Pílades e Orestes
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Quintanilha engendrou Gonçalves. Tal era a
impressão que davam os dois juntos, não que se parecessem. Ao contrário,
Quintanilha tinha o rosto redondo, Gonçalves comprido, o primeiro era baixo e
moreno, o segundo alto e claro, e a expressão total divergia inteiramente.
Acresce que eram quase da mesma idade. A ideia da paternidade nascia das
maneiras com que o primeiro tratava o segundo; um pai não se desfaria mais em
carinhos, cautelas e pensamentos.
Tinham estudado juntos, morado juntos, e eram
bacharéis do mesmo ano. Quintanilha não seguiu advocacia nem magistratura,
meteu-se na política; mas, eleito deputado provincial em 187... cumpriu o prazo
da legislatura e abandonou a carreira. Herdara os bens de um tio, que lhe davam
de renda cerca de trinta contos de réis. Veio para o seu Gonçalves, que
advogava no Rio de Janeiro.
Posto que abastado, moço, amigo do seu único
amigo, não se pode dizer que Quintanilha fosse inteiramente feliz, como vais
ver. Ponho de lado o desgosto que lhe trouxe a herança com o ódio dos parentes;
tal ódio foi que ele esteve prestes a abrir mão dela, e não o fez porque o
amigo Gonçalves, que lhe dava ideias e conselhos, o convenceu de que semelhante
ato seria rematada loucura.
— Que culpa tem você que merecesse mais a seu
tio que os outros parentes? Não foi você que fez o testamento nem andou a
bajular o defunto, como os outros. Se ele deixou tudo a você, é que o achou
melhor que eles; fique-se com a fortuna, que é a vontade do morto, e não seja
tolo.
Quintanilha acabou concordando. Dos parentes
alguns buscaram reconciliar-se com ele, mas o amigo mostrou-lhe a intenção
recôndita dos tais, e Quintanilha não lhes abriu a porta. Um desses, ao vê-lo
ligado com o antigo companheiro de estudos, bradava por toda a parte:
— Aí está, deixa os parentes para se meter
com estranhos; há de ver o fim que
leva.
Ao saber disto, Quintanilha correu a contá-lo
a Gonçalves, indignado. Gonçalves sorriu, chamou-lhe tolo e aquietou-lhe o
ânimo; não valia a pena irritar-se por ditinhos.
— Uma só coisa desejo, continuou, é que nos
separemos, para que se não diga...
— Que se não diga o quê? É boa! Tinha que
ver, se eu passava a escolher as minhas amizades conforme o capricho de alguns
peraltas sem-vergonha!
— Não fale assim, Quintanilha. Você é
grosseiro com seus parentes.
— Parentes do diabo que os leve! Pois eu hei
de viver com as pessoas que me forem designadas por meia dúzia de velhacos que
o que querem é comer-me o dinheiro? Não, Gonçalves; tudo o que você quiser,
menos isso. Quem escolhe os meus amigos sou eu, é o meu coração. Ou você está...
está aborrecido de mim?
— Eu? Tinha graça.
— Pois então?
— Mas é...
— Não é tal!
A vida que viviam os dois era a mais unida
deste mundo. Quintanilha acordava, pensava no outro, almoçava e ia ter com ele.
Jantavam juntos, faziam alguma visita, passeavam ou acabavam a noite no teatro.
Se Gonçalves tinha algum trabalho que fazer à noite, Quintanilha ia ajudá-lo
como obrigação; dava busca aos textos de lei, marcava-os, copiava-os, carregava
os livros. Gonçalves esquecia com facilidade, ora um recado, ora uma carta,
sapatos, charutos, papéis. Quintanilha supria-lhe a memória. Às vezes, na Rua
do Ouvidor, vendo passar as moças, Gonçalves lembrava-se de uns autos que
deixara no escritório. Quintanilha voava a buscá-los e tornava com eles, tão
contente que não se podia saber se eram autos, se a sorte grande; procurava-o
ansiosamente com os olhos, corria, sorria, morria de fadiga.
— São estes?
— São; deixa ver, são estes mesmos. Dá cá.
— Deixa, eu levo.
A princípio, Gonçalves suspirava:
— Que maçada que dei a você!
Quintanilha ria do suspiro com tão bom humor
que o outro, para não o molestar, não se acusou de mais nada; concordou em
receber os obséquios. Com o tempo, os obséquios ficaram sendo puro ofício.
