
Pobre Finoca!
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Que é isso? Você parece assustada. Ou é
namoro novo?
— Que novo? é o mesmo, Alberta; é o mesmo
aborrecido que me persegue; viu-me agora passar com mamãe, na esquina da Rua da
Quitanda, e, em vez de seguir o seu caminho, veio atrás de nós. Queria ver se
ele já passou.
— O melhor é não olhar para a porta; conversa
comigo.
Toda a gente, por menos que adivinhe, sabe
logo que esta conversação tem por teatro um armarinho da Rua do Ouvidor. Finoca
(o nome é Josefina) entrou agora mesmo com a velha mãe e foram sentar-se ao
balcão, onde esperam agulhas; Alberta, que está ali com a irmã casada, também
aguarda alguma coisa, parece que uma peça de cadarço. Condição mediana de ambas
as moças. Ambas bonitas. Os empregados trazem caixas, elas escolhem.
— Mas você não terá animado a perseguição,
com os olhos? perguntou Alberta, baixinho.
Finoca respondeu que não. A princípio olhou
para ele; curiosa, naturalmente; uma moça olha sempre uma ou duas vezes,
explicava a triste vítima; mas daí em diante, não se importou com ele. O
idiota, porém (é o próprio termo empregado por ela), cuidou que estava aceito e
toca a andar, a passar pela porta, a esperá-la nos pontos dos bondes; até
parece que adivinha quando ela vai ao teatro, porque sempre o acha à porta, ao
pé do bilheteiro.
— Não será fiscal do teatro? aventou Alberta
rindo.
— Talvez, admitiu Finoca.
Pediram mais cadarços e mais agulhas, que o
empregado foi buscar, e olharam para a rua, donde entravam várias senhoras,
umas conhecidas, outras não. Cumprimentos, beijos, notícias, perguntas e
respostas, troca de impressões de um baile, de um passeio ou de uma corrida de
cavalos. Grande rumor no armarinho; falam todas, algumas sussurram apenas,
outras riem; as crianças pedem isto ou aquilo, e os empregados curvados atendem
risonhos à freguesia, explicam-se, defendem-se.
— Perdão, minha senhora; o metim era desta
largura.
— Qual, São Silveira! Deixe, que eu lhe trago
amanhã os dois metros.
— Senhor Queirós?
— Que manda vossa excelência?
— Dê-me aquela fita encarnada de sábado.
— Da larga?
— Não, da estreita.
E o Sr. Queirós vai buscar a caixa das fitas,
enquanto a dama, que as espera, examina de esguelha outra dama que entrou agora
mesmo, e parou no meio da loja. Todas as cadeiras estão ocupadas. The table is full, como em Macbeth; e, como em Macbeth, há um fantasma, com a diferença que este não está sentado
à mesa, entra pela porta; é o idiota, perseguidor de Finoca, o suposto fiscal
de teatro, um rapaz que não é bonito nem elegante, mas simpático e veste com
asseio. Tem um par de olhos, que valem pela lanterna de Diógenes; procuram a
moça e dão com ela; ela dá com ele; movimento contrário de ambos; ele, Macedo,
pede a um empregado uma bolsinha de moedas, que viu à porta, no mostrador, e
que lhe traga outras à escolha. Disfarça, puxa os bigodes, consulta o relógio,
e parece que o mostrador está empoeirado, porque ele tira do bolso um lenço com
que o limpa; lenço de seda.
— Olha, Alberta, vê-se mesmo que entrou por
minha causa. Vê, está olhando para cá.
Alberta verificou disfarçadamente que sim; ao
mesmo tempo que o rapaz não tinha má cara nem modos feios.
— Para quem gostasse dele, era boa escolha,
disse ela à amiga.
— Pode ser, mas para quem não gosta, é um
tormento.
— Isso é verdade.
— Se você não tivesse já o Miranda, podia
fazer-me o favor de o entreter, enquanto ele se esquece de mim, e fico livre.
Alberta riu-se.
— Não é má ideia, disse; era assim um modo de
tapar-lhe os olhos, enquanto você foge. Mas então ele não tem paixão; quer só
namoro, passar o tempo...
— Pode ser isso mesmo. Contra velhaco,
velhaca e meia.
— Perdão; duas velhacas, porque somos duas.
