só
te peço uma coisa.
— O que é?
— Que adiemos a viagem para a semana que vem.
— Impossível.
— Por quê?
— Tenho minhas razões.
Valadares fez uma careta de desgosto; insistiu,
mas Daniel resistiu ao convite.
— Então, não poderei ir, disse Valadares.
— Não sei porquê.
— Ora! ir só é aborrecido. Contigo, a coisa
era outra. Olha lá; e se fôssemos a Paris?
— Isso mais tarde.
A conversa durou pouco mais. Valadares saiu desconsolado.
Daniel continuou a dar as suas ordens precisas para a viagem.
Foi nessa mesma tarde à casa de Augusta
despedir-se da família e oferecer-lhe os seus préstimos em Minas. A mãe de
Augusta agradeceu-lhos e ao mesmo tempo participou que, acabada a sessão do
Parlamento, partiriam para o Norte; e, portanto, só no ano seguinte se poderiam
encontrar.
— Até para o ano, disse Daniel
tranquilamente.
Augusta não manifestou surpresa, nenhum
desgosto com a notícia da viagem de Daniel; conversou alegremente com ele sobre
coisas inúteis; tocou um pouco de piano e despediu-se dele como se tivesse de
vê-lo no dia seguinte.
Às seis horas estava Daniel em casa, de volta
da casa de Augusta.
Mas daí a cinco minutos, parava-lhe um carro
à porta.
— Quem é? perguntou ele ao criado.
O criado foi ver e voltou dizendo:
— É uma senhora, vem subindo.
Pouco depois entrou-lhe na sala Amélia
Valadares.
— Desculpe se venho assim sozinha à casa de
um homem solteiro.
— Desculpar? disse Daniel, convidando Amélia
a sentar-se. Não há que desculpar; há que agradecer.
— Então, como vai de saúde?
— Assim, assim... creio que preciso fazer uma
viagem a Minas Gerais, e já mandei fazer-lhe minhas despedidas por intermédio
de Valadares.
— Ele me disse isso, e é justamente por causa
desta viagem que eu venho aqui.
Amélia sorriu-se com ar sonso.
Daniel não atinou com a ligação da viagem a
Minas e a visita da mulher de Valadares.
— Venho reforçar, disse Amélia, um pedido de
meu marido.
Daniel já se não lembrava que pedido era.
— Um pedido? disse ele. Qual?
— Valadares entrou agora lá em casa muito
triste; perguntei-lhe o que tinha e contou-me que, desejando ir a Minas com o
senhor, não pudera obter que o senhor adiasse a viagem até a semana que vem.
Ora, é isso justamente o que lhe venho pedir.
Desta vez foi Daniel quem sorriu.
— Não podia, respondeu ele, adiar a viagem há
tanto preparada; mas, à vista do pedido, não posso recusar o adiamento. Diga a
Valadares que pode contar comigo.
— Agradeço-lhe o obséquio, disse Amélia muito
satisfeita, e creia que favorece a meu marido.
— É favorecer a vossa excelência, creio,
interrompeu Daniel. Pode dizer que conte comigo.
A mulher de Valadares levantou-se para se
despedir, e nesse ato fez o que fizera ao princípio, segundo costumava, correu
por toda a sala olhos minuciosos.
— Desculpe, disse Daniel, desculpe o
desarranjo em que isto se acha... Estou em véspera de viagem; e bem vê...
— Pois não; desculpo tudo, disse Amélia
aproximando-se de uma mesa. São lindos estes objetos de bronze; são
principalmente de bom gosto... O senhor tem bom gosto.
— Creio que sim...
— Por exemplo, a Augusta...
E calou-se.
— Que tem a Augusta? perguntou Daniel.
— A Augusta é bonita; e o senhor mostra que
tem bom gosto...
— Maliciosa! bem sabe que...
— Sei que o senhor gosta dela.
— Perdão, gostei dela.
Amélia sorriu, mas não respondeu. Não teria
acreditado? Daniel suspeitou-o; e quando ia continuar a conversa para
deixar-lhe bem claro no espírito que já nada havia dele para com Augusta, a
mulher de Valadares chamou a atenção para não sei que volume que estava sobre a
mesa.
Como ele lhe explicasse o que era o livro,
ela continuou no exame dos objetos que viu sobre a mesa.
Amélia era naturalmente indiscreta e leviana.
A visita à casa de Daniel era já um ato de sofrível leviandade; a demora, e a
bisbilhotice com que examinava a sala tinha mais graves consequências. Que
pensaria Daniel se não conhecesse o espírito frívolo da moça?
De repente, Amélia, indo levantar um álbum,
viu debaixo um objeto que lhe chamou a atenção; era uma liga. Daniel estava
voltado para um espelho e não viu o gesto da moça. Amélia examinou a liga e viu
duas iniciais; as iniciais de Augusta.
O leitor lembra-se do episódio da Rua do
Ouvidor.
Quando Daniel se voltou para Amélia, viu-a
sorrir; aproximou-se e reparou que ela estava com a liga nas mãos. Não lhe
ocorrendo a circunstância das iniciais (circunstância bem própria de romance),
Daniel arriscou a seguinte observação:
— Fez mal em descobrir isso: é um despojo de
vencido.