Gonçalves dizia ao outro: “Você hoje há de lembrar-me isto e aquilo”. E o outro
decorava as recomendações, ou escrevia-as, se eram muitas. Algumas dependiam de
horas; era de ver como o bom Quintanilha suspirava aflito, à espera que
chegasse tal ou tal hora para ter o gosto de lembrar os negócios ao amigo. E
levava-lhe as cartas e papéis, ia buscar as respostas, procurar as pessoas,
esperá-las na estrada de ferro, fazia viagens ao interior. De si mesmo
descobria-lhe bons charutos, bons jantares, bons espetáculos. Gonçalves já não
tinha liberdade de falar de um livro novo, ou somente caro, que não achasse um
exemplar em casa.
— Você é um perdulário, dizia-lhe em tom
repreensivo.
— Então gastar com letras e ciências é botar
fora? É boa! concluía o outro.
No fim do ano quis obrigá-lo a passar fora as
férias. Gonçalves acabou aceitando, e o prazer que lhe deu com isto foi enorme.
Subiram a Petrópolis. Na volta, serra abaixo, como falassem de pintura,
Quintanilha advertiu que não tinham ainda uma tela com o retrato dos dois, e mandou
fazê-la. Quando a levou ao amigo, este não pôde deixar de lhe dizer que não
prestava para nada. Quintanilha ficou sem voz.
— É uma porcaria, insistiu Gonçalves.
— Pois o pintor disse-me...
— Você não entende de pintura, Quintanilha, e
o pintor aproveitou a ocasião para meter a espiga. Pois isto é cara decente? Eu
tenho este braço torto?
— Que ladrão!
— Não, ele não tem culpa, fez o seu negócio;
você é que não tem o sentimento da arte, nem prática, e espichou-se
redondamente. A intenção foi boa, creio...
— Sim, a intenção foi boa.
— E aposto que já pagou?
— Já.
Gonçalves abanou a cabeça, chamou-lhe
ignorante e acabou rindo. Quintanilha, vexado e aborrecido, olhava para a tela,
até que sacou de um canivete e rasgou-a de alto a baixo. Como se não bastasse
esse gesto de vingança, devolveu a pintura ao artista com um bilhete em que lhe
transmitiu alguns dos nomes recebidos e mais o de asno. A vida tem muitas de
tais pagas. Demais, uma letra de Gonçalves que se venceu dali a dias e que este
não pôde pagar, veio trazer ao espírito de Quintanilha uma diversão. Quase
brigaram; a ideia de Gonçalves era reformar a letra; Quintanilha, que era o
endossante, entendia não valer a pena pedir o favor por tão escassa quantia (um
conto e quinhentos), ele emprestaria o valor da letra, e o outro que lhe
pagasse, quando pudesse. Gonçalves não consentiu e fez-se a reforma. Quando, ao
fim dela, a situação se repetiu, o mais que este admitiu foi aceitar uma letra
de Quintanilha, com o mesmo juro.
— Você não vê que me envergonha, Gonçalves?
Pois eu hei de receber juro de você?...
— Ou recebe, ou não fazemos nada.
— Mas, meu querido...
Teve que concordar. A união dos dois era tal
que uma senhora chamava-lhes os “casadinhos de fresco”, e um letrado, Pílades e
Orestes. Eles riam, naturalmente, mas o riso de Quintanilha trazia alguma coisa
parecida com lágrimas: era, nos olhos, uma ternura úmida. Outra diferença é que
o sentimento de Quintanilha tinha uma nota de entusiasmo, que absolutamente
faltava ao de Gonçalves; mas, entusiasmo não se inventa. É claro que o segundo
era mais capaz de inspirá-lo ao primeiro do que este a ele. Em verdade,
Quintanilha era mui sensível a qualquer distinção; uma palavra, um olhar
bastava a acender-lhe o cérebro. Uma pancadinha no ombro ou no ventre, com o
fim de aprová-lo ou só acentuar a intimidade, era para derretê-lo de prazer.
Contava o gesto e as circunstâncias durante dois e três dias.
Não era raro vê-lo irritar-se, teimar,
descompor os outros. Também era comum vê-lo rir-se; alguma vez o riso era
universal, entornava-se-lhe da boca, dos olhos, da testa, dos braços, das
pernas, todo ele era um riso único. Sem ter paixões, estava longe de ser
apático.