Você não pensa, porém, em uma coisa; é que era preciso chamá-lo a mim, e não é
coisa que se peça a uma amiga séria. Pois eu iria agora fazer-lhe sinais...
— Aqui estão as agulhas que vossa excelência...
Interrompeu-se a conversação; trataram das
agulhas, enquanto Macedo tratou das bolsinhas, e o resto da freguesia das suas
compras. Sussurro geral. Ouviu-se um toque de caixa; era um batalhão que subia
a Rua do Ouvidor. Algumas pessoas foram vê-lo passar às portas. A maior parte
deixou-se ficar ao balcão, escolhendo, falando, matando o tempo. Finoca não se
levantou; mas Alberta, com o pretexto de que Miranda (o namorado) era tenente
de infantaria, não pôde resistir ao espetáculo militar. Quando ela voltou para
dentro, Macedo, que espiava o batalhão por cima do ombro da moça, deu-lhe
galantemente passagem.
Saíram e entraram fregueses. Macedo, à força
de cotejar bolsinhas, foi obrigado a comprar uma delas, e pagá-la; mas não a
pagou com o preço exato, deu nota maior para obrigar ao troco. Entretanto,
esperava e olhava para a esquiva Finoca, que estava de costas, tal qual a
amiga. Esta ainda olhou disfarçadamente, como quem procura outra coisa ou
pessoa, e deu com os olhos dele, que pareciam pedir-lhe misericórdia e auxílio.
Alberta disse isto à outra, e chegou a aconselhar-lhe que, sem olhar para ele,
voltasse a cabeça.
— Deus me livre! Isto era dar corda, e
condenar-me.
— Mas, não olhando...
— É a mesma coisa; o que me perdeu foi isso
mesmo, foi olhar algumas vezes, como já disse a você; meteu-se-lhe em cabeça
que o adoro, mas que sou medrosa, ou caprichosa, ou qualquer outra coisa...
— Pois olhe, eu se fosse você olhava algumas
vezes. Que mal faz? Era até melhor que ele perdesse as esperanças, quando mais
contasse com elas.
— Não.
— Coitado! parece que pede esmolas.
— Você olhou outra vez?
— Olhei. Tem uma cara de quem padece. Recebeu
o troco do dinheiro sem contar, só para me dizer que você é a moça mais bonita
do Rio de janeiro — não desfazendo em mim, já se vê.
— Você lê muita coisa...
— Eu leio tudo.
De fato, Macedo parecia implorar à amiga de
Finoca. Talvez houvesse compreendido a confidência, e queria que ela servisse
de terceira aos amores — a uma paixão do inferno, como se dizia nos dramas
guedelhudos. Fosse o que fosse, não podia ficar na loja mais tempo, sem comprar
mais nada, nem conhecer ninguém. Tratou de sair; fê-lo por uma das portas
extremas, e caminhou em sentido contrário a fim de espiar pelas outras duas
portas a moça dos seus desejos. Elas é que o não viram.
— Já foi? perguntou Finoca dali a instantes à
amiga.
Alberta voltou a cabeça e percorreu a loja
com os olhos.
— Já foi.
— É capaz de esperar-me na esquina.
— Pois você muda de esquina.
— Como? se não sei se ele desceu ou subiu?
E depois de alguns momentos de reflexão:
— Alberta, faz-me este favor!
— Que favor?
— O que lhe pedi há pouco.
— Está tola! Vamos embora...
— O tenente não apareceu hoje?
— Ele não vem às lojas.
— Ah! se ele desse algumas lições ao meu perseguidor!
Vamos, mamãe?
Saíram todos e subiram a rua. Finoca não se
enganara; Macedo estava à esquina da Rua dos Ourives. Disfarçou, mas fitou logo
os olhos nela. Ela não tirou os seus do chão, e foram os de Alberta que
receberam os dele, entre curiosa e piedosa. Macedo agradeceu o favor.
— Nem caso! gemeu ele consigo; a outra, ao
menos, parece ter compaixão de mim.
Seguiu-as, meteu-se no mesmo bonde, que as
levou ao Largo da Lapa, onde se apearam e foram pela Rua das Mangueiras. Nesta
morava Alberta; a outra na dos Barbonos. A amiga ainda lhe deu uma esmola; a
avara Finoca nem voltou a cabeça.
