Ponto de Vista
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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I
A D. LUÍSA P... EM JUIZ DE FORA
A D. LUÍSA P... EM JUIZ DE FORA
Corte, 5 de outubro
Não me dirá a quem entregou você as
encomendas que lhe pedi? Na sua carta vem mal escrito o nome do portador, e até
hoje nem sombra dele, quem quer que seja. Será o Luís?
Ouvi dizer que você vinha para cá passar
algum tempo; estimaria muito que assim fosse. Havia de gostar disto agora,
apesar do calor, que tem sido forte. Hoje entretanto temos um dia excelente.
Ou então, no caso de não vir, estimaria muito
ir eu para lá; mas papai, como você sabe, ninguém há que o tire dos seus
cômodos; e mamãe anda meia adoentada. Vontade teria ele de me ser agradável,
mas eu é que não sou tão egoísta. E olhe que perco muito; porque, além de ir
ver a minha melhor amiga, iria ao mesmo tempo verificar se é verdade que ainda
não tem esperanças de um nenê. Alguém me disse que sim. Por que nega você isso?
Esta carta irá amanhã. Escreva-me logo; e dê
muitas lembranças a seu marido, minhas e de todos nós. Adeus.
RAQUEL
II
À MESMA
Corte, 15 de outubro
Gastou muitos dias, mas veio uma carta longa,
e, apesar disso, curta. Obrigada pelo trabalho; peço-lhe que o repita; aborreço
os seus bilhetinhos, escritos às carreiras, com o pensamento... em quem? Nesse
marido cruel que só cuida de eleições, segundo li outro dia. Eu escrevo
cartinhas quando não tenho tempo para mais. Mas quando me sobra tempo escrevo
cartões. Creio que disse uma tolice; desculpe-me.
Vieram as encomendas logo no dia seguinte ao
da minha última carta. E que quer você que eu lhe mande? Tenho aqui uns
figurinos recebidos ontem, mas não há portador. Se puder arranjar algum por
estes dias irá também um romance que me trouxeram esta semana. Chama-se Ruth.
Conhece?
A Mariquinhas Rocha vai casar. Que pena! tão
bonitinha, tão boa, tão criança, vai casar... com um sujeito velho! E não é só
isto: casa-se por amor. Eu duvidei de semelhante coisa; mas todos dizem que
tanto o pai como os mais parentes procuraram dissuadi-la de semelhante projeto;
ela porém insistiu de maneira que ninguém mais se lhe opôs.
A falar verdade, ele não está a cair de
maduro; é velho, mas elegante, gamenho, robusto, alegre, diz muitas pilhérias e
parece que tem bom coração. Não era eu que caía apesar de tudo isto. Que
consórcio pode haver entre uma rosa e uma carapuça?
Antes, mil vezes antes, casasse ela com o
filho do noivo; esse sim, é um rapaz digno de merecer uma moça como ela. Dizem
que é um bandoleiro dos quatro costados; mas você sabe que eu não creio em
bandoleiros. Quando uma pessoa quer, vence o coração mais versátil deste mundo.
O casamento parece que será daqui a dois
meses. Irei naturalmente às exéquias, quero dizer às bodas. Pobre Mariquinhas!
Lembra-se das nossas tardes no colégio? Ela era a mais quieta de todas, e a
mais cheia de melancolia. Parece que adivinhava este destino.
Papai aprovou muito a escolha dela; faz-lhe
muitos elogios como pessoa de juízo, e chegou a dizer que eu devia fazer o
mesmo. Que lhe parece? Eu, se tivesse de seguir algum exemplo, seguia o da
minha Luísa; essa sim, é que teve dedo para escolher... Não mostre esta carta a
seu marido; é capaz de arrebentar de vaidade.
E vocês não vêm para cá? É pena; dizem que
vamos ter companhia lírica, e mamãe está melhor. Quer dizer que vou passar
algum tempo de vida excelente. O futuro enteado da Mariquinhas, o tal que ela
devia escolher em lugar do pai, afirma que a companhia é magnífica. Seja ou
não, é mais um divertimento. E você lá na roça!...