— Ah! disse Amélia.
E mostrou as iniciais de Augusta.
Daniel empalideceu.
Amélia olhou para ele, atirou a liga sobre a
mesa, e disse, caminhando para o espelho:
— Não se assuste; eu sou de segredo.
Daniel tinha recobrado o sangue frio.
— Assustar-me de quê? perguntou ele.
— Não sei, respondeu Amélia, consertando o
chapéu.
— Além de que, não é segredo.
— Ah! não é segredo? Eu cuidei que era... Não
me disse há pouco que já não gostava dela?
— Perdão, disse Daniel aproveitando a aberta
que lhe davam essas palavras; eu creio que está enganada.
— Estarei enganada, e o Luís também.
— Quem é o Luís?
— O deputado, respondeu Amélia rindo.
E apertando a mão de Daniel acrescentou:
— Adeus, adeus! tenho pressa. Tenho a sua
palavra; só irá na semana que vem.
E antes que Daniel lhe oferecesse o braço ou
procurasse retê-la, saiu da sala e desceu as escadas.
Daí a pouco, partiu o carro.
CAPÍTULO
14
Daniel não pôde conter um gesto de despeito,
apenas Amélia saiu.
Tinha vontade de ir agarrá-la e castigá-la de
toda a leviandade com que procedeu entrando em sua casa. O incidente da liga, e
as meias palavras com que ela o encerrou, tudo estava fervendo no espírito até
há pouco tranquilo de Daniel.
— Que leviana! dizia consigo. Vir à casa de
um homem solteiro por um modo tão singular; fazer-me o singular pedido de ir
com o marido para fora; revolver os meus móveis; caluniar pessoas a quem abraça...
Ai, Valadares, que mulherzinha te caiu nos braços!
CAPÍTULO
15
Valadares era menos exigente que Daniel.
O que lhe parecia mal em Amélia eram as
impertinências da mulher faceira, os caprichos, as imposições, de maneira que
tudo acabaria se estivesse algum tempo fora dela... a espairecer.
Cuidou que a viagem a Minas era boa ocasião;
mas Daniel não quis adiar a sua viagem para esperá-lo. Amélia soube disso e foi
ajudá-lo nos seus desejos pedindo esse favor ao próprio Daniel.
Quando no dia seguinte, de manhã, Valadares
encontrou a mulher à mesa do almoço, disse-lhe ela:
— Já preparaste as malas?
— Para quê?
— Para a viagem a Minas.
— Só, não vou.
— Vais com o Daniel.
— Mas ele não quer adiar...
— Quer.
— Como sabes?
— Pedi-lho eu.
Valadares tomou a liberdade de abraçar
entusiasticamente a mulher diante da criada, cujo pudor lhe aconselhou
imediatamente uma excursão à cozinha.
— Não sabes como te agradeço o que fizeste
por mim.
— Ah! tens muito prazer em ir a Minas? Queres
esquecer-me?
— Eu, lindinha? Nem por sombras. Quero
estudar a província, e além disso preciso de tomar ares. O Valadão diz que eu
estou caminhando para a cova, e que preciso reforçar a minha constituição. Sabe
Deus que saudades levo de ti! Mas tu não queres ir.
— Bem sabes que não posso.
O almoço terminou alegremente; parecia que
aqueles dois galés já saboreavam a felicidade de se separarem durante algum
tempo.
Daniel resolveu responder às tolices de
Amélia com partida imediata, sem embargo da promessa anteriormente feita. Ao
princípio, repugnou-lhe o ato que era descortês; mas venceu o aborrecimento que
Amélia lhe causara na tarde em que foi visitá-lo.
E justamente quando Valadares agradecia à
mulher os esforços que fizera em favor dele, estava Daniel em caminho para
Minas, acompanhado de um simples criado.
Valadares saíra de casa para ajustar objetos
de que precisava para a viagem. Às duas horas, lembrou-lhe ir ter com Daniel.
— Onde está o amo? perguntou a um criado que
lá encontrou.
— Saiu, respondeu o criado.
— Volta?
— Foi para Minas.
— Para Minas...
Valadares ficou contrariadíssimo com a
notícia.
— Parece, disse o criado, que eu tenho aqui
uma carta para o senhor.
— Para mim? Dá cá.
O criado foi buscar a carta e entregou-a a
Valadares.
A carta dizia assim:
“Valadares,
Prometi à tua mulher que adiaria a viagem;
mas sinto não poder cumprir a palavra prometida a tão gentil senhora, porque
entrou-me por casa uma fúria, uma bisbilhoteira, uma mulher sem pinga de juízo
que pôs a minha sala e o meu espírito em desordem. Para esquecer esta hóspede
inesperada só me resta o recurso de precipitar a viagem. Até lá ou até à volta.
Teu Daniel”.
Valadares leu a carta e não a entendeu muito
bem.
Quando Amélia soube que Daniel, a despeito da
promessa que lhe fizera, havia partido, sentiu-se um pouco humilhada; mas como
as impressões da moça eram passageiras, o ressentimento não lhe durou mais de
um quarto de hora. Ficou, porém, despeitada com o bilhete de despedida de
Daniel. Aquilo que Valadares não compreendia, Amélia o compreendia demais.