A letra sacada contra Gonçalves tinha o prazo
de seis meses. No dia do vencimento, não só não pensou em cobrá-la, mas
resolveu ir jantar a algum arrabalde para não ver o amigo, se fosse convidado à
reforma. Gonçalves destruiu todo esse plano; logo cedo, foi levar-lhe o
dinheiro. O primeiro gesto de Quintanilha foi recusá-lo, dizendo-lhe que o
guardasse, podia precisar dele; o devedor teimou em pagar e pagou.
Quintanilha acompanhava os atos de Gonçalves;
via a constância do seu trabalho, o zelo que ele punha na defesa das demandas,
e vivia cheio de admiração. Realmente, não era grande advogado, mas, na medida
das suas habilitações, era distinto.
— Você por que não se casa? perguntou-lhe um
dia; um advogado precisa casar.
Gonçalves respondia rindo. Tinha uma tia,
única parenta, a quem ele queria muito, e que lhe morreu, quando eles iam em
trinta anos. Dias depois, dizia ao amigo:
— Agora só me resta você.
Quintanilha sentiu os olhos molhados, e não
achou que lhe respondesse. Quando se lembrou de dizer que “iria até à morte”
era tarde. Redobrou então de carinhos, e um dia acordou com a ideia de fazer
testamento. Sem revelar nada ao outro, nomeou-o testamenteiro e herdeiro
universal.
— Guarde-me este papel, Gonçalves, disse-lhe
entregando o testamento. Sinto-me forte, mas a morte é fácil, e não quero
confiar a qualquer pessoa as minhas últimas vontades.
Foi por esse tempo que sucedeu um caso que
vou contar.
Quintanilha tinha uma prima segunda, Camila,
moça de vinte e dois anos, modesta, educada e bonita. Não era rica; o pai, João
Bastos, era guarda-livros de uma casa de café. Haviam brigado por ocasião da
herança; mas, Quintanilha foi ao enterro da mulher de João Bastos, e este ato
de piedade novamente os ligou. João Bastos esqueceu facilmente alguns nomes
crus que dissera do primo, chamou-lhe outros nomes doces, e pediu-lhe que fosse
jantar com ele. Quintanilha foi e tornou a ir. Ouviu ao primo o elogio da
finada mulher; numa ocasião em que Camila os deixou sós, João Bastos louvou as
raras prendas da filha, que afirmava haver recebido integralmente a herança
moral da mãe.
— Não direi isto nunca à pequena, nem você
lhe diga nada. É modesta, e, se começarmos a elogiá-la, pode perder-se. Assim,
por exemplo, nunca lhe direi que é tão bonita como foi a mãe, quando tinha a
idade dela; pode ficar vaidosa. Mas a verdade é que é mais, não lhe parece? Tem
ainda o talento de tocar piano, que a mãe não possuía.
Quando Camila voltou à sala de jantar,
Quintanilha sentiu vontade de lhe descobrir tudo, conteve-se e piscou o olho ao
primo. Quis ouvi-la ao piano; ela respondeu, cheia de melancolia:
— Ainda não, há apenas um mês que mamãe
faleceu, deixe passar mais tempo. Demais, eu toco mal.
— Mal?
— Muito mal.
Quintanilha tornou a piscar o olho ao primo,
e ponderou à moça que a prova de tocar bem ou mal só se dava ao piano. Quanto
ao prazo, era certo que apenas passara um mês; todavia era também certo que a
música era uma distração natural e elevada. Além disso, bastava tocar um pedaço
triste. João Bastos aprovou este modo de ver e lembrou uma composição elegíaca.
Camila abanou a cabeça.
— Não, não, sempre é tocar piano; os vizinhos
são capazes de inventar que eu toquei uma polca.
Quintanilha achou graça e riu. Depois
concordou e esperou que os três meses fossem passados. Até lá, viu a prima
algumas vezes, sendo as três últimas visitas mais próximas e longas. Enfim,
pôde ouvi-la tocar piano, e gostou. O pai confessou que, ao princípio, não
gostava muito daquelas músicas alemãs; com o tempo e o costume achou-lhes
sabor. Chamava à filha “a minha alemãzinha”, apelido que foi adotado por
Quintanilha apenas modificado para o plural: “a nossa alemãzinha”. Pronomes
possessivos dão intimidade; dentro em pouco, ela existia entre os três, — ou
quatro, se contarmos Gonçalves, que ali foi apresentado pelo amigo; — mas
fiquemos nos três.