Vou jantar; adeus. Escreva-me quando puder,
mas nada de cartas microscópicas. Ou muito ou nada.
III
À MESMA
RAQUEL
Corte, 17 de outubro
Escrevi-lhe anteontem uma carta, e acrescento
hoje um bilhetinho (sem exemplo) para
dizer que o velho noivo da Mariquinhas inspirou paixão a outra moça, que
adoeceu de desespero. É uma história complicada. Compreende isto? Se fosse o
filho vá; mas o pai!
RAQUEL
IV
À MESMA
Corte, 30 de outubro
Muito velhaca é você. Então porque lhe falei
duas ou três vezes no rapaz, imagina logo que estou apaixonada por ele? Papai
nestes casos costuma dizer que é falta da lógica. Eu digo que é falta de
amizade.
E provo.
Pois se eu tivesse algum namoro, afeição ou
coisa assim, a quem diria em primeiro lugar senão a você? Não fomos durante
tanto tempo confidentes uma da outra? Supor-me tão reservada é não me ter
amizade nenhuma, porque a falta de afeição é que traz a injustiça.
Não, Luísa, eu nada sinto por esse moço, a
quem conheço de poucos dias. Falei nele algumas vezes por comparação com o pai;
se eu estivesse disposta a casar-me, certamente que preferia o moço ao velho.
Mas é só isto e nada mais.
Nem imagine que o Dr. Alberto (é o nome dele) vale muito; é bonito e
elegante, mas tem ar pretensioso e parece-me um espírito curto. Você sabe como
eu sou exigente nesses assuntos. Se eu não achar marido como imagino, fico
solteira toda a minha vida. Antes isso, que ficar presa a um cepo, ainda que
esbelto.
Também não basta ter os predicados que eu
imagino para me seduzir logo. Anda agora aqui em casa um sujeito que nos foi
apresentado há pouco tempo; qualquer outra moça ficava presa pelas maneiras
dele; a mim não me faz a menor impressão.
E por quê?
A razão é simples; toda a graça que ele
ostenta, toda a afeição que simula, todos os cortejos que me faz, quer saber o
que é, Luísa? é que eu sou rica. Descanse; quando me aparecer aquele que o céu
me destina, você será a primeira a ter notícia. Por ora estou livre, como as
andorinhas que estão agora a passear na chácara.
E para vingar-me da calúnia, não escrevo
mais. Adeus.
V
À MESMA
RAQUEL
Corte, 15 de novembro
Estive doente estes dois dias; foi uma
constipação forte que apanhei saindo do Ginásio, onde fui ver uma peça nova,
muito falada e muito insípida.
Sabe você quem estava lá? A Mariquinhas com o
noivo no camarote, e o enteado também, o futuro enteado, se Deus quiser. Não se
pode imaginar como ela parecia contente, como ela conversava com o noivo! E
olhe que de longe, à luz do gás, o tal velho é quase tão moço como o filho.
Quem sabe? Bem pode ser que ela viva feliz!
Dou-lhe muitos parabéns pela notícia que me
dá de que brevemente veremos um nenê. A mamãe também lhe manda parabéns. O Luís
leva com esta carta uns figurinos...
RAQUEL
VI
À MESMA
Corte, 27 de novembro
A sua carta chegou quando estávamos
almoçando, e foi bom tê-la lido depois, porque se a leio antes não acabava de
almoçar. Que história é essa, e quem lhe meteu na cabeça semelhante coisa? Eu,
namorada do Alberto! Isso é caçoada de mau gosto, Luísa! Se alguém lhe mandou
dizer tal, teve certamente intenção de me envergonhar. Se você o conhecesse,
não era necessário este meu protesto. Já lhe disse as boas qualidades dele, mas
os seus defeitos são para mim superiores às qualidades. Você bem sabe como eu
sou; para mim a menor nódoa destrói a maior alvura. Uma estátua... estátua é o
termo próprio, porque o tal Alberto tem certa rigidez escultural.