Achou-se injuriada com as expressões da carta e mais ainda porque fora sem
dúvida escrita na previsão de ser lida por ela.
Valadares resolveu seguir viagem na época
escolhida por ele; mas um acontecimento estranho à nossa história impediu que a
viagem fosse executada. Achando-se numa ceia com rapazes e moças, Valadares
sentiu-se preso pelas algemas do amor, e sacrificou a viagem a Minas nas aras
de uma Laís de contrabando.
Nunca mais falou em viajar.
Amélia ainda tentou mandá-lo tomar ares; e
Valadares, que em todas as ocasiões, era o tipo do esposo maricas, desta vez
resistiu violentamente, prova de que amava profundamente... a outra.
CAPÍTULO
16
Quando Augusta soube realmente que Daniel
partira para Minas, sentiu uma decepção; apesar da despedida solene que este
lhe fizera e à família, Augusta acreditava que a viagem nunca seria executada.
Não supunha, note-se, que Daniel estivesse a
fazer comédia quando se despediu deles; mas acreditava que lhe seria difícil
deixar a corte. É que, apesar de tudo, Augusta estava convencida de que Daniel
amava-a loucamente.
O advérbio era demais.
Daniel amava a rapariga, e justamente para
acabar com esse germe, que já começava a desenvolver-se no coração, é que ele
fazia aquela viagem. Ouvira dizer que as viagens são excelentes contra o
reumatismo do coração.
Augusta sentiu-se ferida; o despeito pôde
muito naquela ocasião.
A sua esperança foi que, demorando um último
olhar na janela da casa dela, Daniel não pudesse seguir viagem e tornasse a
entrar para casa, dispondo-se a encadear a existência ali a seus pés.
A esperança foi iludida.
Mas para que desejava Augusta isso, se o não
amava?
Não sei; desejava-o.
Madalena procurou sondar o coração da filha
depois da partida de Daniel.
— Que sentes tu a respeito desta ida súbita
do Dr. Daniel? perguntou-lhe uma tarde.
— Eu, nada, respondeu Augusta. Acha que devo
sentir alguma coisa?
— Não; era simples pergunta. Sabes que ele
gostava de ti.
Nenhuma palavra mais se conseguia arrancar a
Augusta relativamente a este negócio.
Um dia, Luís estando com ela anunciou que
voltava para a província, e que estava disposto a abandonar a carreira
política. Acrescentou que até então tivera alguma esperança, mas que essa mesma
se desvanecera.
— Pensei, disse Augusta, pensei que já não
houvesse esperanças para o senhor.
— Havia uma...
— Qual?
— A de ser amado quando já todos se houvessem
esquecido de mim!
— Perdeu essa esperança? disse Augusta. Olhe
que não perdeu grande coisa.
— Perdi, porque ela era fundada numa base
falsa. Eu acreditava até agora que o seu coração era mudo.
— Ah!
— Mas sei que não; o seu coração falou.
— Que disse ele?
Augusta estava disposta a gracejar; as suas
últimas palavras foram ditas com um riso de escárnio cujo segredo só ela
possuía.
— Disse que ama a um ausente...
Augusta levantou-se ao ouvir isto; olhou
fixamente para Luís e disse:
— Que é ilusão sua ou calúnia de alguém!
Demais, creio que pouco lhe deve importar o sentimento do meu coração...
— Importa-me muito, D. Augusta. Não quero
falar-lhe de amor, pois que já mo proibiu; mas permita que lhe pergunte só por
que razão eu...
Augusta lançou-lhe um olhar de profundo
escárnio e desprezo, voltou-lhe as costas e saiu.
— É demais! disse Luís.
Pegou no chapéu e retirou-se.
— Que é isto? Por que motivo nutro eu uma
esperança vã? Para ser insultado todos os dias? Aquela mulher é uma estátua; não
tem sangue nem alma. É feita de um pedaço de mármore. Amar para quê? para ter
neste amor o meu tormento e a minha humilhação? Não! É demais! tudo precisa de
um termo.
Desse dia em diante, Luís não voltou à casa
de Madalena.
CAPÍTULO
17
O procedimento de Augusta era objeto da
curiosidade de todos.
— Por que motivo esta moça recusa todos os
pretendentes? diziam as mães de família; parece que não quer casar. Quererá
ficar para tia?
O argumento era singular; devia ocorrer a
todos que Augusta recusava os pretendentes justamente porque não gostava de
nenhum.
Mas a reflexão das mães de família era que um
casamento nunca se recusa, salvo circunstâncias especiais.
Madalena respeitava os escrúpulos da filha;
queria vê-la feliz e entendia que o melhor meio era casá-la com quem lhe
falasse ao coração.
Mas onde estava esse fênix, visto que nenhum
até agora lhe agradara?
Augusta conservava-se na sua torre de marfim,
pouco disposta a ceder às instâncias, nem de Luís, nem de Daniel. Viu partir um
e outro sem a menor emoção. Quem teria razão? Os que esperavam que chegasse a
Augusta a hora do amor ou os que a julgavam uma simples estátua de mármore?
