Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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No grande dia Primeiro de Maio, não eram bem seis horas e já o 35
pulara da cama, afobado. Estava muito bem-disposto, até alegre, ele bem
afirmara aos companheiros da Estação da Luz que queria celebrar e havia de
celebrar. Os outros carregadores mais idosos meio que tinham caçoado do bobo,
viesse trabalhar que era melhor, trabalho deles não tinha feriado. Mas o 35
retrucara com altivez que não, não carregava mala de ninguém, havia de celebrar
o dia deles. E agora tinha o grande dia pela frente.
Dia dele... Primeiro quis tomar um banho pra ficar bem digno de
existir. A água estava gelada, ridente, celebrando, e abrira um sol enorme e
frio lá fora. Depois fez a barba. Barba era aquela penuginha meia loura, mas
foi assim mesmo buscar a navalha dos sábados, herdada do pai, e se barbeou. Foi
se barbeando. Nu só da cintura pra cima por causa da mamãe por ali, de vez em
quando a distância mais aberta do espelhinho refletia os músculos violentos
dele, desenvolvidos desarmoniosamente nos braços, na peitaria, no cangote, pelo
esforço cotidiano de carregar peso. O 35 tinha um ar glorioso e estúpido. Porém
ele se agradava daqueles músculos intempestivos, fazendo a barba.
Ia devagar porque estava matutando. Era a esperança dum turumbamba
macota, em que ele desse uns socos formidáveis nas fuças dos polícias. Não
teria raiva especial dos polícias, era apenas a ressonância vaga daquele dia.
Com seus vinte anos fáceis, o 35 sabia, mais da leitura dos jornais que de
experiência, que o proletariado era uma classe oprimida. E os jornais tinham
anunciado que se esperava grandes “motins” do Primeiro de Maio, em Paris, em
Cuba, no Chile, em Madri.
O 35 apressou a navalha de puro amor. Era em Madri, no Chile que
ele não tinha bem lembrança se ficava na América mesmo, era a gente dele... Uma
piedade, um beijo lhe saía do corpo todo, feito proteção sadia de macho, ia parar
em terras não sabidas, mas era a gente dele, defender, combater, vencer...
Comunismo?... Sim, talvez fosse isso. Mas o 35 não sabia bem direito, ficava
atordoado com as notícias, os jornais falavam tanta coisa, faziam tamanha
misturada de Rússia, só sublime ou só horrenda, e o 35 infantil estava por
demais machucado pela experiência pra não desconfiar, o 35 desconfiava.
Preferia o turumbamba porque não tinha medo de ninguém, nem do Carnera, ah, um
soco bem nas fuças dum polícia... A navalha apressou o passo outra vez. Mas de
repente o 35 não imaginou mais em nada por causa daquele bigodinho de cinema
que era a melhor preciosidade de todo o seu ser. Lembrou aquela moça do
apartamento, é verdade, nunca mais tinha passado lá pra ver se ela queria outra
vez, safada! Riu.
Afinal o 35 saiu, estava lindo. Com a roupa preta de luxo, um nó
errado na gravata verde com listinhas brancas e aqueles admiráveis sapatos de
pelica amarela que não pudera sem comprar. O verde da gravata, o amarelo dos
sapatos, bandeira brasileira, tempos de grupo escolar... E o 35 se comoveu num
hausto forte, querendo bem o seu imenso Brasil, imenso colosso gigante, foi
andando depressa, assobiando. Mas parou de supetão e se orientou assustado. O
caminho não era aquele, aquele era o caminho do trabalho.
Uma indecisão indiscreta o tornou consciente de novo que era o
Primeiro de Maio, ele estava celebrando e não tinha o que fazer. Bom, primeiro
decidiu ir na cidade pra assuntar alguma coisa. Mas podia seguir por aquela
direção mesmo, era uma volta, mas assim passava na Estação da Luz dar um
bom-dia festivo aos companheiros trabalhadores. Chegou lá, gesticulou o bom-dia
festivo, mas não gostou porque os outros riram dele, bestas. Só que em seguida
não encontrou nada na cidade, tudo fechado por causa do grande dia Primeiro de
Maio. Pouca gente na rua. Deviam de estar almoçando já, pra chegar cedo no
maravilhoso jogo de futebol escolhido pra celebrar o grande dia. Tinha mas era
muito polícia, polícia em qualquer esquina, em qualquer porta cerrada de bar e
de café, nas joalherias, quem pensava em roubar! nos bancos, nas casas de
loteria. O 35 teve raiva dos polícias outra vez.