Ah! Luísa, o homem que o céu me destina ainda
não veio. Sei que não veio porque ainda não senti dentro de mim aquele
estremecimento simpático que indica a harmonia de duas almas. Quando ele vier,
fique certa de que será a primeira a quem eu confiarei tudo.
Dir-me-á que, se eu sou assim fatalista, devo
admitir a possibilidade de um marido sem todas as condições que exijo.
Engano.
Deus que me fez assim, e me deu esta
percepção íntima para conhecer e amar a superioridade, Deus me há de deparar
uma criatura digna de mim.
E agora que me expliquei deixe-me ralhar-lhe
um pouco. Por que motivo dá tão facilmente ouvidos a uma calúnia contra mim?
Você que me conhece há tanto devia ser a primeira a pôr de quarentena esses
ditos sem senso comum. Por que o não faz?
Gastou você duas páginas para defender a
Mariquinhas. Eu não a acuso; deploro-a. Pode ser que o noivo venha a ser um
excelente marido, mas não creio que esteja na altura dela. E é neste sentido
que eu a deploro.
A nossa divergência tem natural explicação.
Eu sou uma moça solteira, cheia de caraminholas, sonhos, ambições e poesia;
você é já uma dona de casa, esposa tranquila e feliz, mãe de família dentro de
pouco tempo; vê a coisa por outro prisma.
Será isto?
Parece que a companhia lírica não vem. A
cidade está hoje muito alegre; andam bandas de música nas ruas; chegaram boas
notícias do Paraguai. Naturalmente sairemos hoje; não tem saudades de cá?
Adeus.
Lembranças de todos a seu marido.
RAQUEL
VII
À MESMA
Corte, 20 de dezembro
Tem razão; pareço ingrata. Há quase um mês
que lhe não escrevo, apesar de ter recebido já duas cartas. Seria longo
explicar esta demora, e eu infelizmente não tenho tempo para tanto, porque
estão aqui, alguns dias, as primas Alvarengas.
Com que então, você confessa que apenas me
quis experimentar? Eu logo vi que ninguém lhe poderia dizer semelhante coisa a
respeito do Dr. Alberto.
O casamento da Mariquinhas está marcado para
véspera de Reis. Iremos assistir ao sacrifício. Desculpe-me, Luísa; bem sabe
como sou sarcástica, e às vezes... Desculpe-me, sim?
E todavia, quer saber uma coisa? Mudei de
opinião a certo respeito. Hoje penso que antes o pai que o filho. Que espírito
frívolo! que sujeito superficial e tolo é o tal Alberto! O pai é grave e sabe
ser amável; e é amável sem deixar de ser grave. Tem uma distinção própria, uma
conversa animada, é engenhoso e sagaz.
Mil vezes o velho... para ela.
Pergunta-me o que farei eu no caso de nunca
encontrar o ideal que procuro? Já lhe disse: nesse caso fico solteira. O
casamento é uma grande coisa, é a flor dos estados, concordo; mas é mister que
não seja um cativeiro, e cativeiro é tudo o que não realiza as nossas
aspirações íntimas.
Agradeço os seus conselhos, mas quer que lhe
diga? Você fala como quem é feliz; parece-lhe que o casamento, quaisquer que
sejam as condições, é um antegosto do paraíso.
Creio que nem sempre há de ser assim.
Verdade é que, dependendo as coisas das
impressões de cada um, a Mariquinhas pode ser feliz, visto que o marido que
escolheu parece falar-lhe ao coração. Não o nego; mas, nesse caso, continuo a
lastimá-la, porque (repito) não
compreendo a união de uma flor com uma carapuça.
E não escrevo mais por não dizer mal dela.
Perdoe-me você estas tolices, e creia que sou amiga, agora e sempre.
RAQUEL
VIII
À
MESMA
Corte, 8 de janeiro
Casou-se a Mariquinhas. Festa íntima, mas
brilhante. A noiva estava esplêndida, risonha, orgulhosa. O mesmo se pode dizer
do noivo, que parecia ainda mais moço do que me parecera uma vez no teatro, a
ponto de me fazer desconfiar da velhice dele. A cada instante cuidava que o
homem tirava a máscara e confessava ser irmão do filho.