Tinham já corrido dois meses depois da
partida de Daniel para Minas Gerais, quando Augusta encontrou Amélia na Rua da
Quitanda, indo a primeira com a mãe ver umas fazendas, e vindo Amélia de um
passeio com Valadares. Era raro que os dois andassem juntos; Valadares
gracejara muito por essa circunstância, apenas encontrou as duas senhoras.
— Não repare, D. Madalena; o sol e a lua ao
pé um do outro é sinal evidente de eclipse.
Depois de alguns minutos de conversa, Amélia
seguiu com Madalena e a filha, ao passo que Valadares foi a outras ocupações.
Amélia jantara com as amigas e voltara à noite para casa. Valadares escusou-se,
dizendo que tinha um jantar diplomático. Com efeito, ao jantar a que ele
assistiu, estiveram presentes alguns secretários e adidos de legação; mas o
caráter do festim tinha mais de guerra que de diplomacia. Notas, se as havia,
não eram de embaixada.
— Já sabe que a nossa partida está próxima?
disse Madalena a Amélia, apenas chegaram à casa.
— Ah!
— Apenas se fecharem as câmaras, continuou
Madalena, vou deixar o seu Rio de Janeiro.
Amélia olhou para Augusta com uma insistência
que a moça não compreendeu.
— Vai deixar o meu Rio de Janeiro, disse
Amélia depois de alguns instantes. Não gosta dele?
— Muito, decerto.
— É magnífico, disse Augusta; mas a nossa
província...
— Amor de bairro, respondeu Amélia sorrindo.
— Será, será, mas não somos todos assim?
— Conforme. Às vezes, muda-se de sentimento,
conforme os afetos que encontramos nos lugares novos.
— Isso não sei.
— Não achou cá alguma coisa?
— Coisa nenhuma.
Augusta disse isto com tanta frieza e
firmeza, que Amélia não pôde reprimir um gesto de espanto.
— Pois olhe, disseram-me...
— O quê? perguntou Madalena.
Amélia hesitou alguns instantes.
— Estou gracejando, disse ela.
Mas daí a algum tempo, achando-se a sós com
Augusta, disse-lhe:
— Disseram-me que estavas apaixonada pelo
Daniel.
— Eu? Qual!
— Disseram-me... Juras que não é verdade?
— Juro.
— Então, toma cuidado!...
— Por quê?
— Porque podem dizê-lo e então...
— Que importa que o digam? disse Augusta.
— Perdão; importa muito. Se disserem, por
exemplo, que fizeste presente de uma liga ao Daniel, como se fosse uma flor ou
um botão de camisa...
— Dirão uma tolice.
— Mas se disserem que ele possui esse objeto?
— Que ele possui? Ora essa! Estás brincando,
Amélia.
Amélia contou-lhe o episódio da casa de
Daniel.
CAPÍTULO
18
No fim de uma ausência de quatro meses,
voltou Daniel ao Rio de Janeiro.
A viagem foi uma verdadeira restauração.
Daniel achou-se como sempre fora, tendo perdido o menor vestígio do parêntese
que se dera em sua existência.
A falar verdade, Daniel achava agora que fora
ridículo durante os dias em que se sentiu apaixonado por Augusta. O caráter
indiferente do rapaz, por um momento agitado, voltou a ser o que era.
Entrou em casa de noite, e não tendo
prevenido a ninguém, ninguém foi esperá-lo à chegada.
Ao entrar em casa, não pôde deixar de olhar
para a casa de Augusta. Ignorava se ainda ali moravam ou se haviam partido para
a província. A casa estava silenciosa.
O criado, que o recebeu, deu-lhe notícia de
que a família de Augusta ainda morava na mesma casa.
— Mas quem te perguntou por isso? disse
Daniel.
— Eu lhe digo, meu amo; é que, de quando em
quando, mandavam saber de lá quando é que meu amo chegava.
— Sim?
— É verdade. E há coisa de três dias recebi
uma carta com ordem de entregar-lha apenas chegasse.
— Uma carta?
— Sim, senhor; está no seu gabinete.
— Deixa-me ir descalçar as botas.
Noutro tempo, Daniel teria ido ver a carta
primeiro; agora, preferia descalçar as botas. Sirva isto de termômetro; quando
um homem procura antes de tudo ler uma carta, ama; quando descalça as botas
antes, já não ama. É receita que lhes dou de graça.
Descalçadas as botas, Daniel foi ler a carta.
Era de Augusta.
Dizia assim:
“Apenas chegar, peço-lhe que venha à nossa
casa. Desejo falar-lhe.
Augusta”.
— Olé! disse Daniel em voz alta; dar-se-á
caso que a menina mudasse de opinião? Que diabo me quererá ela? Se vem falar de
amores, estou disposto a não admitir conversa neste ponto; é capítulo acabado.
Amanhã veremos a coisa.
E reparando que o criado ouvira este solilóquio,
voltou-se para ele rindo:
— João, ouviste o que eu disse agora?
— Eu só ouço o que meu amo quiser; respondeu
o criado sorrindo maliciosamente.