Que ele é coisa já farejada por ti, leitor
sagaz. Quintanilha acabou gostando da moça. Como não, se Camila tinha uns
longos olhos mortais? Não é que os pousasse muita vez nele, e, se o fazia, era
com tal ou qual constrangimento, a princípio, como as crianças que obedecem sem
vontade às ordens do mestre ou do pai; mas pousava-os, e eles eram tais que,
ainda sem intenção, feriam de morte. Também sorria com frequência e falava com
graça. Ao piano, e por mais aborrecida que tocasse, tocava bem. Em suma, Camila
não faria obra de impulso próprio, sem ser por isso menos feiticeira.
Quintanilha descobriu um dia de manhã que sonhara com ela a noite toda, e à
noite que pensara nela todo o dia, e concluiu da descoberta que a amava e era
amado. Tão tonto ficou que esteve prestes a imprimi-lo nas folhas públicas.
Quando menos, quis dizê-lo ao amigo Gonçalves e correu ao escritório deste. A
afeição de Quintanilha complicava-se de respeito e temor. Quase a abrir a boca,
engoliu outra vez o segredo. Não ousou dizê-lo nesse dia nem no outro. Antes
dissesse; talvez fosse tempo de vencer a campanha. Adiou a revelação por uma
semana. Um dia foi jantar com o amigo, e, depois de muitas hesitações,
disse-lhe tudo; amava a prima e era amado.
— Você aprova, Gonçalves?
Gonçalves empalideceu, — ou, pelo menos,
ficou sério; nele a seriedade confundia-se com a palidez. Mas, não;
verdadeiramente ficou pálido.
— Aprova? repetiu Quintanilha.
Após alguns segundos, Gonçalves ia abrir a
boca para responder, mas fechou-a de novo, e fitou os olhos “em ontem”, como
ele mesmo dizia de si, quando os estendia ao longe. Em vão Quintanilha teimou
em saber o que era, o que pensava, se aquele amor era asneira. Estava tão
acostumado a ouvir-lhe este vocábulo que já lhe não doía nem afrontava, ainda
em matéria tão melindrosa e pessoal. Gonçalves tornou a si daquela meditação,
sacudiu os ombros, com ar desenganado, e murmurou esta palavra tão surdamente
que o outro mal a pôde ouvir:
— Não me pergunte nada; faça o que quiser.
— Gonçalves, que é isso? perguntou
Quintanilha, pegando-lhe nas mãos, assustado.
Gonçalves soltou um grande suspiro, que, se
tinha asas, ainda agora estará voando. Tal foi, sem esta forma paradoxal, a
impressão de Quintanilha. O relógio da sala de jantar bateu oito horas,
Gonçalves alegou que ia visitar um desembargador, e o outro despediu-se.
Na rua, Quintanilha parou atordoado. Não
acabava de entender aqueles gestos, aquele suspiro, aquela palidez, todo o
efeito misterioso da notícia dos seus amores. Entrara e falara, disposto a
ouvir do outro um ou mais daqueles epítetos costumados e amigos, idiota, crédulo, paspalhão, e não ouviu
nenhum. Ao contrário, havia nos gestos de Gonçalves alguma coisa que pegava com
o respeito. Não se lembrava de nada, ao jantar, que pudesse tê-lo ofendido; foi
só depois de lhe confiar o sentimento novo que trazia a respeito da prima que o
amigo ficou acabrunhado.
“Mas, não pode ser, pensava ele; o que é que
Camila tem que não possa ser boa esposa?”
Nisto gastou, parado, defronte da casa, mais
de meia hora. Advertiu então que Gonçalves não saíra. Esperou mais meia hora,
nada. Quis entrar outra vez, abraçá-lo, interrogá-lo... Não teve forças; enfiou
pela rua fora, desesperado. Chegou à casa de João Bastos, e não viu Camila;
tinha-se recolhido, constipada. Queria justamente contar-lhe tudo, e aqui é
preciso explicar que ele ainda não se havia declarado à prima. Os olhares da
moça não fugiam dos seus; era tudo, e podia não passar de faceirice. Mas o
lance não podia ser melhor para clarear a situação. Contando o que se passara
com o amigo, tinha o ensejo de lhe fazer saber que a amava e ia pedi-la ao pai.
Era uma consolação no meio daquela agonia; o acaso negou-lha, e Quintanilha
saiu da casa, pior do que entrara. Recolheu-se à sua.