Perguntar-me-á você se eu não tive inveja?
Confesso que sim.
Não sei bem se era inveja; confesso porém que
suspirei quando vi a nossa formosa Mariquinhas, com o seu véu e sua grinalda de
flores de laranja, derramar um olhar tão celeste em torno de si, feliz por se
despedir deste mundo de futilidades como é a vida de uma moça solteira.
Suspirei, é verdade.
Se naquela mesma noite eu pudesse escrever o
que senti, acredite você que teria uma página de literatura digna de figurar
nos jornais.
Hoje tudo passou.
O que não passou, entretanto, porque existia
antes e existirá sempre, porque nasceu comigo e comigo morrerá, é este sonho de
uns amores que eu nunca vi na terra, uns amores que eu não posso exprimir, mas
que devem existir visto que eu tenho a imagem deles no espírito e no coração.
Mamãe, quando me vê aborrecida e devaneadora,
costuma perguntar-me se estou respirando as nuvens. Ela ignora talvez que
exprime com essa palavra o estado do meu espírito. Pensar nestas coisas não é
ir respirar as nuvens lá tão longe da terra?
Acabo de reler o que escrevi, e riscaria tudo
se tivesse mais papel para escrever. Infelizmente não tenho, é meia-noite, e
esta carta há de seguir amanhã cedo. Risque pois o que aí fica escrito; não
vale a pena guardar tolices.
Novidade não há que mereça a pena de
mencionar. Esquecia-me dizer-lhe que achei uma verdadeira qualidade no Dr.
Alberto. Adivinha? Dança admiravelmente. Má língua! dirá você. E para que não
diga mais nada, aqui me fico.
RAQUEL
IX
À MESMA
Corte, 10 de janeiro
Isto é apenas um bilhetinho. Dou-lhe notícia
de que vamos ter aqui uma reapresentação familiar, como fazíamos no colégio. O
Dr. Alberto foi encarregado de escrever a comédia; afiançam-me que há de sair
boa. Representa comigo a Carlota. Os homens são o primo Abreu, o Juca e o Dr.
Rodrigues. Ah! se você cá estivesse!
RAQUEL
X
D. LUÍSA A D. RAQUEL
Juiz de Fora, 15 de janeiro
Meu marido quer ir à corte no fim do mês que
vem. Ver-nos-emos enfim depois de alguns meses de separação. Escrevo apenas
para lhe dar esta notícia que você há de estimar decerto.
E ao mesmo tempo o meu fim é preveni-la, a
fim de que procure disfarçar na presença aquilo que me disfarça no papel.
Adeus.
LUÍSA
XI
D. RAQUEL A D. LUÍSA
Corte, 20 de janeiro
O que
é que eu disfarço no papel? Estou a meditar, a esquadrinhar, e nada descubro.
Podia imaginar que você se refere ao assunto do Alberto; mas depois do que eu
lhe escrevi seria demasiada insistência...
Explique-se.
Quanto à notícia que me dá de que vem cá, é
para mim a sorte grande. Por mais que eu queira explicar no papel o prazer que
sinto com isto, não posso. Não sei escrever; não me acodem as palavras
próprias. O Dr. Alberto (o tal!)
dizia outro dia que a língua humana é cabal para dizer o que se passa no
espírito, mas incapaz de dizer o que vem do coração. E acrescentou esta
sentença que é engenhosa, mas velha: com os lábios fala a cabeça, com os olhos
o coração.
Você porém adivinhará o que eu sinto e
apressará a sua vinda. E o nenê?
RAQUEL
XII
À MESMA
Corte, 28 de janeiro
Faz um calor insuportável; mas como eu abri a
janela que dá para o jardim, estou a ver o céu “todo recamado de estrelas” como
dizem os poetas, e o espetáculo compensa o calor. Que noite, minha Luísa! Gosto
imensamente destes grandes silêncios, porque então ouço-me a mim mesma, e vivo
mais em cinco minutos de solidão do que em vinte horas de bulício.
