Por que não se matava
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Esse meu amigo era o homem mais
enigmático que conheci.
Era a um tempo taciturno e
expansivo, egoísta e generoso, bravo e covarde, trabalhador e vadio. Havia no
seu temperamento uma desesperadora mistura de qualidades opostas e, na sua
inteligência, um encontro curioso de lucidez e confusão, de agudeza e
embotamento.
Nós nos dávamos desde muito
tempo. Aí pelos doze anos, quando comecei a estudar os preparatórios,
encontrei-o no colégio e fizemos relações. Gostei da sua fisionomia, da
estranheza do seu caráter e mesmo ao descansarmos no recreio, após as aulas, a
minha meninice contemplava maravilhada aquele seu longo olhar cismático, que se
ia tão demoradamente pelas coisas e pelas pessoas.
Continuamos sempre juntos até à
escola superior, onde andei conversando; e, aos poucos, fui verificando que as
suas qualidades se acentuavam e os seus defeitos também.
Ele entendia maravilhosamente a
mecânica, mas não havia jeito de estudar essas coisas de câmbio, de jogo de
bolsa. Era assim: para umas coisas, muita penetração; para outras,
incompreensão.
Formou-se, mas nunca fez uso da
carta. Tinha um pequeno rendimento e sempre viveu dele, afastado dessa
humilhante coisa que é a caça ao emprego.
Era sentimental, era emotivo; mas
nunca lhe conheci amor. Isto eu consegui decifrar, e era fácil. A sua
delicadeza e a sua timidez faziam a compartilha com outro, as coisas secretas
de sua pessoa, dos seus sonhos, tudo o que havia de secreto e profundo na sua
alma.
Há dias encontrei-o no chope,
diante de uma alta pilha de rodelas de papelão, marcando com solenidade o
número de copos bebidos.
Foi ali, no Adolfo, à rua da
Assembleia,194 onde aos poucos temos conseguido reunir uma roda de poetas,
literatos, jornalistas, médicos, advogados, a viver na máxima harmonia,
trocando ideias, conversando e bebendo sempre.
É uma casa por demais simpática,
talvez a mais antiga no gênero, e que já conheceu duas gerações de poetas. Por
ela, passaram o Gonzaga Duque, o saudoso Gonzaga Duque, o B. Lopes, o Mário
Pederneiras, o Lima Campos, o Malagutti195 e outros pintores que completavam
essa brilhante sociedade de homens inteligentes.
Escura e oculta à vista da rua, é
um ninho e também uma academia. Mais do que uma academia. São duas ou três.
Somos tantos e de feições mentais tão diferentes, que bem formamos uma modesta
miniatura do Silogeu.
Não se fazem discursos à entrada:
bebe-se e joga-se bagatela, lá ao fundo, cercado de uma plateia ansiosa por ver
o Amorim Júnior fazer sucessivos dezoitos.
Fui encontrá-lo lá, mas o meu
amigo se havia afastado do ruidoso cenáculo do fundo; e ficara só a uma mesa isolada.
Pareceu-me triste e a nossa
conversa não foi logo abundantemente sustentada. Estivemos alguns minutos
calados, sorvendo aos goles a cerveja consoladora.
O gasto de copos aumentou e ele
então falou com mais abundância e calor. Em princípio, tratamos de coisas
gerais de arte e letras. Ele não é literato, mas gosta das letras, e as
acompanha com carinho e atenção. Ao fim de digressões a tal respeito, ele me
disse de repente:
— Sabes por que não me mato?
Não me espantei, porque tenho por
hábito não me espantar com as coisas que se passam no chope. Disse-lhe muito
naturalmente:
— Não.
— És contra o suicídio?
— Nem contra, nem a favor;
aceito-o.
— Bem. Compreendes perfeitamente
que não tenho mais motivo para viver. Estou sem destino, a minha vida não tem
fim determinado. Não quero ser senador, não quero ser deputado, não quero ser
nada. Não tenho ambições de riqueza, não tenho paixões nem desejos. A minha
vida me aparece de uma inutilidade de trapo. Já descri de tudo, da arte, da
religião e da ciência.
O Manoel serviu-nos mais dois
chopes, com aquela delicadeza tão dele, e o meu amigo continuou:
— Tudo o que há na vida, o que
lhe dá encanto, já não me atrai, e expulsei do meu coração. Não quero amantes,
é coisa que sai sempre uma caceteação; não quero mulher, esposa, porque não
quero ter filhos, continuar assim a longa cadeia de desgraças que herdei e está
em mim em estado virtual para passar aos outros. Não quero viajar; enfada. Que
hei de fazer?