— Ainda bem. Dá-me de comer.
Daniel comeu tranquilamente como um homem que
chega de uma viagem de recreio.
— Veio alguém procurar-me?
— Veio o Sr. Valadares duas vezes. Parece que
tem graves acontecimentos para comunicar-lhe.
— A mim?
— Disse-me isto.
— Vai dizer-lhe que eu voltei e o espero hoje
mesmo.
O criado saiu.
Daniel releu o bilhete de Augusta, e não
podia furtar-se ao espanto que lhe causava a sem cerimônia da moça, escrevendo
e assinando um bilhete que podia comprometê-la.
— Tudo é natural naquele gênio excêntrico,
dizia ele consigo.
Cerca de uma hora depois, chegou Valadares.
Depois de um apertado abraço de boas-vindas,
Valadares sentou-se e pediu a Daniel a sua mais profunda atenção.
— Estava ansioso por ver-te, disse ele.
— Aqui estou. Tua mulher?
— Não me fales dela.
— Por quê?
— Quero propor ação de divórcio.
— Eu já contava com isso, disse Daniel
tranquilamente. Dizem que dois gênios iguais não fazem liga; parece que o
adágio é certo, visto que vocês ambos eram o tipo da frivolidade...
— Daniel!
— Desculpa a franqueza; é um direito de
amigo. Até hoje não descobri outro mérito num amigo senão o de dizer coisas
desagradáveis ao outro amigo, sob pretexto de que a franqueza é um dever do
coração. Portanto, sustento que vocês dois não se podiam ligar, pois eram e são
dois espíritos frívolos.
— E tu, queres passar por um homem grave?
— Deus me defenda! Eu não sou grave, nem
frívolo, sou indiferente. São dois extremos. Eu estou entre estes dois polos do
espírito humano. O caráter é como a gravata; uns usam por gravata uma fitinha
preta, são os frívolos; outros um lenço de dois palmos de altura, são os
graves. A primeira constipa, a segunda sufoca; eu uso gravata regular.
Valadares soltou do peito um ruidoso suspiro.
— Bem; esquece os meus defeitos para atender
somente aos meus infortúnios... Não posso viver com Amélia, devo separar-me a
todo custo.
— É resolução assentada?
— É.
— Então o meu conselho é inútil.
— Nem eu te peço conselho. Quero simplesmente
que me defendas quando me acusarem.
— Isso não!
— Por quê?
— Não quero intervir em negócios de família.
A resposta de Daniel foi tão fria que
Valadares não achou objeção razoável.
— É a tua última palavra? perguntou ele.
— A última.
Seguiu-se a isto um longo silêncio.
Valadares levantou-se, deu alguns passos,
acendeu um charuto enquanto Daniel punha em ordem alguns papéis.
— Como te foste de viagem? perguntou
Valadares.
— Bem.
— E quando eu penso que podia ter ido contigo...
A propósito, continuou Valadares, que me querias tu dizer na carta que me
mandaste e que eu não entendi?
— Ah! queria dizer que não podia esperar.
— Mas há certas palavras...
— Isso não vale a pena. Tua mulher leu a
carta?
— Leu. Ah! se eu tivesse ido contigo! Mas
aquilo por lá é muito aborrecido?
— Conforme, disse Daniel; para quem gosta da
corte e da Rua do Ouvidor, deve ser aborrecido; eu acomodo-me bem em toda a
parte.
— É verdade que se eu fosse perdia muita
coisa.
— Sim?
— Coisas do arco-da-velha. Sabes que temos
gente nova?
— Onde?
— No Alcazar. A rapaziada agora anda muito
animada. Eu estreei ontem este paletó num grande jantar na Tijuca... jantar de
Citera. Como achas o paletó?
— Acho bom.
— Manda fazer um, porque a moda é isto agora.
Tenho pena de não ter trazido os figurinos; os cortes das calças são
excelentes. Estas que eu tenho já passaram da moda; trouxe-as, porque vim depressa
e é noite. E os padrões?
Valadares continuou neste gosto até que
bateram dez horas. Daniel alegou que estava cansado e precisava dormir.
Valadares saiu, prometendo voltar no dia seguinte, a fim de ver se obtinha uma
resposta dele.
— Sobre o divórcio ou sobre as calças?
— Uma e outra coisa, disse Valadares descendo
a escada.
CAPÍTULO
19
No dia seguinte, à noite, Daniel foi visitar
a família de Augusta.
O rapaz tinha curiosidade de saber que
impressão lhe produziria a moça. Posto que não sentisse mais nada por ela,
queria ver se o simples aspecto do rosto ex-amado teria força de despertar as
recordações extintas.
Entrou firme e tranquilo na sala.
Madalena esperou-o à porta; Augusta estava no
sofá, e levantou-se apenas Daniel apareceu.
Feitos os cumprimentos do estilo, depois de
uma longa viagem, Daniel disse que não cuidava encontrá-las no Rio de Janeiro,
visto estarem fechadas as câmaras e ter o irmão de Madalena necessidade de
voltar à província.
— A necessidade desapareceu por enquanto,
disse Augusta; meu tio demora-se algum tempo...
