Pobre Cardeal!
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
---
Martins Neto costumava dizer que era o homem
mais alegre do século, e toda a gente confirmava essa opinião. Ninguém lhe vira
nunca nenhuma sombra de melancolia. Já maduro, era ainda o melhor acepipe dos
jantares, um repositório de ditos picantes, anedotas joviais, repentes crespos
e crus; mas, além disso, que é a despesa exterior da alegria, ele a tinha em si
mesmo, no sangue e na vida. Pouco antes de morrer, em 1878, dizia ele a um
amigo íntimo, que lhe invejava o temperamento:
— Sou alegre, muito alegre; mas se disser a
você que a isto mesmo devo uma grande amargura...
Calou-se, deu duas voltas, e tornou ao amigo:
— Vou contar-lhe uma coisa secreta, como se
me confessasse a um padre. Sabe que fui um dos julgadores do famoso processo de
letras falsas João da Cruz, em 1851. Houve nessa sessão do júri muitas causas
importantes, que eu julguei com a inflexibilidade do costume, e condenei muita
gente, do que me não arrependo.
Na véspera de entrar o processo do João da
Cruz, estive com um tal capitão José Leandro, que morava na Rua da Carioca;
falamos do processo, das letras, de mil circunstâncias, que me esqueceram, e,
finalmente, do próprio João da Cruz, que o capitão José Leandro dizia conhecer
desde menino. O pai deste capitão foi um general português, que veio com o rei
em 1808, e aqui casou pouco depois com uma senhora de Cantagalo. José Leandro
era menino quando João da Cruz apareceu em casa dele, na Rua de Mata-cavalos;
lembrava-se que ele os festejava e adulava muito; lembrava-se também que ali
pelos fins de 1816 andava João da Cruz muito por baixo, beirando a miséria,
roupa de ano, amarela de uso, mal remendada...
E então, para mostrar-me que o João da Cruz
nascera com o gênio da fraude e da duplicidade, contou-me que um dia, em 1817,
estando ele e a mãe em casa, apareceu ele ali angustiado, desvairado, bradando:
— Pobre cardeal! pobre cardeal! Ah! minha
senhora D. Luísa, que grande desgraça! pobre cardeal!
D. Luísa levantou-se assustada, e
perguntou-lhe o que era, se falava do general...
— Não, acudiu João da Cruz, não é nada com o
digno marido de vossa excelência; falo do cardeal! pobre cardeal!
— Mas que cardeal?
João da Cruz tinha-se sentado, suspirando
grosso, esfregando os olhos com um trapo de lenço. A dona da casa respeitou-lhe
a dor, que parecia tão profunda e deixou-se estar de pé, esperando. Mas não
tardou que ouvissem no saguão da casa um rumor de espada; era o general que
entrava. Daí a pouco estava ele à porta da saleta, e dizia à mulher que acabara
de morrer o núncio, cardeal Caleppi; morrera de um ataque apoplético.
D. Luísa olhou espantada para ele e para João
da Cruz. Foi só então que o general o viu, a alguma distância, de pé, cheio de
respeito e melancolia.
— vossa excelência já sabe então da triste
notícia? Morreu um santo homem, santo e magnífico, sem desfazer nas pessoas que
me ouvem; ah! Um varão digno do céu!
— Entrou aqui, disse D. Luísa, há poucos
instantes, fora de si com a morte do cardeal... Eu nem me lembrava que cardeal
podia ser. Se ele tivesse dito que morreu o núncio...
— É verdade que entrei fora de mim; a tal
ponto, que pratiquei a grosseria de sentar-me diante de vossa excelência,
estando vossa excelência de pé; mas a dor desvaira. Acabavam de dar-me a
notícia, ali ao pé da Lagoa da Sentinela, e fiquei como não podem imaginar;
fiquei tonto, entrei aqui tonto.
O general sentou-se espantado; disse ao João
da Cruz que se sentasse também, e perguntou-lhe desde quando conhecia o
cardeal, e se era assim tão amigo dele. João da Cruz não respondeu logo
verbalmente; fez primeiro um gesto de afirmação e saudade; depois levou o trapo
aos olhos. D. Luísa, sentada ao lado do marido, olhava compassivamente para o
pobre homem. Este, afinal, confessou que era amigo do grande prelado, por
benefícios que recebera dele em Lisboa. Aqui não o procurou senão duas vezes:
logo que chegou, em 1814, e quando uma vez Sua Eminência estivera doente. Se
nunca falou disso ao honrado general, foi porque as humilhações por que passou
e lhe trouxeram o conhecimento e o trato do cardeal (que Deus tinha!) foram
amargas e dolorosas.