A Mariquinhas Rocha esteve esta noite cá em
casa com o marido. Ambos parecem felizes, ela ainda mais do que ele, o que se
me afigura completa inversão das leis naturais.
Não se admira de me ouvir falar em “leis
naturais”? A ideia não é minha, é do próprio enteado, o Dr. Alberto.
Conversamos os dois a respeito das boas e santas qualidades de Mariquinhas, e
eu dizia o que ela foi sempre
desde criança.
— Criança é ainda ela, observou ele sorrindo.
Não posso chamar madrasta a uma criatura que parece antes minha irmã mais moça.
— Na idade, sim, tornei eu; mas na
circunspecção e na compostura é positivamente mais velha que o senhor.
Ele sorriu, mas de um sorriso amarelo, e
continuou:
— Meu pai é feliz; minha madrasta parece
ainda mais feliz que meu pai. Não é isto uma inversão das leis naturais?
Critique se lhe parece, a opinião do filho;
mas aproveito a ocasião para dizer que na sua última carta há duas linhas em
que parece ter um resto de suspeita. Mande-me dizer como quer que a convença de
que ele é para mim uma criatura igual a tantas outras?
Ande, confesse que é cruel comigo, e
disponha-se a um sermão na primeira ocasião em que estivermos juntas.
Sabe quem eu vi hoje? Dou-lhe um doce se
adivinhar. O Garcia, aquele Garcia que a nam... Não, não, paremos aqui.
RAQUEL
XIII
D. LUÍSA A D. RAQUEL
Juiz de Fora, 10 de fevereiro
Não confesso nada; não fui cruel. Tive uma
suspeita e preferi dizê-la a guardá-la. A amizade manda isto mesmo. Por que
razão deixaríamos nós aquela franqueza e confiança do tempo do colégio?
Acredito que realmente nada há, mas acredito
também outra coisa. Estou a ver que é alguma figura grotesca, e que você foi
antes ofendida na vaidade que no coração. Vá, confesse isso.
Sabe você uma coisa? Está-me parecendo mais poeta
do que era, mais romanesca, mais cheia de caraminholas. Bem sei que a idade
explica muita coisa, mas há um limite, Raquel; não confunda o romance com a
vida, ou viverá desgraçada...
...Um sermão! aí começava eu a fazer-lhe um
sermão chocho e insulso, e sobretudo ineficaz. Venhamos a coisas mais de prosa.
Meu marido quer entrar na política. Não se arrepia com esta palavra? Política e
lua-de-mel, que duas coisas tão inimigas! Mas será o que Deus quiser.
Lembranças dele e minhas a sua mamãe e a você. Até breve.
LUÍSA
XIV
D. RAQUEL A D. LUÍSA
Corte, 15 de fevereiro
Engana-se quando supõe que o Dr. Alberto é
uma figura grotesca; já lhe disse que é rapaz elegante; e até aquele ar
compassado e escultural que eu lhe achava, até isso parece ter desaparecido
desde que tem intimidade conosco.
Não foi pois a minha vaidade que se ofendeu;
não foi também o meu coração. Senti que você não me acreditasse, nada mais.
Eu podia fazer-lhe agora uma dissertação a
respeito do amor; mas retraio a pena por me lembrar que iria ensinar o
padre-nosso ao vigário.
Seu marido quer entrar na política? Vai você
admirar-se da minha opinião a este respeito, que não parece opinião de uma
devaneadora, como você me chama. Eu penso que a política para você tem uma onça
de inconvenientes e uma libra de vantagens.
A política há de ser uma rival, mas pesadas
as coisas antes essa que outra. Essa ao menos ocupa o espírito e a vida; mas
deixa o coração livre e puro. Demais, eu nem sempre sou a cismadora que tens na
cabeça; sinto um grãozinho de ambição comigo, a ambição de ser... ministra. Ri-se? Eu também me rio, o que
prova que o meu espírito anda despreocupado e livre, livre como a pena que me
corre agora no papel, produzindo uma letra que não sei se entenderá.
Adeus.