— O que é um prazer para nós todos, disse
Madalena.
Daniel curvou-se em sinal de assentimento.
A conversa tomou outra direção até que
chegaram algumas visitas mais.
Daniel pôde ficar algum tempo a sós com Augusta,
no canto de uma janela.
— Recebeu uma carta minha? perguntou a moça.
— Um simples bilhete.
— Isso mesmo. Não me julga leviana?
— Não; apenas audaz.
— É um sinônimo neste caso. Seja o que for; o
certo é que recebeu a carta... e veio.
— Viria em todo caso, observou Daniel; mas o
seu bilhete apressou a minha visita.
— Sabe o que lhe quero?
— Não adivinho.
— Lembra-se o que me disse há tempos?
— Disse-lhe que a amava.
— Pois bem, proponho-lhe uma coisa. Quer
casar comigo?
Daniel ficou espantado com a franqueza desta
pergunta. Fez-lhe o mesmo efeito de uma bala em cheio no estômago. Não atinando
com a resposta, murmurou um monossílabo. Quem visse os dois julgaria que os
papéis estavam trocados. Daniel assemelhava-se a uma donzela tímida, e Augusta
a um cavalheiro amante e solícito, querendo arrancar da amada a resposta
decisiva.
No fim de alguns segundos, disse Augusta:
— Não responde?
— Quer que lhe responda? perguntou Daniel,
readquirindo o seu sangue frio. É tão singular esta pergunta feita por vossa
excelência.
— Singular? Não acho.
— Singular por dois motivos. O primeiro é que
essa pergunta costuma sempre ser feita por nós outros; aqui os papéis estão
trocados; o segundo é que, depois do que me disse há tempos, aí...
— Mudei de opinião.
— De opinião? perguntou Daniel, sorrindo.
— De sentimento, queria eu dizer, respondeu
Augusta. Não exijo a resposta imediatamente; basta que a mande amanhã.
E retirou-se da janela.
Daniel ainda ali ficou algum tempo, aturdido
com o que acabara de ouvir. Tudo lhe parecia estranho naquela moça. Para
supô-la leviana encontrava um desmentido no seu caráter, que estudara outrora;
seria o que ele lhe disse a ela mesma, apenas uma audaciosa?
Daniel meditou nessa noite na resposta que
lhe havia de dar, ou antes na forma de resposta, porque a resposta era
negativa. Consultou o coração e reconheceu que nada sentia por ela. Estava
frio. Enganá-la, seria baixeza; mais valia ser franco.
Mas como dizer-lhe, sem que lhe ofendesse os
brios, esta revelação inesperada?
No dia seguinte, depois de muito meditar
escreveu a carta seguinte:
“Minha senhora,
A singularidade da nossa situação só pode ter
uma solução singular. Convidado a casar por uma moça bonita, prendada, que a
todos os respeitos é a ambição de um homem, é singular que esse homem, não
tendo outros compromissos, recuse o convite. Pois é justamente a minha
resposta; tomo a liberdade de recusar.
Não me acuse, porém, antes de meditar bem nas
considerações que me obrigam a recusar o seu convite. Aceitá-lo-ia, quando eu a
amava; hoje, que o sentimento que lhe votava desapareceu de todo, não posso
fazê-la feliz, porque casar sem amor é desgraçar uma senhora.
Tudo isto é singular; a maior parte dos
casamentos fazem-se independentemente do amor. Mas, que quer? Eu, profundamente
cético, a respeito de tudo, tenho a veleidade de crer no amor, ainda que raro,
e quero que o amor seja a única razão do casamento.
À vista destas razões, o meu procedimento,
recusando, é tão nobre e digno como vil seria se aceitasse. Creia-me,
entretanto, seu amigo e respeitador”.
Fechou a carta e mandou-a.
Que impressão produziria ela no ânimo de
Augusta?
CAPÍTULO
20
Augusta não se mostrou irritada com a
resposta de Daniel; conteve a irritação; revelar-se era contrário ao seu
orgulho; não queria fazê-lo e não fez.
Mas, poucos dias depois, notavam-se as
visitas repetidas de Luís à casa de Madalena; as pessoas que frequentavam a
casa notavam também que as relações entre o deputado e Augusta eram muito mais
cordiais do que antes.
Madalena quando percebeu isto, estimou muito
que a situação tivesse tomado aquele caráter; preferia vê-la casada com um
homem que parecia merecer toda a confiança.
E seria namoro?
Alguns afirmavam que sim; outros que não.
Todos concordavam, porém, que a situação entre
ambos tinha-se modificado muito.
Luís, pela sua parte, já se acreditava mais
feliz; não é que ela lhe desse esperanças positivas; mas todo o seu
procedimento dava a entender isso mesmo.
Daniel, depois da carta que escreveu a
Augusta, hesitou em frequentar a casa; mas, ao mesmo tempo curioso por ver o
efeito da carta, resolveu lá ir, e com efeito apareceu ali quinze dias depois
do último em que lá estivera.
Como o recebeu Augusta?