E como não encontrasse mesmo um conhecido, comprou o jornal pra
saber. Lembrou de entrar num café, tomar por certo uma média, lendo. Mas a
maioria dos cafés estavam de porta cerrada e o 35 mesmo achou que era
preferível economizar dinheiro por enquanto, porque ninguém não sabia o que
estava pra suceder. O mais prático era um banco de jardim, com aquele sol
maravilhoso. Nuvens? umas nuvenzinhas brancas, ondulando no ar feliz.
Insensivelmente o 35 foi se encaminhando de novo para os lados do Jardim da
Luz. Eram os lados que ele conhecia, os lados em que trabalhava e se entendia
mais. De repente lembrou que ali mesmo na cidade tinha banco mais perto, nos
jardins do Anhangabaú. Mas o Jardim da Luz ele entendia mais. Imaginou que a
preferência vinha do Jardim da Luz ser mais bonito, estava celebrando. E
continuou no passo em férias.
Ao atravessar a estação achou de novo a companheirada trabalhando.
Aquilo deu um mal-estar fundo nele, espécie não sabia bem, de arrependimento,
talvez irritação dos companheiros, não sabia. Nem quereria nunca decidir o que
estava sentindo já... Mas disfarçou bem, passando sem parar, se dando por
afobado, virando pra trás com o braço ameaçador, “Vocês vão ver!”... Mas um
riso aqui, outro riso acolá, uma frase longe, os carregadores companheiros, era
tão amigo deles, estavam caçoando. O 35 se sentiu bobo, era impossível recusar,
envilecido. Odiou os camaradas.
Andou mais depressa, entrou no jardim em frente, o primeiro banco
era a salvação, sentou. Mas dali algum companheiro podia divisar ele e caçoar
mais, teve raiva. Foi lá no fundo do jardim campear banco escondido. Já
passavam negras disponíveis por ali. E o 35 teve uma ideia muito não pensada,
recusada, de que ele também estava uma espécie de negra disponível, assim. Mas
não estava não, estava celebrando, não podia nunca acreditar que estivesse
disponível e não acreditou. Abriu o jornal. Havia logo um artigo muito bonito,
bem pequeno, falando na nobreza do trabalho, nos operários que eram também os
“operários da nação”, é isso mesmo! O 35 se orgulhou todo comovido. Se pedissem
pra ele matar, ele matava, roubava, trabalhava grátis, tomado dum sublime desejo
de fraternidade, todos os seres juntos, todos bons... Depois vinham as
notícias. Se esperava “grandes motins” em Paris, deu uma raiva tal no 35. E ele
ficou todo fremente, quase sem respirar, desejando “motins” (devia ser
turumbamba) na sua desmesurada força física, ah, as fuças de algum... polícia?
polícia. Pelo menos os safados dos polícias.
Pois estava escrito em cima do jornal: em São Paulo a Polícia
proibira comícios na rua e passeatas, embora se falasse vagamente em motins
de-tarde no Largo da Sé. Mas a polícia já tomara todas as providências, até
metralhadoras, estava em cima do jornal, nos arranha-céus, escondidas, o 35
sentiu um frio. O sol brilhante queimava, banco na sombra? Mas não tinha, que a
Prefeitura, pra evitar safadez dos namorados, punha os bancos só bem no sol. E
ainda por cima era aquela imensidade de guardas e polícias vigiando que nem bem
a gente punha a mão no pescocinho dela, trilo. Mas a Polícia permitira a grande
reunião proletária, com discurso do ilustre Secretário do Trabalho, no
magnífico pátio interno do Palácio das Indústrias, lugar fechado! A sensação
foi claramente péssima. Não era medo, mas por que que a gente havia de ficar
encurralado assim! É! é pra eles depois poderem cair em cima da gente,
(palavrão)! Não vou! não sou besta! Quer dizer: vou sim! desaforo! (palavrão),
socos, uma visão tumultuária, rolando no chão, se machucava mas não fazia mal,
saíam todos enfurecidos do Palácio das Indústrias, pegavam fogo no Palácio das
Indústrias, não! a indústria é a gente, “operários da nação”, pegavam fogo na
igreja de São Bento mais próxima que era tão linda por “drento”, mas pra que
pegar fogo em nada! (O 35 chegara até a primeira comunhão em menino...), é
melhor a gente não pegar fogo em nada; vamos no Palácio do Governo, exigimos
tudo do Governo, vamos com o general da Região Militar, deve ser gaúcho, gaúcho
só dá é farda, pegamos fogo no palácio dele. Pronto. Isso o 35 consentiu, não
porque o tingisse o menor separatismo (e o aprendido no grupo escolar?) mas
nutria sempre uma espécie de despeito por São Paulo ter perdido na revolução de
32. Sensação aliás quase de esporte, questão de Palestra-Coríntians, cabeça
inchada, porque não vê que ele havia de se matar por causa de uma besta de
revolução diz-que democrática, vão “eles”!... Se fosse o Primeiro de Maio, pelo
menos... O 35 mal percebeu que se regava todo por “drento” dum espírito
generoso de sacrifício. Estava outra vez enormemente piedoso, morreria
sorrindo, morrer... Teve uma nítida, envergonhada sensação de pena. Morrer
assim tão lindo, tão moço. A moça do apartamento...