— Bem, mas agora...
— Agora direi tudo, se vossa excelência assim
o ordena.
E depois de limpar os olhos vermelhos:
— Foi em Lisboa, ali por 1806; tendo chegado
de Gênova e passando por alto uma gramática italiana, lembrou-me ensinar esta
língua. Confesso que pouco ou quase nada sabia dela; mas ensinando ia
aprendendo. Nisto fui denunciado como espião dos franceses, e metido na cadeia.
Imagine vossa excelência com que dor recebi semelhante afronta; felizmente,
provado o engano da denúncia, fui solto daí a poucos dias. Contente da justiça
que me fizeram, fiquei admirado da prontidão, e cá fora é que soube que esta
fora devida ao cardeal. Corri a agradecer-lhe o favor; mas Sua Eminência
negou-o uma e duas vezes, até que confessou a verdade. Desde que soube que a
denúncia era falsa correu logo ao ministro, para obter a minha soltura, e
obteve-a. Mas qual foi a causa de inspirar a Vossa Eminência tão singular benefício?
perguntei eu. Confessou-me que só porque soubera que eu ensinava italiano; só
por isso, e sem que me conhecesse, estimava-me.
— Ah! bem compreendo, disse o general.
— Foi o que me ligou a ele; fez-me depois
alguns obséquios, e quando eu lhe confessei que pouco italiano sabia, e que me
dei a ensiná-lo com o fim de propagar o amor de tão divino idioma, então ele
propôs-me dar algumas lições. Sobrevieram os acontecimentos de 1808. A corte
transportou-se ao Brasil, e o cardeal, no ato de embarcar, instou comigo para
que viesse também; recusei, dizendo-lhe que ia alistar-me no exército que devia
expulsar o pérfido invasor...
— Bravo! disse o general.
— Sua Eminência, não podendo arrancar-me
daquele propósito, despediu-se de mim com muitas lágrimas, e deu-me em
lembrança um exemplar de um poema em italiano, anotado por suas sagradas mãos,
livro que me foi roubado, tempos depois, por um soldado de Napoleão, um
miserável... Para que o queria ele? Naturalmente ia vendê-lo. Que preço podia
dar esse herege a um objeto de tanta valia?
João da Cruz disse aqui coisas duras ao
soldado e a Napoleão, chamando-os literalmente ladrões de estrada. Concluída a
descompostura, levou o trapo aos olhos; o general procurou consolá-lo.
— A morte é caminho de nós todos, disse ele,
e demais o núncio já estava com os seus setenta e tantos anos. Em todo o caso
aplaudo os seus sentimentos, são naturais de um bom coração.
— Muito obrigado, acudiu João da Cruz; pode
vossa excelência estar certo de que se me dissesse o contrário, eu duvidaria da
minha dor. E tanto prezo o seu conselho, que desejava saber se pareceria
afetação que eu deitasse luto por tão grande homem.
— Não me parece que seja...
— Não? Pois vou pô-lo; não direi a ninguém o
motivo, como digo aqui, pois é só para a alma dele, que me agradecerá... Pobre
cardeal... Vou ver...
Como o general se levantasse e fosse para
dentro, João da Cruz ficou um pouco vacilante, ao que parece; então a mãe de
José Leandro disse-lhe que ficasse para jantar.
— Agradeço... agradeço... Vou ver se arranjo...
se posso...
Disse isso, entre pausas e suspiros, olhando
para a roupa; mas D. Luísa pegou no filho pela mão e retirou-se da sala. João
da Cruz saiu; chegando ao saguão parou e não vendo o porteiro que estava no
pátio, ao fundo, e que depois contou o caso à família, fez um gesto de
desespero, dizendo:
— Esta gente ainda está mais defunta que o
cardeal.
José Leandro cuidou logo de ver as exéquias,
e pediu ao pai que o levasse; o pai noticiou à mulher que el-rei ordenara
grandes honras ao finado; o cadáver, embalsamado, ficaria em casa três dias,
celebrando-se diante dele missas e responsos. O enterro seria em Santo Antônio.