RAQUEL
XV
O DR. ALBERTO A RAQUEL
18 de fevereiro
Perdoe-me a audácia; peço-lhe de joelhos uma
resposta que os seus olhos teimam em me não dar. Não lhe digo no papel o que
sinto; não o poderia exprimir cabalmente. Mas o seu espírito há de ter compreendido
o que se passa no meu coração, há de ter lido no meu rosto aquilo que eu nunca
me atreveria a dizer de viva voz.
ALBERTO
XVI
D. RAQUEL A D. LUÍSA
21 de fevereiro
Mamãe estava com disposições de ir visitá-la:
mas eu infelizmente não me acho boa, e adiamos a viagem. Quando desempenha você
a sua palavra vindo passar alguns dias na corte? Conversaríamos muito.
RAQUEL
XVII
À MESMA
5 de março
Não é carta: é apenas um bilhetinho. Não me
dirá o que é o coração humano? Um logogrifo. Mistério! exclamará você ao ler
estas linhas. Pois será.
RAQUEL
XVIII
ALBERTO A D. RAQUEL
8 de março
Oh! não sabe como lhe agradeço a sua carta!
Enfim veio! Foi um raio de luz entre as sombras da minha incerteza. Sou amado?
Não me ilude? Também sente esta paixão que me devora o peito, capaz de levar-me
ao céu, capaz de levar-me ao inferno?
Tem razão quando me pergunta se o não
percebera já nos seus olhos. É verdade que eu julguei ler neles a minha
felicidade. Mas podia iludir-me; supus que a suprema felicidade não era tão
pronta, e se me iludisse, não sei se viveria...
Por que razão duvida de mim? por que motivo
receia que o meu amor seja um passatempo de sala? Que mortal haveria neste
mundo que brincasse com a coroa de glória trazida à terra nas mãos de um anjo?
Não, Raquel... perdão se lhe chamo assim!
Não, o meu amor é imenso, casto, sincero, como os verdadeiros amores.
Uma só palavra sua e podemos converter esta
paixão no mais doce e delicioso estado de bem-aventurança. Quer ser minha
esposa? Diga, responda essa palavra.
ALBERTO
XIX
D. LUÍSA A D. RAQUEL
Juiz de Fora, 10 de março
O coração é um mar, sujeito à influência da
lua e dos ventos. Serve-lhe esta definição? Pena foi que o bilhetinho não
tivesse mais quatro linhas: saberia agora tudo. Ainda assim adivinho alguma
coisa; adivinho que ama.
LUÍSA
XX
À MESMA
Juiz de Fora, 17 de março
A 10 deste mês escrevi-lhe uma carta de que
ainda não obtive resposta.
Por quê?
Já me lembrou se estaria doente; mas creio
que se assim fosse ter-me-iam mandado dizer.
Esta carta vai por mão própria; o portador
não volta cá; mas sendo por mão própria tenho certeza de que lhe será entregue.
E quero que me responda imediatamente.
Vá; um esforço.
Adeus.
LUÍSA
XXI
À MESMA
Juiz de Fora, 24 de março
Nada até hoje! Que é isso, Raquel?
O portador da minha carta anterior mandou-me
dizer que lhe havia entregue em mão própria; não estava doente; por que razão
este esquecimento? Esta é a última; se me não escrever, acreditarei que outra
amiga lhe merece mais, e que você esqueceu a confidente do colégio.
LUÍSA
XXII
D. RAQUEL A D. LUÍSA
Corte, 30 de março
Esquecer-me de você? Está louca! Onde acharia
eu melhor amiga nem tão boa? Não tenho escrito, é verdade, por mil razões, a
qual mais justa, sendo a principal delas, ou antes a que as resume todas, uma
razão... Não sei como lhe diga isto.
Amor?
Ah! Luísa, o mais puro e ardente que pode
imaginar, e o mais inesperado também. Aquela devaneadora que você conhece, a
que vive nas nuvens, viu lá mesmo das nuvens o esperado do seu coração, tal
qual o sonhara um dia e desesperara de achar jamais.
