Poverina
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Era naquele tempo o Salazar uma das figuras mais salientes do
nosso diletantismo literário. Os seus artigos de crítica, os seus versos, os
seus contos, as suas fantasias estavam ao alcance de todas as inteligências, e
eram lidos, senão com avidez, ao menos com simpatia.
Ele tornara-se conhecido, quase célebre, e não atravessava a Rua
do Ouvidor sem ouvir estas e outras frases que o enchiam de orgulho: — Lá vai o
Salazar! — Olha o Salazar! — O Salazar é aquele!
Pouco a pouco essas manifestações da admiração indígena o foram
empanturrando de desvanecimento e vanglória, e não tardou muito que ele se
julgasse, coitado! superior a quantos o cercavam, fazendo sentir a sua
superioridade com uma importância ridícula.
O toleirão era casado, e a primeira vítima da transformação do seu
caráter foi a própria esposa, excelente rapariga, bem educada, inteligente,
muito inteligente, mas tímida, daquela timidez peculiar às moças brasileiras
que não perderam noites em festas e bailes.
Estavam casados havia três anos, mas o literato nunca estudara nem
compreendera sua mulher. Volvido o período da intitulada lua-de-mel, todo de
brutalidade e egoísmo, e começando a aura do publicista, ele afastou-se da
esposa tanto quanto uma pessoa pode afastar-se de outra com quem almoça e janta
quase todos os dias, e com quem vive debaixo das mesmas telhas.
Não tinham filhos; faltava-lhes esse traço de união, que talvez os
tivesse aproximado.
Entretanto, ela não se queixou nunca da indiferença do marido;
sendo, aliás, bonita, muito bonita, mostrou uma resignação que ele seria o
primeiro a admirar, se todo o tempo não lhe fosse preciso para admirar-se a si
próprio.
Aquela frieza, aquela sobranceria, aqueles ares de semideus ainda
mais se acentuaram quando o Salazar, um dia, recebeu, pelo correio, longa carta
em que uma desconhecida, sob o pseudônimo de Poverina, manifestava pela sua interessante pessoa uma simpatia e
uma admiração excepcionais.
O que mais o impressionou nessa missiva anônima foi o primor da
forma. A desconhecida revelava cultura intelectual superior à dele, e
dizendo-se, aliás, sua discípula, mostrava notáveis qualidades de estilista,
que o outro não possuía.
A princípio supôs Salazar que a correspondência fosse de algum
marmanjo, desejoso de se divertir à custa dele; mas outras e sucessivas cartas
o convenceram do contrário. Quem quer que fosse tinha delicadezas femininas de
que nenhum homem seria capaz.
Colocando-se, sempre com encantadora modéstia, num plano
subalterno, a escritora aconselhava-o com muita discrição e habilidade, a
corrigir-se de uns tantos defeitos; apontava-lhe contradições, incongruências,
descuidos gramaticais, ligeiros solecismos indignos da pena de um escritor
reputado; mas atribuía tudo à precipitação com que ele escrevia, e nem por
sombras aludia à sua ignorância, muitas vezes apanhada em flagrante. Um homem
não seria tão generoso.
Demais, essas observações e conselhos eram acompanhados de
confissões gravíssimas. Ela declarava que o seu maior prazer seria, se pudesse,
estar perto dele no seu gabinete de trabalho, auxiliando-o, passando a limpo os
seus escritos, procurando um termo no dicionário, caçando um sinônimo,
verificando um trecho em qualquer obra citada, corrigindo aqui um descuido,
preenchendo ali um claro, mudando as penas, enchendo o tinteiro, cortando o
papel em tiras, etc. Enfim, dizia ela, quisera ser a tua secretária, uma
secretária a quem, terminado o trabalho, remunerasses, não com dinheiro, mas
com beijos e carícias.
Mas para isso, continuava a desconhecida, seria preciso que um e
outro fôssemos livres, e somos ambos casados; nem meu marido nem tua mulher
merecem que os enganemos.
O Salazar respondia a todas essas cartas, e, escusado é dizer,
empregava súplicas, argumentos, razões, para que a Poverina se desvendasse.
Ela resistia energicamente. Não procures saber quem sou; nunca o
saberás. O encanto das nossas relações é esta abstração, este delicioso
platonismo. Imagina que somos Heloísa e Abelardo, e que estamos separados por
uma fatalidade psicológica...
***
Durante um ano a correspondência continuou assídua de parte a
parte. O Salazar recebia pelo correio as cartas de Poverina, e respondia-as pela posta-restante.
Pediu-lhe um dia que não lhe dissesse o seu nome, mas lhe mandasse
ao menos o seu retrato. "Não, respondeu ela; mandar-te o meu retrato seria
o mesmo que te dizer quem sou. Não suponhas que deixo de satisfazer o teu
pedido pelo receio de me achares velha ou feia. Sou muito mais nova que tu, e
de feia nada tenho. Digo-te mais: pelo interesse, pela insistência com que
olhaste para mim certa vez em que nos encontramos na rua, creio que me achaste
bonita... Não calculas como nessa ocasião tive ímpetos de me atirar nos teus
braços, dizendo: — Poverina sou eu..."
O Salazar estava, por fim, radicalmente apaixonado, e, a proporção
que esse amor desesperançado e extravagante o ia absorvendo e exacerbando, ele
mais indiferente se mostrava para com a infeliz esposa, cada vez mais
resignada, mais conformada com a sua triste sorte de mulher posta a um canto.
***
Mais seis meses de correspondência, e o caso tomou uma gravidade
terrível. O Salazar estava obcecado por aquela mulher, por aquele fantasma, por
aquele mistério! Já não produzia nada, limitando-se apenas à sua tarefa
epistolar, que lhe monopolizava o espírito, como se fosse uma obra de fôlego,
um trabalho de grande transcendência filosófica.
Um dia escreveu a Poverina, dizendo
que não lhe era possível continuar a viver naquele desespero. Se ela não lhe
proporcionasse ocasião de vê-la, de estar ao seu lado, gozando o benefício
divino da sua presença, ele procuraria no cano de um revólver a tranquilidade
que lhe fugira.
Depois de três ameaças idênticas, formuladas em termos decisivos, Poverina cedeu, marcando a Salazar uma
entrevista a noite, no Largo do Machado, naquele tempo mais sombrio e menos
frequentado que hoje.
Calcule-se a impaciência com que o literato contou as horas!
***
Cinco minutos antes do momento aprazado, ele entrou no jardim, e
viu, de longe, uma mulher de preto, com o rosto coberto por um véu, sentada no
banco indicado na carta de Poverina.
O coração do mísero saltava, as suas mãos estavam geladas, todo
ele tremia...
Foi nesse estado que o Salazar se aproximou daquele vulto de
mulher.
Ela convidou-o com um gesto a sentar-se.
Ele sentou-se.
— Aqui me tem! disse Poverina,
erguendo o véu.
O publicista ficou estupefato: era a sua própria esposa!
— Tu?... que é isto... Eu... Tu... Eras tu quê? ...
— Sim, era eu que...
— Não é possível!
— Tenho em casa todas as minutas das cartas de Poverina. Podes encontrar.
***
Dali por diante aquele desalmado, que nem sequer conhecia a letra
de sua mulher, foi o modelo dos maridos, e ela o modelo das secretárias.
Diziam até as más línguas que o secretário era ele. Não sei: já
morreram ambos e a coisa ficou em família.
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