Salvou-se lendo com pressa, oh! os deputados trabalhistas chegavam
agora às nove horas, e o jornal convidava o povo pra ir na Estação do Norte (a
estação rival, desapontou) pra receber os grandes homens. Se levantou mandado,
procurou o relógio da torre da Estação da Luz, ora! não dava mais tempo! quem
sabe se dá!
Foi correndo, estava celebrando, raspou distraído o sapato lindo
na beirada de tijolo do canteiro, (palavrão), parou botando um pouco de guspe
no raspão, depois engraxo, tomou o bonde pra cidade, mas dando uma voltinha pra
não passar pelos companheiros da Estação. Que alvoroço por dentro, ainda havia
de aplaudir os homens. Tomou o outro bonde pro Brás. Não dava mais tempo, ele
percebia, eram quase nove horas quando chegou na cidade, ao passar pelo Palácio
das Indústrias, o relógio da torre indicava nove e dez, mas o trem da Central
sempre atrasa, quem sabe? bom: às quatorze horas venho aqui, não perco, mas
devo ir, são nossos deputados no tal de congresso, devo ir. Os jornais não
falavam nada dos trabalhistas, só falavam dum que insultava muito a religião e
exigia divórcio, o divórcio o 35 achava necessário (a moça do apartamento...),
mas os jornais contavam que toda a gente achava graça no homenzinho, “Vós,
burgueses”, e toda a gente, os jornais contavam, acabaram se rindo do tal de
deputado. E o 35 acabou não achando mais graça nele. Teve até raiva do tal, um
soco é que merecia. E agora estava quase torcendo pra não chegar com tempo na estação.
Chegou tarde. Quase nada tarde, eram apenas nove e quinze. Pois
não havia mais nada, não tinha aquela multidão que ele esperava, parecia tudo
normal. Conhecia alguns carregadores dali também e foi perguntar. Não, não
tinham reparado nada, decerto foi aquele grupinho que parou na porta da
estação, tirando fotografia. Aí outro carregador conferiu que eram os deputados
sim, porque tinham tomado aqueles dois sublimes automóveis oficiais. Nada
feito.
Ao chegar na esquina o 35 parou pra tomar o bonde, mas vários
bondes passaram. Era apenas um moço bem-vestidinho, decerto à procura de
emprego por aí, olhando a rua. Mas de repente sentiu fome e se reachou. Havia
por dentro, por “drento” dele um desabalar neblinoso de ilusões, de entusiasmo
e uns raios fortes de remorso. Estava tão desagradável, estava quase infeliz...
Mas como perceber tudo isso se ele precisava não perceber!... O 35 percebeu que
era fome.
Decidiu ir a-pé pra casa, foi a-pé, longe, fazendo um esforço
penoso para achar interesse no dia. Estava era com fome, comendo aquilo
passava. Tudo deserto, era por ser feriado, Primeiro de Maio. Os companheiros
estavam trabalhando, de vez em quando um carrego, o mais eram conversas
divertidas, mulheres de passagem, comentadas, piadas grossas com as mulatas do
jardim, mas só as bem limpas mais caras, que ele ganhava bem, todos
simpatizavam logo com ele, ora por que que hoje me deu de lembrar aquela moça
do apartamento!... Também: moça morando sozinha é no que dá. Em todo caso, pra
acabar o dia era uma ideia ir lá, com que pretexto?... Devia ter ido em Santos,
no piquenique da Mobiliadora, doze paus convite, mas o Primeiro de Maio...
