Pobres liberais!
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Foi no tempo do Império.
O notável político Dr. Francelino Lopes, sendo presidente de uma província cujo nome não mencionarei para não ofender certas suscetibilidades, aliás mal entendidas, resolveu, aquiescendo ao desejo dos chefes mais importantes do partido conservador (era o que estava de cima), fazer uma grande excursão por todo o interior da província, visitando as principais localidades.
A notícia dessa resolução abalou necessariamente a população
inteira, e por toda a parte, não só as câmaras municipais como os cidadãos mais
importantes, correligionários do governo, se prepararam para receber
condignamente o ilustre delegado do gabinete imperial.
Na primeira cidade visitada pelo Dr. Francelino, foi sua
excelência recebido na estação da estrada de ferro, que se achava ricamente
adornada, ao som do hino nacional, executado por uma indisciplinada charanga, e
das bombas dos foguetes estourando no ar e das aclamações do povo, cujo
entusiasmo, se não era real, era, pelo menos, espalhafatoso e turbulento.
Estavam presentes todas as autoridades locais. Houve três
discursos, cada qual mais longo, a que sua excelência respondeu com poucas mas
eloquentes palavras.
Da estação da estrada de ferro, seguiu o presidente, a carro,
acompanhado sempre pelas autoridades e grande massa de povo, para a câmara
municipal, onde o esperava opíparo banquete, a que fez honra o estômago de sua
excelência, o qual estava a dar horas como se fosse o estômago de um simples
mortal.
À mesa, defronte do presidente, sentou-se a Baronesa de Santana,
esposa do chefe do partido dominante, abastado fazendeiro, que se reservara a
honra e o prazer de hospedar o grande homem.
Este, que era bem parecido, que não tinha ainda 40 anos, e gozava
na capital do império de uma reputação um tanto donjuanesca, sentia-se devorado
pelos olhares ardentes da Baronesa, de idade digna de um príncipe.
Eram 9 horas da noite quando terminou o banquete pelo brinde de
honra, erguido por sua excelência à sua majestade, o Imperador.
Como a charanga estivesse presente e as moças manifestassem o
desejo de dançar, improvisou-se um baile, e o Dr. Francelino Lopes dançou uma
quadrilha com a Baronesa, apertando-lhe os dedos de um modo que nada tinha de
presidencial. A essa inócua manifestação muscular limitou-se, entretanto, o
esboçado namoro, que não prosseguiu por falta absoluta de ocasião.
Como o presidente se queixasse da fadiga produzida pela viagem, a
festa foi interrompida, e as autoridades conduziram sua excelência aos
aposentos que lhe estavam reservados em casa do Barão, na mesma praça onde se
achava o edifício da Câmara.
Nessa casa que, apesar de baixa, era a melhor da cidade, haviam
sido preparadas duas salas e uma alcova para o ilustre hóspede.
Qualquer dos três compartimentos estava luxuosamente mobiliado e o
leito era magnífico.
Os donos da casa, o presidente da Câmara, o juiz de direito, o
juiz municipal, o vigário, o delegado de polícia e outras pessoas gradas,
mostraram a sua excelência os seus cômodos, pedindo-lhe mil desculpas por não
ter sido possível arranjar coisa melhor, e todos se retiraram fazendo
intermináveis mesuras.
O último a sair foi o bacharel Pinheiro, proprietário e redator
principal d'A Opinião Pública, órgão
do partido conservador.
— Peço permissão para oferecer a vossa excelência o número do meu
jornal publicado hoje. Traz a biografia e o retrato de vossa excelência. Vossa
excelência me desculpará, se não achar essa modesta manifestação de apreço à
altura dos merecimentos de vossa excelência
O Dr. Francisco Lopes agradeceu, fechou a porta e soltou um longo
suspiro de alívio.
***
Logo que se viu sozinho, o presidente lembrou-se do seu criado de
quarto, que ali devia estar... Onde se meteria ele? Provavelmente adormecera
noutro cômodo da casa.
Felizmente o dorminhoco tivera o cuidado de desarrumar a mala de
sua excelência e pusera à mão a sua roupa de cama e os seus chinelos.
O hóspede descalçou-se, despiu-se, envergou a camisola de dormir,
deitou-se, e abriu A Opinião Pública, disposto
a ler a sua biografia antes de apagar a vela.
Apenas acabara de examinar o retrato, detestavelmente xilografado,
sentiu sua excelência uma dolorosa contração no ventre, e logo em seguida a
necessidade imperiosa de praticar certo ato fisiológico de que nenhum indivíduo
se pode eximir, nem mesmo sendo presidente da província.