Não dormiu antes das duas horas da manhã, e
não foi para repouso, senão para agitação maior e nova. Sonhou que ia a
atravessar uma ponte velha e longa, entre duas montanhas, e a meio caminho viu
surdir debaixo um vulto e fincar os pés defronte dele. Era Gonçalves. “Infame,
disse este com os olhos acesos, por que me vens tirar a noiva de meu coração, a
mulher que eu amo e é minha? Toma, toma logo o meu coração, é mais completo.” E
com um gesto rápido abriu o peito, arrancou o coração e meteu-lho na boca.
Quintanilha tentou pegar da víscera amiga e repô-la no peito de Gonçalves; foi
impossível. Os queixos acabaram por fechá-la. Quis cuspi-la, e foi pior; os
dentes cravaram-se no coração. Quis falar, mas vá alguém falar com a boca cheia
daquela maneira.
Afinal o amigo ergueu os braços e
estendeu-lhe as mãos com o gesto de maldição que ele vira nos melodramas, em
dias de rapaz; logo depois, brotaram-lhe dos olhos duas imensas lágrimas, que
encheram o vale de água, atirou-se abaixo e desapareceu. Quintanilha acordou
sufocado.
A ilusão do pesadelo era tal que ele ainda
levou as mãos à boca, para arrancar de lá o coração do amigo. Achou a língua
somente, esfregou os olhos e sentou-se. Onde estava? Que era? E a ponte? E o
Gonçalves? Voltou a si de todo, compreendeu e novamente se deitou, para outra
insônia, menor que a primeira, é certo; veio a dormir às quatro horas.
De dia, rememorando toda a véspera, realidade
e sonho, chegou à conclusão de que o amigo Gonçalves era seu rival, amava a
prima dele, era talvez amado por
ela...
Sim, sim, podia ser. Quintanilha passou duas horas cruéis. Afinal pegou em si e
foi ao escritório de Gonçalves, para saber tudo de uma vez; e, se fosse
verdade, sim, se fosse verdade...
Gonçalves redigia umas razões de embargo.
Interrompeu-as para fitá-lo um instante, erguer-se, abrir o armário de ferro,
onde guardava os papéis graves, tirar de lá o testamento de Quintanilha, e
entregá-lo ao testador.
— Que é isto?
— Você vai mudar de estado, respondeu
Gonçalves, sentando-se à mesa.
Quintanilha sentiu-lhe lágrimas na voz; assim
lhe pareceu, ao menos. Pediu-lhe que guardasse o testamento; era o seu
depositário natural. Instou muito; só lhe respondia o som áspero da pena
correndo no papel. Não corria bem a pena, a letra era tremida, as emendas mais
numerosas que de costume, provavelmente as datas erradas. A consulta dos livros
era feita com tal melancolia que entristecia o outro. Às vezes, parava tudo,
pena e consulta, para só ficar o olhar fito “em ontem”.
— Entendo, disse Quintanilha subitamente; ela
será tua.
— Ela quem? quis perguntar Gonçalves, mas já
o amigo voava escada abaixo, como uma flecha, e ele continuou as suas razões de
embargo.
Não se adivinha todo o resto; basta saber o
final. Nem se adivinha nem se crê; mas a alma humana é capaz de esforços
grandes, no bem como no mal. Quintanilha fez outro testamento, legando tudo à
prima, com a condição de desposar o amigo. Camila não aceitou o testamento, mas
ficou tão contente, quando o primo lhe falou das lágrimas de Gonçalves, que
aceitou Gonçalves e as lágrimas. Então Quintanilha não achou melhor remédio que
fazer terceiro testamento legando tudo ao amigo.
O final da história foi dito em latim.
Quintanilha serviu de testemunha ao noivo, e de padrinho aos dois primeiros
filhos. Um dia em que, levando doces para os afilhados, atravessava a Praça Quinze
de novembro, recebeu uma bala revoltosa (1893) que o matou quase
instantaneamente. Está enterrado no cemitério de São João Batista; a sepultura
é simples, a pedra tem um epitáfio que termina com esta pia frase: “Orai por
ele!” É também o fecho da minha história. Orestes vive ainda, sem os remorsos
do modelo grego. Pílades é agora o personagem mudo de Sófocles. Orai por ele!
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Imagem:
Revista Sino Azul. Edição nº 119 - Ano: 1937. Biblioteca Nacional Digital - Hemeroteca.
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