Recusara, recusara repetindo o “não” de repente com raiva, muito interrogativo,
se achando esquisito daquela raiva que lhe dera. Então conseguiu imaginar que
esse piquenique monstro, aquele jogo de futebol que apaixonava eles todos,
assim não ficava ninguém pra celebrar o Primeiro de Maio, sentiu-se muito
triste, desamparado. É melhor tomo por esta rua. Isso o 35 percebeu claro, insofismável
que não era melhor, ficava bem mais longe. Ara, que tem! Agora ele não podia se
confessar mais que era pra não passar na Estação da Luz e os companheiros não
rirem dele outra vez. E deu a volta, deu com o coração cerrado de angústia
indizível, com um vento enorme de todo o ser assoprando ele pra junto dos
companheiros, ficar lá na conversa, quem sabe? trabalhar... E quando a mãe lhe
pôs aquela esplêndida macarronada celebrante sobre a mesa, o 35 foi pra se
queixar “Estou sem fome, mãe”. Mas a voz lhe morreu na garganta.
Não eram bem treze horas e já o 35 desembocava no parque Pedro II
outra vez, à vista do Palácio das Indústrias. Estava inquieto mas modorrento,
que diabo de sol pesado que acaba com a gente, era por causa do sol. Não podia
mais se recusar o estado de infelicidade, a solidão enorme, sentida com vigor.
Por sinal que o parque já se mexia bem agitado. Dezenas de operários, se via,
eram operários endomingados, vagueavam por ali, indecisos, ar de quem não quer.
Então nas proximidades do palácio, os grupos se apinhavam, conversando baixo,
com melancolia de conspiração. Polícias por todo lado.
O 35 topou com o 486, grilo quase amigo, que policiava na Estação
da Luz. O 486 achara jeito de não trabalhar aquele dia porque se pensava
anarquista, mas no fundo era covarde. Conversaram um pouco de entusiasmo
semostradeiro, um pouco de Primeiro de Maio, um pouco de “motins”. O 486 era
muito valentão de boca, o 35 pensou. Pararam bem na frente do Palácio das
Indústrias que fagulhava de gente nas sacadas, se via que não eram operários,
decerto os deputados trabalhistas, havia até moças, se via que eram distintas,
todos olhando para o lado do parque onde eles estavam.
Foi uma nova sensação tão desagradável que ele deu de andar quase
fugindo, polícias, centenas de polícias, moderou o passo como quem passeia. Nas
ruas que davam pro parque tinha cavalarias aos grupos, cinco, seis, escondidos
na esquina, querendo a discrição não ostentar força e ostentando. Os grilos
ainda não faziam mal, são uns (palavrão)! O palácio dava ideia duma fortaleza
enfeitada, entrar lá dentro, eu!... O 486 então, exaltadíssimo, descrevia
coisas piores, massacres horrendos de “proletários” lá dentro, descrevia tudo
com a visibilidade dos medrosos, o pátio fechado, dez mil proletários no pátio
e os polícias lá em cima nas janelas, fazendo pontaria na maciota.
Mas foi só quando aqueles três homens bem-vestidos, se via que não
eram operários, se dirigindo aos grupos vagueantes, falaram pra eles em voz
alta: “Podem entrar! não tenham vergonha! podem entrar!” com voz de mandando
assim na gente... O 35 sentiu um medo franco. Entrar ele! Fez como os outros
operários: era impossível assim soltos, desobedecer aos três homens
bem-vestidos, com voz mandando, se via que não eram operários. Foram todos
obedecendo, se aproximando das escadarias, mas o maior número, longe da vista
dos três homens, torcia caminho, iam se espalhar pelas outras alamedas do
parque, mais longe.
Esses movimentos coletivos de recusa acordaram a covardia do 35.
Não era medo, que ele se sentia fortíssimo, era pânico. Era um puxar unânime,
uma fraternidade, era carícia dolorosa por todos aqueles companheiros fortes
tão fracos que estavam ali também pra... pra celebrar? pra... O 35 não sabia
mais pra quê. Mas o palácio era grandioso por demais com as torres e as
esculturas, mas aquela porção de gente bem-vestida nas sacadas enxergando eles
(teve a intuição violenta de que estava ridiculamente vestido), mas o
enclausuramento na casa fechada, sem espaço de liberdade, sem ruas abertas pra
avançar, pra correr dos cavalarias, pra brigar... E os polícias na maciota,
encarapitados nas janelas, dormindo na pontaria, teve ódio do 486, idiota
medroso! De repente o 35 pensou que ele era moço, precisava se sacrificar: se
fizesse um modo bem visível de entrar sem medo no palácio, todos haviam de
seguir o exemplo dele. Pensou, não fez. Estava tão opresso, se desfibrara tão
rebaixado naquela mascarada de socialismo, naquela desorganização trágica, o 35
ficou desolado duma vez. Tinha piedade, tinha amor, tinha fraternidade, e era
só. Era uma sarça ardente, mas era sentimento só. Um sentimento profundíssimo,
queimando, maravilhoso, mas desamparado, mas desamparado. Nisto vieram uns
cavalarias, falando garantidos:
– Aqui ninguém não fica não! a festa é lá dentro, me’rmão! no
parque ninguém não para não!