Ele saltou do leito e começou a procurar o receptáculo sem o qual
não poderia obedecer à natureza; mas nem no criado-mudo nem debaixo da cama
encontrou coisa alguma. Farejou todos os cantos: nada!
O Barão, a Baronesa, o presidente da Câmara, os juízes, o vigário,
o delegado de polícia, o redator d'A Opinião
Pública, ninguém se lembrara de que sua excelência era um homem como os
outros homens!
O Dr. Francelino Lopes quis bater palmas, chamar alguém, pedir que
o socorressem; mas esbarrou num preconceito ridículo da nossa educação;
envergonhou-se de confessar o que lhe parecia uma fraqueza e era, aliás, a
coisa mais natural deste mundo; receou perder a sua linha de primeira
autoridade da província, desabar do pedestal de semideus aonde o guindaram
durante a festa da recepção.
Além disso, que diria a formosa provinciana, a bela Baronesa cujos
dedinhos apertara, e cujos olhos pecaminosos o haviam devorado? Como dona da
casa seria ela a primeira a saber, e achá-lo-ia ridículo e grosseiro!
Entretanto, o momento era crítico. O delegado do governo imperial
começava a suar frio...
Mas de repente olhou para A
Opinião Pública e lembrou-se não sei de que aventura sucedida a outro
hóspede, que se achava em semelhante emergência. Não refletiu nem mais um
segundo: o jornal do Bacharel Pinheiro, desdobrado sobre o soalho, substituiu o
receptáculo ausente.
Desobrigada a natureza, sua excelência foi de mansinho,
cautelosamente, abrir uma janela.
A praça estava deserta e silenciosa. Nas sacadas da Câmara
Municipal morriam as últimas luminárias. A cidade inteira dormia.
Ele agarrou cuidadosamente A
Opinião Pública pelas quatro pontas e atirou tudo fora... — Depois fechou a
janela, lavou-se, perfumou-se, deitou-se, e, com muita pena de não poder ler a
sua biografia, apagou a vela.
Pouco depois dormia o sono do justo, que tem igualmente
desembaraçado o ventre e a consciência.
***
O Dr. Francelino Lopes despertou, ou antes, foi despertado de
manhã, por um rumor confuso, que se fazia ouvir na praça, aumentando
gradualmente.
Prestou o ouvido, e começou a distinguir, entre aquela estranha
vozeira, frases de indignação, como:
— É uma infâmia!
— Que pouca vergonha!
— A vingança será terrível! etc.
E o barulho aumentava!
Não podia haver dúvida: tratava-se de uma perturbação da ordem
pública.
O presidente vestiu-se à pressa, abriu a janela, e foi recebido
por uma estrondosa ovação. Na praça estavam reunidas mais de quinhentas
pessoas.
— Viva o Sr. Presidente da Província!
— Vivou!
E a charanga executou o hino.
Terminado este, o Bacharel Pinheiro aproximou-se da janela
presidencial, e pronunciou as seguintes palavras:
— Numerosos habitantes desta cidade, admiradores das altas
virtudes e dos talentos de vossa excelência, vieram hoje aqui, ao romper
d'alva, no intuito de dar os bons dias a vossa excelência, acompanhados de uma
banda de música para tocar a alvorada; mas, aqui chegando, foram surpreendidos pelo
espetáculo de uma injúria ignóbil, cometida contra a pessoa de vossa excelência
e contra a imprensa livre!
— Apoiado! regougaram aquelas quinhentas gargantas como se fossem
uma só.
— Deixamos a injúria no lugar em que foi encontrada, isto é,
debaixo da janela de vossa excelência, a fim de que vossa excelência veja a que
desatinos pode levar nesta cidade o ódio político e do que são capazes os
liberais!
— Apoiado! vociferou a turba.
— Sim, foram os liberais! Só essa gente imunda poderia encher de
imundícies a respeitável efígie e a biografia de vossa excelência!
— Apoiado!
— Mas fique certo, excelentíssimo, de que, se foi grande a ofensa,
maior será o desagravo!
O presidente respondeu assim:
— Meus senhores, o acaso tem mistérios impenetráveis... tudo pode
ser obra do acaso, e não dos liberais. (À
parte) Pobres liberais! (Alto)
Todavia, se ofensa houve, foi uma ofensa anônima, tudo quanto pode haver de
mais anônimo... E as ofensas anônimas desprezam-se! Viva sua majestade o
imperador!
— Vivou!
— Viva a religião do Estado!
— Vivou!
— Viva a constituição do Império!
— Vivou!
E a charanga atacou o hino.
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