Não se falava de outra coisa. Mas nessa noite aconteceu adoecer o general;
sobre a madrugada foi sangrado; a moléstia agravou-se; era impossível levar o
filho às exéquias. A mãe não havia de abandonar o marido. José Leandro, criado
a mimos, teimava em querer ir, ainda que com um escravo; mas a mãe vendo que um
escravo não poderia arranjar ao filho algum bom lugar na igreja, pediu a João
da Cruz o obséquio de o levar a Santo Antônio.
— Obséquio? diga obrigação, minha senhora;
mas vossa excelência sabe... que... que... eu... não poderei... sem...
O general concordou que era constrangê-lo a
assistir ao enterro de um amigo que lhe deixara tantas saudades... E
voltando-se para o pequeno, prometeu levá-lo à procissão de São Sebastião, que
era muito bonita, e que ele nunca vira. José Leandro reprimiu as lágrimas;
ficava uma coisa pela outra; mas João da Cruz fez logo uma descrição vivíssima
das exéquias, disse que seriam tão pomposas ou mais que as da rainha D. Maria
I, no ano anterior; falou em cinco bispos, muitos frades, tochas e coches
reais, tropa... uma coisa única. O menino agarrou-se-lhe que o levasse. João da
Cruz não se negava a isso, uma vez que era vontade de pessoa tão distinta; nem
o cadáver de um amigo eminente era espetáculo de fazer recuar a uma alma rija.
Ao contrário, esse último encontro dava fortaleza ao coração...
— Bem, se não há dúvida... disse o general.
Lá isso, pedia licença para dizer que sim,
que havia sempre uma dúvida, uma triste dúvida, uma coisa que o vexava; não lhe
perguntasse o que era, não o podia dizer sem lágrimas... Mas se o general
insistisse em saber, ele fecharia a boca, falariam por ele aquelas miseráveis
calças de cor. Tinham sido pretas algum dia, mas o tempo... e tudo o mais,
tudo, até os rasgões dos sapatos. Era luto aquilo? era luto apropriado a um
príncipe da Igreja? etc., etc. Não, não; o menino que esperasse a procissão,
que fosse a ela com seu ilustre pai; deixasse as exéquias, por mais que fossem
de estrondo...
— De estrondo? interrompeu o pequeno.
E chorando, chorando, pediu outra vez que o
levasse. O pai na cama agitava-se, sem saber o que fizesse; era avaro, diziam,
e custava-lhe abrir mão de algumas patacas. Teimou com o filho, o filho com
ele, até que, desesperado:
— João da Cruz, disse o pai, entenda-se com
esta senhora, a respeito do luto; leve uma recomendação minha ao alfaiate e ao
sapateiro. Também precisa de chapéu? Há de haver algum servido cá em casa...
Ela que lho dê... Vão e deixem-me em paz!
Foi assim que ele arranjou a roupa nova, —
embora de luto — luto que fosse, era nova. José Leandro lembrava-se ainda das
exéquias, quando me contou este caso; tinha diante de si a figura pomposa de
João da Cruz, vendo e ouvindo tudo com interesse de pessoa estranha.
Ensinava-lhe o nome de tudo, cerimônias e alfaias, os dois bispos, que eram
cinco ou seis, mas ele só se lembrava do de Angola, e do de Pernambuco, e os
das ordens religiosas, e os de alguns cônegos. De quando em quando esticava o
braço, e mirava-se. Com o andar das horas ficou até alegre. Cá fora, ladeira
abaixo, vinha falando da “bonita festa” e recitando-lhe pedaços inteiros do
sermão. No Largo da Carioca entraram na sege que os esperava; à porta de casa,
é que João da Cruz pôs outra vez os óculos da melancolia, desceu trôpego e
entrou.
Não imagina como achei esta anedota
engraçada; José Leandro contava bem, é certo, mas toda essa história pareceu-me
engraçadíssima. Ria-me a não poder mais, e repetia a exclamação que fez render
a roupa ao outro. Pobre cardeal! Já entendeste que ele nunca trocou uma só
palavra com o núncio, e se o viu algum dia, foi na igreja ou de coche; mas
mentia com tanto aprumo, a invenção era tão graciosa e pronta, a peta tão bem
concertada, aproveitados todos os incidentes, que era difícil não cair na
esparrela. Mas, realmente, a coisa tinha graça; agora mesmo, após tantos anos,
acho-lhe muito pico. Mas, vamos ao resto; eis aqui o que eu só confiaria a Deus
ou a você.