Cabeças-chatas... E os grupos deram de andar outra vez, de cá para
lá, riscando no parque vasto, com vontade, com medo, falando baixinho,
mastigando incerteza. Deu um ódio tal no 35, um desespero tamanho, passava um
bonde, correu, tomou o bonde sem se despedir do 486, com ódio do 486, com ódio
do Primeiro de Maio, quase com ódio de viver.
O bonde subia para o centro mais uma vez. Os relógios marcavam
quatorze horas, decerto a celebração estava principiando, quis voltar, dava
muito tempo, três minutos pra descer a ladeira, teve fome. Não é que tivesse
fome, porém o 35 carecia de arranjar uma ocupação senão arrebentava. E ficou
parado assim, mais de uma hora, mais de duas horas, no Largo da Sé, diz-que
olhando a multidão.
Acabara por completo a angústia. Não pensava, não sentia mais
nada. Uma vagueza cruciante, nem bem sentida, nem bem vivida, inexistência
fraudulenta, cínica, enquanto o Primeiro de Maio passava. A mulher de encarnado
foi apenas o que lhe trouxe de novo à lembrança a moça do apartamento, mas
nunca que ele fosse até lá, não havia pretexto, na certa que ela não estava
sozinha. Nada. Havia uma paz, que paz sem cor por dentro...
Pelas dezessete horas era fome, agora sim, era fome. Reconheceu
que não almoçara quase nada, era fome, e principiou enxergando o mundo outra
vez. A multidão já se esvaziava, desapontada, porque não houvera nem uma
briguinha, nem uma correria no Largo da Sé, como se esperava. Tinha claros bem
largos, onde os grupos dos polícias resplandeciam mais. As outras ruas do
centro, essas então quase totalmente desertas. Os cafés, já sabe, tinham
fechado, com o pretexto magnânimo de dar feriado aos seus “proletários” também.
E o 35 inerme, passivo, tão criança, tão já experiente da vida,
não cultivou vaidade mais: foi se dirigindo num passo arrastado para a Estação
da Luz, pra os companheiros dele, esse era o domínio dele. Lá no bairro os
cafés continuavam abertos, entrou num, tomou duas médias, comeu bastante pão
com manteiga, exigiu mais manteiga, tinha um fraco por manteiga, não se amolava
de pagar o excedente, gastou dinheiro, queria gastar dinheiro, queria perceber
que estava gastando dinheiro, comprou uma maçã bem rubra, oitocentão! foi
comendo com prazer até os companheiros. Eles se ajuntaram, agora sérios,
curiosos, meio inquietos, perguntando pra ele. Teve um instinto voluptuoso de
mentir, contar como fora a celebração, se enfeitar, mas fez um gesto só,
(palavrão) cuspindo um muxoxo de desdém pra tudo.
Chegava um trem e os carregadores se dispersaram, agora rivais,
colhendo carregos em porfia. O 35 encostou na parede, indiferente, catando com
dentadinhas cuidadosas os restos da maçã, junto aos caroços. Sentia-se cômodo,
tudo era conhecido velho, os choferes, os viajantes. Surgiu um farrancho que
chamou o 22. Foram subir no automóvel mas afinal, depois de muita gritaria,
acabaram reconhecendo que tudo não cabia no carro. Era a mãe, eram as duas
velhas, cinco meninos repartidos pelos colos e o marido. Tudo falando: “Assim
não serve não! As malas não vão não!” aí o chofer garantiu enérgico que as
malas não levava, mas as maletas elas “não largaram não”, só as malas grandes
que eram quatro. Deixaram elas com o 22, gritaram a direção e partiram na
gritaria. Mais cabeça-chata, o 35 imaginou com muita aceitação.
O 22 era velhote. Ficou na beira da calçada com aquelas quatro
malas pesadíssimas, preparou a correia, mas coçou a cabeça.
– Deixa que te ajudo, chegou o 35.
e foi logo escolhendo as duas malas maiores, que ergueu numa só
mão, num esforço satisfeito de músculos. O 22 olhou pra ele, feroz, imaginando
que o 35 propunha rachar o ganho. Mas o 35 deu um soco só de pândega no
velhote, que estremeceu socado e cambaleou três passos. Caíram na risada os
dois. Foram andando.
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