Daniel ia atravessando um corredor e
encontrou Augusta que vinha de uma sala interior. A moça apenas o viu foi mais
depressa para ele, com um sorriso nos lábios, a ponto que o rapaz, contando com
um gesto de despeito ou ao menos de indiferença, ficou como dizem, desapontado.
Trocaram alguns cumprimentos, depois dos
quais Daniel perguntou a Augusta:
— Perdoou-me?
— Perdoei-o.
Augusta disse estas palavras com tanta graça
que Daniel sentiu-se arrependido de ter mandado a carta.
Nessa noite, lá esteve Luís como de costume.
Madalena recebeu Daniel com um sorriso de
piedade. Ignorava a troca de cartas, mas o sorriso queria dizer:
— O que perdeu o senhor! Vai outro ser feliz!
Daniel mostrou-se amável com todos. Augusta
não demonstrou o menor sintoma de desagrado, em relação ao rapaz.
— Será isto natural? ou é simplesmente hipocrisia?
perguntava Daniel consigo.
Luís estava radiante de amor. Já para ele não
havia dúvida de que triunfava finalmente a sua perseverança.
A presença de Daniel que, em outra época, o
incomodara, já agora lhe era indiferente.
Por sua parte, Daniel conhecia pelo ar de Luís
que a situação estava toda a seu favor.
Não quis disputar-lha.
Somente, refletiu um pouco sobre a facilidade
com que Augusta passava de um a outro namoro.
A coisa não seria de admirar noutra mulher;
mas na orgulhosa Augusta!
CAPÍTULO
21
Daniel ao entrar em casa recebeu uma carta
que lá deixara Valadares.
Desta vez, o janota ia divorciar-se da
mulher.
Daniel sorriu e atirou a carta a um lado; mas
no dia seguinte de manhã, apenas saiu à rua, recebeu a notícia como certa.
Tinham-se finalmente separado aquelas duas
almas que não foram feitas para ser unidas, apesar da conformidade das
tendências que se notava entre ambos.
O próprio Valadares veio confirmar a notícia.
Daniel encontrou-o no Rocio, junto à esquina
do Clube Fluminense.
— Sabes, meu rico Daniel?
— O quê?
— Que eu vou pôr a sela à margem; a sela é
minha mulher.
— Tu és o burro, disse Daniel rindo.
— Com três r r r.
— Mas eu ouvi dizer que já estavam separados?
— Já me mudei de casa; agora vamos tratar
judicialmente do divórcio.
— Mas já pensaste nisto maduramente?
— Já pensei demais; se me não separo tão
depressa, iria para o hospício.
— Se lá estivesses há mais tempo, não te
casavas.
— Isso é verdade...
Despediram-se. Daniel foi rindo interiormente
da situação de Valadares.
Na primeira vez em que se achou em casa de
Augusta, encontrou lá Amélia.
A mulher de Valadares estava alegre como se
não se houvesse dado na sua vida acontecimento de grande monta.
Daniel não lhe disse nada; mas Amélia, na
primeira ocasião em que se achou com ele mais separada dos outros, contou-lhe a
mesma coisa que o marido, com a diferença de que desta vez a vítima era ela e
não ele.
Daniel ouviu como amigo a narração que Amélia
lhe fazia, mas absteve-se de dar resposta nenhuma.
— Tudo isto, pensava ele consigo, voltando
para casa, são argumentos para não casar nunca!
Anunciou-se um grande baile dado pelo tio de
Augusta que se retirava com toda a família para a província. O velho deputado
não era dado a essas coisas; mas, a pedido da sobrinha, fez tudo o que ela lhe
indicou.
Augusta queria ter na corte um último
triunfo.
Com efeito, na noite do baile esteve
esplêndida. Ela tinha o condão de ser elegante, com simplicidade. Sobrava-lhe
gosto. E tudo quanto podia fazer, fê-lo para aquela noite, que devia ser a sua
última campanha.
Luís ficou deslumbrado quando a viu entrar na
sala, e não menos deslumbrado ficou Daniel.
A moça aceitou Daniel para seu primeiro par.
— Sabe que está deslumbrante? disse-lhe o
rapaz, tomando o lugar na quadrilha.
— Deveras?
— É o que lhe digo. Demais, já todos os olhos
lhe estão dizendo isto mesmo.
Depois dos antecedentes havidos entre Daniel
e Augusta, era impossível que fossem mais familiares.
Posto que Luís tivesse já grandes esperanças,
com visos de certeza, de dominar completamente o coração de Augusta, todavia
estava um pouco incomodado com as atenções que a moça tinha para com Daniel.
Sabia nada existir; mas receava, e bastava
isso para atormentá-lo.
Tudo, porém, desapareceu, quando Augusta o
aceitou para par da seguinte quadrilha.
— Não tive a satisfação de dançar a primeira,
disse Luís, mas espero que me conceda a segunda.
— Não nos compromete isso? disse Augusta.
— Por quê?
— Dizem que a segunda quadrilha é dos
namorados.
Luís sorriu cheio de satisfação.
— Dizem, é verdade, respondeu ele sem saber
bem o que dizia.
No correr da quadrilha, desapareceu a menor
sombra de susto de Luís. Augusta estava mais do que nunca amável com ele.