No dia seguinte fui para o júri, com a
anedota fresca de memória, até porque sonhara com ela, tanto que acordei rindo.
Cheguei a tempo, e fui logo sorteado para o conselho de jurados. Quando vi o
réu, não pude deixar de sorrir. Era aquilo mesmo, devia ter sido assim no dia
do óbito do núncio; cabeça um pouco torta, olhos mortificados e baixos, tipo de
astúcia. Não parecia velho, apesar dos anos longos e desvairados; devia contar
uns sessenta e tantos, perto de setenta. Trazia raspado o lábio superior, e
toda a mais barba, grisalha e fina, dava-lhe ao rosto muita gravidade. De
quando em quando tomava rapé; reparei logo que a boceta era de ouro.
O interrogatório durou cerca de quarenta
minutos. João da Cruz respondeu claro e firme, negou a autoria da falsificação,
explicou algumas contradições que lhe assacaram. Confesso-lhe que ouvi as
respostas dele com interesse e sem desprazer. De quando em quando a anedota do
cardeal vinha dar uma nota graciosa à situação. Imaginava-o então em
Mata-cavalos, no tal dia, em frente do general, referindo as petas de Lisboa,
as desculpas, as lágrimas aparentes, até o desfecho. Lá, engenhoso era ele, e
divertido. Não pude atender à leitura do processo; ouvi algumas páginas, depois
disse a mim mesmo que os autos eram grossos, e a leitura fastienta...
Não era isto; era a narração dos feitos do
réu que começava a constranger-me. Para distrair-me entrei a mirar a beca do
advogado, a cara dos meus colegas do conselho, a cabeleira do escrivão, as
suíças do juiz, e finalmente o retrato do imperador, que pendia da parede. Aqui
foi maior a distração, porque cuidei de recordar as festas da coroação, tanto
as públicas como as particulares, entre estas um banquete a que fui, e no qual
ouvi recitar duas odes bem bonitas. Quis recompô-las e não pude; trabalhei de
memória, e fui arrancando ora um verso, ora outro, alguns truncados, e quando
dei por mim, acabara a leitura.
Ouvi depois a acusação, que me deixou em
alternativas de acordo e desacordo; veio, porém, a defesa e equilibrou-me o
espírito. Minha alma sentia grelar um grão de simpatia, ou outra coisa, que
desafiava a causa do João da Cruz. Não podia olhar para ele sem sorrir; de uma
vez, para não rir alto, sufoquei uma tosse com o lenço. A exposição do juiz
durou pouco mais de quarto de hora. Os autos foram entregues ao conselho e nós
saímos da sala.
Lá, na sala secreta, os debates foram longos
e complicados, mas não tanto como na minha consciência; aqui é que era preciso
decidir. A justiça dizia-me que condenasse, a simpatia pedia-me que absolvesse,
e o diabo — não podia ser outra pessoa — o diabo clama do fundo do meu ser
estas palavras: “Pobre Cardeal! Ah! minha senhora D. Luíza!” que grande
desgraça! Pobre Cardeal! E a minha consciência ria, porque era amiga de rir. Já
não negava o crime, mas punha na outra concha da balança a vergonha pública, e
a prisão longa; depois, os velhos anos do pobre diabo...
Enfim, contados os votos, acharam-se
divididos seis que sim, seis que não; ia decidir o voto de Minerva, e o réu foi
absolvido. Saí contente de mim mesmo; se votasse contra, teria feito inclinar a
balança, e era certa a condenação. Saí alegre; não contei nada do que se
passara dentro de mim, senão a você agora; mas a anedota do cardeal lá foi
correr mundo.
E foi ela que trouxe a absolvição de João da
Cruz; foi essa empulhação de 1817, jovial e pífia, que deu ao réu de 1851 a minha simpatia e o
meu voto, não por ser pífia, mas por ser jovial. Os anos, porém, foram
passando, e agora ainda que sou o homem mais alegre do século, acho em mim este
ponto negro de melancolia. Quem sabe? Pode ser que este erro me condene no
outro mundo.
— Tudo são mistérios indecifráveis, respondeu
o amigo íntimo do Martins Neto. Os fatos e os tempos ligam-se por fios
invisíveis. Suponha que o João da Cruz não tem empulhado o general em 1817, não
teria sido absolvido pelo seu voto em 1851, você não teria uma ponta de
remorso, nem eu este conto.
— Pobre cardeal!
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...