Pobre Macedo! exclamarás tu, ao invés do
título, e realmente, não se dirá que esse rapaz ande no regaço da Fortuna. Tem
um emprego público, qualidade já de si pouco recomendável ao pai de Finoca;
mas, além de ser público, é mal pago. Macedo faz proezas de economia para ter o
seu lenço de seda, roupa à moda, perfumes, teatro, e, quando há Lyrico, luvas. Vive em um quarto de casa
de hóspedes, estreito, sem luz, com mosquitos e (para que negá-lo?) pulgas.
Come mal para vestir bem; e, quanto aos incômodos da alcova, valem tanto como
nada, porque ele ama — não de agora — tem amado sempre, é a consolação ou
compensação das outras faltas. Agora ama a Finoca, mas de um modo mais veemente
que de outras vezes, uma paixão sincera, não correspondida. Pobre Macedo!
Cinco ou seis semanas depois do encontro no
armarinho, houve um batizado na família de Alberta, o de um sobrinho desta,
filho de um irmão empregado no comércio. O batizado era de manhã, mas havia
baile à noite — e prometia ser de espavento. Finoca mandou fazer um vestido
especial; as valsas e quadrilhas encheram-lhe a cabeça, dois dias antes do
aprazado. Encontrando-se com Alberta, viu-a triste, um pouco triste. Miranda, o
namorado, que era ao mesmo tempo tenente de infantaria, recebera ordem de ir
para São Paulo.
— Em comissão?
— Não; vai com o batalhão.
— Eu, se fosse ele, fingia-me constipado, e
ia no dia seguinte.
— Mas já foi!
— Quando?
— Ontem de madrugada. Segundo me disse, de
passagem, na véspera, parece que a demora é pequena. Estou pronta a esperar;
mas a questão não é essa.
— Qual é?
— A questão é que ele devia ser apresentado
em casa, no dia do baile, e agora...
Os olhos da moça confirmaram discretamente a
sinceridade da dor; umedeceram-se e verteram duas lágrimas pequeninas. Seriam
as últimas? seriam as primeiras? Haveria as únicas? Eis aí um problema, que
tomaria espaço à narração, sem grande proveito para ela, porque aquilo que se
não acaba entendendo, melhor é não gastar tempo em explicá-lo. Sinceras eram as
lágrimas, isso eram. Finoca tratou de as enxugar com algumas palavras de boa
amizade e verdadeira pena.
— Fica descansada, ele volta; São Paulo é
aqui perto. Talvez volte capitão.
Que remédio tinha Alberta, senão esperar?
Esperou. Enquanto esperava, cuidou do batizado, que, em verdade, devia ser uma
festa de família. Na véspera as duas amigas ainda estiveram juntas; Finoca
tinha um pouco de dor de cabeça, estava aplicando não sei que medicamento, e
contava acordar boa. Em que se fiava, não sei; sei que acordou pior com uma
pontinha de febre, e posto quisesse ir assim mesmo, os pais não o consentiram,
e a pobre Finoca não estreou naquele dia o vestido especial. Tanto pior para
ela, porque o pesar aumentou o mal; à meia-noite, quando mais acesas deviam
estar as quadrilhas e valsas, a febre ia em trinta e nove graus. Creio que se
lhe dessem a escolher, ainda assim dançaria. Para que a desgraça fosse maior, a
febre declinou sobre a madrugada, justamente à hora em que, de costume, os
bailes executam as últimas danças.
Contava que Alberta viesse naquele mesmo dia
visitá-la e narrar-lhe tudo; mas esperou-a em vão. Pelas três horas recebeu um
bilhete da amiga, pedindo-lhe perdão de não ir vê-la. Constipara-se e chovia;
estava rouca; entretanto, não queria demorar-se em dar-lhe notícia da festa.
“Esteve magnífica, escrevia ela, se é que
alguma coisa pode estar magnífica sem você e sem ele. Mas, enfim, agradou a
todos, e principalmente aos pais do pequeno. Você já sabe o que meu irmão é, em
coisas desta ordem. Dançamos até perto de três horas. Estavam os parentes quase
todos, os amigos de costume, e alguns convidados novos. Um deles foi a causa da
minha constipação, e dou-lhe um doce se você adivinhar o nome deste malvado.