Não lhe posso dizer mais nada, não sei. Tudo
o que eu poderia escrever aqui estaria abaixo da realidade. Mas venha, venha, e
talvez leia no meu rosto a felicidade que experimento, e no dele o sinal
característico daquela superioridade que eu ambicionei sempre e tão rara é na
terra.
Enfim, sou feliz!
RAQUEL
XXIII
D.
LUÍSA A D. RAQUEL
Juiz de Fora, 8 de abril
Chegou
enfim uma carta, e chegou a tempo, porque eu já estava disposta a esquecer-me
de você. Ainda assim não lhe perdoava, se não fosse a razão... Céus! que razão!
Ama enfim? achou o homem... quero dizer, o arcanjo que procurava a minha
cismadora? Que figura tem? é bonito? é alto? é baixo? Vá, diga-me tudo.
Agora vejo que estive a pique de fazê-la
perder a sua felicidade. Tanto lhe falei no tal Dr. Alberto, que, era bem
possível, como às vezes acontece, vir a namorar-se dele, e então quando o outro
chegasse... era tarde.
E diga-me: será ele velho como o da
Mariquinhas Rocha? Não se zangue, Raquel, mas o peixe morre pela boca, e era
possível que você fosse castigada por ter falado dela. Pela minha parte, não
acharia que dizer, uma vez que ele a amasse e fosse homem digno de casar com a
minha Raquel. Em todo o caso, antes um moço.
Não me atrevo a pedir-lhe o retrato, mas meu
marido pede-lho. Não se zangue, eu contei tudo, e ele manda-lhe muitos
parabéns. Os meus, irei eu mesma levá-los.
LUÍSA
XXIV
D. RAQUEL AO DR. ALBERTO
10 de abril
Estou muito zangada por não teres vindo
ontem; cedo começas a esquecer-me.
Vem hoje ou eu fico zangada. Ao mesmo tempo
quero que me tragas um retrato dos teus; é um segredo.
Ontem perdeste muito; esteve aqui a G... e
naturalmente sentiu a tua falta. Sentes isso, não? Pobre da Raquel! Adeus.
RAQUEL
XXV
O DR. ALBERTO A D. RAQUEL
10 de abril
Perdoa-me se não fui ontem lá; em compensação
pensei muito em ti. Teu pai pediu-me que eu fosse jantar hoje com a família;
espera-me cedo.
Levarei nessa ocasião o meu retrato, sem
saber para que é; mas espero que não será para coisa má.
Quanto à G... eu já não sei como te hei de
dizer que é uma delambida de quem não faço caso; se queres, limitar-me-ei a
cumprimentá-la apenas. Que mais desejas?
Adeus, minha desconfiada. Crê que eu te amo
muito, muito e muito, agora e sempre.
Teu ALBERTO
XXVI
D. RAQUEL A D. LUÍSA
17 de abril
Uma grande notícia! Fui ontem pedida a papai,
e vou casar. Se soubesse como sou feliz!... Quisera que estivesse aqui para
dar-lhe muitos e muitos beijos. Mas há de vir ao casamento, não? Se não vier,
declaro que não caso.
Naturalmente adivinha que o retrato que vai
dentro desta carta é o do meu noivo. Não é bonito? Que distinção! que
inteligência! que espírito!... A alma, sobretudo, não creio que Deus mandasse a
este mundo nenhuma outra que se lhe compare. Creio que eu não merecia tanto.
Venha depressa; o casamento há de ser em
maio. Dê a notícia a seu marido.
RAQUEL
XXVII
D. LUÍSA A D. RAQUEL
Juiz de Fora, 22 de abril
Que cabeça! disse tudo menos o nome do noivo!
LUÍSA
XXVIII
D. RAQUEL A D. LUÍSA
Corte, 27 de abril
Tem razão; sou uma cabeça no ar. Mas a
felicidade explica ou desculpa tudo. O meu noivo é o Dr. Alberto.
RAQUEL
XXIX
D.
LUÍSA A D. RAQUEL
Juiz de Fora, 1º de Maio
LUÍSA.
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