Eu quis dar-lhe um conselho
final, mas abstive-me, e respondi, em contestação:
— Matar-te.
— É isso que eu penso; mas...
A luz elétrica enfraqueceu um
pouco e cri que uma nuvem lhe passava no olhar doce e tranquilo.
— Não tens coragem? — perguntei
eu.
— Um pouco; mas não é isso o que
me afasta do fim natural da minha vida.
— Que é, então?
— É a falta de dinheiro!
— Como? Um revólver é barato.
— Eu me explico. Admito a piedade
em mim, para os outros; mas não admito a piedade dos outros para mim.
Compreendes bem que não vivo bem; o dinheiro que tenho é curto, mas dá para as
minhas despesas, de forma que estou sempre com cobres curtos. Se eu ingerir aí
qualquer droga, as autoridades vão dar com o meu cadáver miseravelmente privado
de notas do Tesouro. Que comentários farão? Como vão explicar o meu suicídio?
Por falta de dinheiro. Ora, o único ato lógico e alto da minha vida, ato de
suprema justiça e profunda sinceridade, vai ser interpretado, através da
piedade profissional dos jornais, como reles questão de dinheiro. Eu não quero
isso...
Do fundo da sala, vinha a alegria
dos jogadores de bagatela; mas aquele casquinar não diminuía em nada a
exposição das palavras sinistras do meu amigo.
— Eu não quero isso — continuou
ele. Quero que se dê ao ato o seu justo valor e que nenhuma consideração
subalterna lhe diminua a elevação.
— Mas escreve.
— Não sei escrever. A aversão que
há na minha alma excede às forças do meu estilo. Eu não saberei dizer tudo o que
de desespero vai nela; e, se tentar expor, ficarei na banalidade e as nuanças
fugidias dos meus sentimentos não serão registradas. Eu queria mostrar a todos
que fui traído; que me prometeram muito e nada me deram; que tudo isso é vão e
sem sentido, estando no fundo dessas coisas pomposas, arte, ciência, religião,
a impotência de todos nós diante de augusto mistério do mundo. Nada disso nos
dá o sentido do nosso destino; nada disto nos dá uma regra exata de conduta,
não nos leva à felicidade, nem tira as coisas hediondas da sociedade. Era
isso...
— Mas vem cá: se tu morresses com
dinheiro na algibeira, nem por tal...
— Há nisso uma causa: a causa da
miséria ficaria arredada.
— Mas podia ser atribuído ao
amor.
— Qual. Não recebo cartas de
mulher, não namoro, não requesto mulher alguma; e não podiam, portanto,
atribuir ao amor o meu desespero.
— Entretanto, a causa não viria à
tona e o teu ato não seria aquilatado devidamente.
— De fato, é verdade; mas a
causa-miséria não seria evidente. Queres saber de uma coisa? Uma vez, eu me
dispus. Fiz uma transação, arranjei uns quinhentos mil-réis. Queria morrer em
beleza; mandei fazer uma casaca; comprei camisas etc. Quando contei o dinheiro,
já era pouco. De outra, fiz o mesmo. Meti-me em uma grandeza e, ao amanhecer em
casa, estava a níqueis.
— De forma que é ter dinheiro
para matar-te, zás, tens vontade de divertir-te.
— Tem me acontecido isso; mas não
julgues que estou prosando. Falo sério e franco.
Nós nos calamos um pouco, bebemos
um pouco de cerveja, e depois eu observei:
— O teu modo de matar-te não é
violento, é suave. Estás a afogar-te em cerveja e é pena que não tenhas
quinhentos contos, porque nunca te matarias.
— Não. Quando o dinheiro
acabasse, era fatal.
— Zás, para o necrotério na
miséria; e então?
— É verdade... Continuava a
viver.
Rimo-nos um pouco do
encaminhamento que a nossa palestra tomava. Pagamos a despesa, apertamos a mão
ao Adolfo, dissemos duas pilhérias ao Quincas e saímos.
Na rua, os bondes passavam com
estrépido; homens e mulheres se agitavam nas calçadas; carros e automóveis iam
e vinham...
A vida continuava sem
esmorecimentos, indiferente que houvesse tristes e alegres, felizes e
desgraçados, aproveitando a todos eles para o seu drama e a sua complexidade.
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