Digo só que é um fiscal de teatro. Adivinhou? Não diga que é Macedo, porque
então recebe mesmo o doce. É verdade, Finoca; o tal sujeito que te persegue
apareceu aqui, ainda não sei bem como; ou foi apresentado ontem a meu irmão, e
convidado logo por ele; ou este já o conhecia antes, e lembrou-se de lhe mandar
convite. Também não estou longe de crer, que, qualquer que fosse o caso, ele
tratou de se fazer convidado, contando com você. Que lhe parece? Adeus, até
amanhã, se não chover.”
Não choveu. Alberta foi visitá-la, achou-a
melhor, quase boa. Repetiu-lhe a carta, e desenvolveu-a, confirmando as
relações de Macedo com o irmão. Confessou-lhe que o rapaz, tratado de perto,
não era tão desprezível como parecia à outra.
— Eu não disse desprezível, acudiu Finoca.
— Você disse idiota.
— Sim; idiota...
— Nem idiota. Conversado e muito atencioso.
Diz até coisas bonitas. Eu lembrei-me do que você me pediu, e estou, quase não
quase, a tentar prendê-lo; mas lembrei-me também do meu Miranda, e achei feio.
Contudo, dançamos duas valsas.
— Sim?
— E duas quadrilhas. Você sabe, poucos
dançantes. Muitos jogadores de solo e conversadores de política.
— Mas como foi a constipação?
— A constipação não teve nada com ele; foi um
modo que achei de dar a notícia. E olha que não dança mal, ao contrário.
— Um anjo, em suma?
— Eu, se fosse você, não o deixava ir assim.
Acho que dá um bom marido. Experimenta, Finoca.
Macedo saíra do baile um tanto consolado da
ausência de Finoca; as maneiras de Alberta, a elegância do vestido, as feições
bonitas, e um certo ar de tristeza que, de quando em quando, lhe cobria o
rosto, tudo e cada uma dessas notas particulares era de fazer pensar alguns
minutos antes de dormir. Foi o que lhe aconteceu. Vira outras moças; mas nenhuma
tinha o ar daquela. E depois era graciosa nos intervalos de tristeza; dizia
palavras doces, ouvia com interesse. Supor que o tratou assim só por desconfiar
que ele gostava da amiga, isto é que lhe parecia absurdo. Não, realmente, era
um anjo.
— Um anjo, disse ele daí a dias ao irmão de
Alberta.
— Quem?
— D. Alberta, sua irmã.
— Sim, boa alma, excelente criatura.
— Pareceu-me isso mesmo. Para conhecer uma
pessoa, bastam às vezes alguns minutos. E depois é muito galante — galante e
modesta.
— Um anjo! repetiu o outro sorrindo.
Quando Alberta soube deste pequeno diálogo —
contou-lho o irmão — sentiu-se um tanto lisonjeada, talvez muito. Não eram
pedras que o rapaz lhe atirava de longe, mas flores — e flores aromáticas. De
maneira que, quando no domingo próximo o irmão o convidou a jantar em casa
dele, e ela viu entrar, pouco antes de irem para a mesa, a pessoa do Macedo,
teve um estremecimento agradável. Cumprimentou-o com prazer. E perguntou a si
mesma, por que é que Finoca desdenhava de um moço tão digno, tão modesto...
Repetiu ainda este adjetivo. É que ambos teriam a mesma virtude.
Dias depois, dando notícia do jantar a
Finoca, Alberta referiu novamente a impressão que lhe deixara o Macedo, e
instou com a amiga para que lhe desse corda, e acabassem casando.
Finoca pensou alguns instantes:
— Você, que já dançou com ele duas valsas e
duas quadrilhas, e jantou à mesma mesa, e ouviu francamente as suas palavras,
pode ter essa opinião; a minha é inteiramente contrária. Acho que ele é um
cacete.
— Cacete porque gosta de você?
— Há diferença entre perseguir uma pessoa e
dançar com outra.
— É justamente o que eu digo, acudiu Alberta;
se você dançar com ele, verá que é outro; mas, não dance, fale só... Ou então,
volto ao plano que tínhamos: vou falar-lhe de você, animá-lo...
— Não, não.
— Sim, sim.
— Então brigamos.
— Pois brigaremos, contanto que façamos as
pazes na véspera do casamento.
— Mas que interesse tem você nisto?