CAPÍTULO
22
Justamente no fim da quadrilha, entrou na
sala Amélia Valadares, sem o marido.
Já sabemos que Amélia era bonita; sabia
vestir-se, exagerando um pouco as modas, é verdade; naquela noite, vinha bem;
não havia exageração e havia, portanto, elegância.
Poucas pessoas, duas outras, sabiam até então
da resolução tomada entre ela e o marido para se separarem. Por isso, foi-lhe
fácil responder aos que lhe perguntavam por Valadares:
— Foi a um jantar político. Virá logo.
Desculpem a leviandade da rapariga; ela não
dava mais de si.
Quando Amélia entrou, viu Augusta pelo braço
de Luís, conversando amigavelmente com ele; pela noite adiante reparou nessa
intimidade maior que a que até então existia.
— Será amor? perguntou ela consigo.
Na primeira ocasião que teve para conversar
mais largamente com Augusta, aproveitou-a. Foram para uma pequena sala de
descanso, e aí, enquanto se dançava uma valsa, sentaram-se as duas num sofá.
— Dou-lhe os meus parabéns, disse Amélia.
— Por quê?
— Está de namoro e casamento pronto.
— Nem namoro, nem casamento, respondeu
Augusta.
— Mas há esperanças de união?
— Isso sim.
— Logo...
— Quer que lhe diga uma coisa? É natural que
eu acabe casando com o Luís, mas não é por amor dele...
Amélia, neste ponto, pensou em Valadares.
— Caso-me por duas razões: a primeira é para
acabar com os pretendentes à minha mão, continuou Augusta.
— E os pretendentes ao coração?
— Oh! esses!
— A segunda razão qual é?
— A segunda razão, continuou Augusta, é que o
melhor meio de esquecer...
A moça hesitou.
— Acaba! disse Amélia.
— Escute, minha amiga; é um segredo que só
aqui ficará. Sabe a quem é que eu amava e amo deveras?
— Ao Daniel?
— Sim.
— Eu desconfiava.
— Só aquele orgulho misturado de indiferença
podia domar a minha indiferença e o meu orgulho.
— Mas então?...
— Então, é que tendo recusado sempre o que
ele pediu, que era a minha mão e meu coração, cheguei um dia a oferecer-lhos.
— E ele?
— Recusou.
— Pelintra!
— Não; era justo; a culpada fui eu. Mas agora
é preciso carregar a minha cruz. Quero ir para o Norte já e ver se esqueço isto...
— O Luís há de ajudá-la a esquecer o amor de
Daniel.
— Qual! disse Augusta com um gesto de tanta
indiferença que seria capaz de gelar o Vesúvio em horas de explosão.
— Acabou-se a valsa, vamos passear, disse
Amélia.
E saíram da sala.
Apenas transpuseram a soleira, saiu de um
gabinete contíguo um homem que ali se achava, algum tempo antes de lá entrarem
as duas raparigas.
Era Luís.
O gabinete era o lugar em que trabalhava ou
lia o tio de Augusta. Precisando escrever um bilhete, Madalena o levou ali,
onde se achava quando as duas moças chegaram.
Quando entrou na salinha, estava lívido.
Tinha ouvido a verdade mais cruel de todas;
uma mulher que fingia gostar dele, sendo indiferente; que se casaria com ele
para escapar aos pretendentes, e que, casando-se, levava no coração a lembrança
e o amor de outro.
Luís ficou atordoado com o que ouvira; a sua
primeira ideia foi aparecer no meio das duas moças, quando elas confidenciavam;
mas reconheceu que isso apenas o exporia ao ridículo.
Quando percebeu que elas tinham saído, fugiu
do gabinete onde abafava. As duas moças, como disse, tinham já saído; Luís
ainda viu de longe a formosa cabeça de Augusta dominando as outras como a de
uma rainha.
Deu alguns passos cambaleando; depois
atravessou a sala grande, e, sem que ninguém o percebesse, foi-se embora.
Durante a primeira meia hora não se reparou
na ausência dele. Mas, afinal, descobriu-se que Luís tinha saído.
— Sem dizer-mo! pensou Augusta. É singular!
No dia seguinte, Luís amanheceu doente; uma
febre grave se declarou que o prostrou de cama oito dias. Mas era robusto e o
organismo resistiu triunfante ao mal.
Quando se levantou, escreveu o seguinte
bilhete a Augusta:
“Minha senhora
Ouvi tudo por simples acaso; é-me impossível
satisfazer-lhe o desejo de casar por esquecer. Adeus.
Luís”.
A carta não produziu grande comoção em
Augusta; mas esta sentiu-se. Pela primeira vez, achou-se humilhada; arguia-lhe
a consciência.
CAPÍTULO
23
Repelindo os que a amavam, leviana em suas
ações, dotada de um caráter orgulhoso e altivo, Augusta teve o castigo dos
próprios erros.
A carta de Luís inspirou-lhe a ideia de não
casar mais.
E cumpriu a resolução.
Ninguém deve imitar Augusta; é um desses
tipos raros, extravagantes, que nunca podem ser a esposa amante, nem a mãe
carinhosa; em suma, é a mulher sem nenhum traço augusto.
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