— Porque acho que você gosta dele, e, se não
gostava muito nem pouco, começa a gostar agora.
— Começo? Não entendo.
— Sim, Finoca; você já me disse duas palavras
com a testa franzida. Sabe o que é? É um bocadinho de ciúme. Desde que soube do
baile e do jantar, ficou meia ciumenta — arrependida de não ter animado o moço...
Não negue; é natural. Mas faça uma coisa; para que Miranda não se esqueça de
mim, vá você a São Paulo, e trate de fazer-me boas ausências. Aqui está a carta
que recebi ontem dele.
Dizendo isto, desabotoou um pedaço do
corpinho, e tirou uma carta, que ali trazia, quente e aromada. Eram quatro
páginas de saudades, de esperanças, de imprecações contra o céu e a terra,
adjetivada e beijada, como é de uso nesse gênero epistolar. Finoca apreciou
muito o documento; felicitou a amiga pela fidelidade do namorado, e chegou a
confessar que lhe tinha inveja. Foi adiante; nunca recebera de ninguém uma
epístola assim, tão ardente, tão sincera... Alberta deu-lhe uma pancadinha na
face com o papel, e releu-o depois, para si. Finoca, olhando para ela, disse
consigo:
— Creio que também ela gosta muito dele.
— Se você nunca recebeu uma assim — disse-lhe
Alberta — é porque não quer. O Macedo...
— Basta de Macedo!
A conversa voltou ao ponto de partida, e as
duas moças andaram no mesmo círculo vicioso. Não tenho culpa se eram escassas
de assunto e de ideias. Hei de contar a história, que é curta, tal qual ela é,
sem lhe pôr mais nada, além da boa vontade e da franqueza. Assim, para ser
franco, direi que a repulsa de Finoca não era talvez falta de interesse nem de
curiosidade. A prova é que, naquela mesma semana, passando-lhe pela porta o
Macedo, e olhando naturalmente para ela, Finoca afligiu-se menos que das outras
vezes; é certo que desviou os olhos logo, mas sem horror; não deixou a janela,
e, quando ele, ao dobrar a esquina, voltou a cabeça, e não a viu fitá-lo, viu-a
fitar o céu, que é um refúgio e uma esperança. Tu concluirias assim, rapaz que
me lês; Macedo não foi tão longe.
— Afinal, o melhor é não pensar mais nela,
murmurou andando.
Entretanto, ainda pensou nela, de mistura com
a outra, viu-as ao pé de si, uma desdenhosa, outra atenciosa, e perguntou por
que é que as mulheres haviam de ser diferentes; mas, advertindo que os homens
também o eram, convenceu-se que não nascera para os problemas morais, e deixou
cair os olhos no chão. Não caíram no chão, mas nos sapatos. Mirou-os bem. Que
lindos que eram os sapatos! Não eram recentes, mas um dos talentos do Macedo
era saber conservar a roupa e o calçado. Com pouco dinheiro, fazia sempre
bonita figura.
— Sim — repetiu ele, daí a vinte minutos, Rua
da Ajuda abaixo — o melhor é não pensar mais nela.
E pôs mentalmente os olhos em Alberta, tão
cheia de graça, tão elegante de corpo, tão doce de palavras — uma perfeição.
Mas por que é que, sendo atenta com ele, furtava-se-lhe quando ele a mirava de
certo modo? Zanga não era, nem desdém, porque daí a pouco falava-lhe com a
mesma bondade, perguntava-lhe isto e aquilo, respondia bem, sorria, e cantava,
quando ele lhe pedia que cantasse. Macedo animava-se com isto, arriscava outro
daqueles olhares doces e ferinos, a um tempo, e a moça voltava o rosto,
disfarçando. Eis aí outro problema, mas desta vez não fitou o chão nem os
sapatos. Foi andando, esbarrou num homem, escapou de cair num buraco, quase não
deu por nada, tão ocupado levava o espírito.
As visitas continuaram, e o nosso namorado
universal parecia fixar-se de vez na pessoa de Alberta, apesar das restrições
que ela lhe punha. Em casa desta, notavam a assiduidade de Macedo, e a boa
vontade com que ela o recebia, e os que tinham notícia vaga ou positiva do
namoro militar, não compreendiam a moça, e concluíam que a ausência era uma
espécie de morte — restrita, mas não menos certa. E contudo ela trabalhava para
a outra, não digo que com igual esforço nem continuidade; mas em achando modo
de elogiá-la, fazia-o com prazer, embora já sem grande paixão. O pior é que não
há elogios infinitos, nem perfeições que se não acabem de louvar, quando menos
para não vulgarizá-las. Alberta temeu, além disso, a vergonha do papel que lhe
poderiam atribuir; refletiu também que, se o Macedo gostasse dela, como entrava
a parecer, ouviria o nome da outra com impaciência, senão coisa pior — e
calou-o por algum tempo.
— Você ainda continua a trabalhar por mim?
perguntou-lhe um dia Finoca.
Alberta, um tanto espantada da pergunta (não
falavam mais naquilo) respondeu que sim.
— E ele?
— Ele, não sei.
— Esqueceu-me.
— Que se esquecesse não digo, mas você foi
tão fria, tão cruel...
— A gente não vê, às vezes, o que lhe convém,
e erra. Depois, arrepende-se. Há dias, vi-o entrar no mesmo armarinho em que
estivemos uma vez, lembra-se? Viu-me, e não fez caso.
— Não fez caso? Então para que entrou lá?
— Não sei.
— Comprou alguma coisa?
— Creio que não... Não comprou, não; foi
falar a um dos caixeiros, disse-lhe não sei quê, e saiu.
— Mas está certa que ele reparou em você?
— Perfeitamente.
— O armarinho é escuro.
— Qual escuro! Viu-me, chegou a tirar o
chapéu disfarçadamente, como era costume...
— Disfarçadamente?
— Sim, era um gesto que fazia...
— E ainda faz esse gesto?
— Naquele dia fez, mas sem se demorar nada.
Antigamente, era capaz de comprar ainda que fosse uma boneca, só para ver-me
mais tempo. Agora... E até já nem passa lá por casa!
— Talvez passe nas horas em que você não está
à janela.
— Há dias, em que estou a tarde inteira, não
contando os domingos e dias santos.
Calou-se, calaram-se. Estavam em casa de
Alberta, e ouviram um som de caixa de rufo e marcha de tropa. Que coisa mais
adequada que fazer uma alusão ao Miranda e perguntar quando voltaria? Finoca
preferiu falar do Macedo, agarrando as mãos à amiga:
— É uma coisa que não posso explicar, mas
agora gosto dele; parece-me, não digo que goste de verdade; parece-me...
Alberta cortou-lhe a palavra com um beijo.
Não era de judas, porque sinceramente Alberta quis assim pactuar com a amiga a
entrega do noivo e o casamento. Mas quem descontaria aquele beijo, em tais
circunstâncias? Verdade é que o tenente estava em São Paulo, e escrevia; mas,
como Alberta perdesse alguns correios e explicasse o fato pela necessidade de
não descobrir a correspondência, ele já escrevia menos vezes, menos copioso,
menos ardente, coisa que uns justificariam pelas cautelas da situação e pelas
obrigações de ofício, outros por um namoro de passagem que ele trazia no bairro
da Consolação. Foi, talvez, este nome que levou o namorado de Alberta a
frequentá-lo; achou ali uma menina, cujos olhos, mui parecidos com os da moça
ausente, sabiam fitar com igual tenacidade. Olhos que deixam vestígio; ele
recebeu-os e mandou os seus em troca — tudo pela intenção de mirar a outra, que
estava longe, e pela ideia de que o nome do bairro não era casual. Um dia
escreveu-lhe, ela respondeu; tudo consolações! Justo é dizer que ele suspendeu
a correspondência para o Rio de janeiro — ou para não tirar o caráter
consolador da correspondência local, ou para não gastar todo o papel.
Quando Alberta notou que as cartas tinham
cessado de todo, sentiu em si indignação contra o vil, e desligou-se da
promessa de casar com ele. Casou três meses depois com outro, com o Macedo —
aquele Macedo — o idiota Macedo. Pessoas que assistiram ao casamento, dizem que
nunca viram noivos mais risonhos nem mais felizes.
Ninguém viu Finoca entre os convidados, o que
fez pasmar as amigas comuns. Uma destas observou que Finoca, desde o colégio,
fora sempre muito invejosa. Outra disse que estava fazendo muito calor, e era
verdade.
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