Piá não sofre? Sofre
(Os Contos de Belazarte)
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Belazarte me contou:
Você inda está lembrado da
Teresinha? aquela uma que assassinou dois homens por tabela, os manos Aldo e
Tino, e ficou com dois filhos quando o marido foi pra correição?... Parece que o
sacrifício do marido tirou o mau-olhado que ela tinha: foi desinfeliz como
nenhuma, porém ninguém mais assassinou por causa dela, ninguém mais penou. Só
que o Alfredo lá ficou no palácio chique da Penitenciária, ruminando os vinte
anos de prisão que a companheira fatalizada tinha feito ele engolir. Injustiça,
amargura, desejo... tantas coisas que muito bucho não sabe digerir com
paciência, resultado: o Alfredo teve uma dessas indigestões tamanhas de
desespero que ficou dos hóspedes mais incômodos da Penitenciária. Ninguém
gostava dele, e o amargoso atravessava o tempo do castigo num areião difícil e
sem fim de castiguinhos. Estou perdendo tempo com ele.
A Teresinha sofria, coitada!
ainda semiboa no corpo e com a pabulagem de muitos querendo intimidades com ela
ao menos por uma noite paga. Recusou, de primeiro pensando no Alfredo gostado,
em seguida pensando no Alfredo assassino. Estava já no quase, porém vinha
sempre aquela ideia do Alfredo saindo da correição com uma faca nova pra
destripá-la. E a virtude se conservava num susto frio, sem nenhum gosto de
existir. Teresinha voltava pra casa com uma raiva desempregada, que logo
descarregava na primeira coisa mais frouxa que ela. Enxergava a mãe morrendo em
pé por causa da velhice temporã, pondo cinco minutos pra recolher uma ceroula
do coaral, pronto: atirava a trouxa de roupa-suja na velha:
— A senhora é capaz que vai
dormir com a ceroula na mão!
Entrava. Podia-se chamar de casa
aquilo! Era um rancho de tropeiro onde ninguém não mora, de tão sujo. Dois aspectos
de cadeira, a mesa, a cama. No assoalho havia mais um colchão, morado pelas baratas
que de noite dançavam na cara da velha o torê natural dos bichinhos desta vida.
No outro quarto ninguém dormia.
Ficou feito cozinha dessa família passando muitas vezes dois dias sem fósforo
acendido. Porque fósforo aceso quer dizer carvão no fogãozinho portátil e algum
desses alimentos de se cozinhar. E muitas vezes não havia alimento de se
cozinhar... Mas isso não fazia mal pro dicionário da Teresinha e da mãe, fogareiro
não estava ali? E o dicionário delas dera pra aqueles estreitos metros cúbicos
de ar mofado o nome estapafúrdio de cozinha.
Nessa espécie de tapera a moça
vivia com a mãe e o filhote de sobra. De sobra em todos os sentidos, sim.
Sobrava porque afinal amor pra Teresinha, meu Deus! vivendo entre injustiças de
toda a sorte, desejando homem pro corpo e não tendo, se esquecendo do Alfredo
gostado pelo Alfredo ameaçando e já com morte na consciência... E só tendo na
mão consolada pela água pura, ceroulas, calças, meias com mais de sete dias de
corpo suado... E além do mais, odiando uns fregueses sempre devendo a semana
retrasada... Tudo isso a Teresinha aguentava. E pra tampar duma vez todos os
vinhos do amor, inda por cima chegava a peste da sogra amaldiçoada, odiada mas
desejada por causa dos dez mil-réis deixados mensalmente ali. A figlia dum cane
vinha, emproada porque tinha de seu aí pra uns trinta contos, nem sei, e
desbaratava com ela por um nadinha.
Podia ter amor uma mulher já
feita, com trinta anos de seca no prazer, corpo cearense e alma ida-se embora
desde muito!... E o Paulino, faziam já quase quatro anos, dos oito meses de
vida até agora, que não sabia o que era calor de peito com seio, dois braços
apertando a gente, uma palavra “figliuolo mio” vinda em cima dessa gostosura, e
a mesma boca enfim se aproximando da nossa cara, se ajuntando num chupão leve
que faz bulha tão doce, beijo de nossa mãe...
Paulino sobrava naquela casa.
E sobrava tanto mais, que o
esperto do maninho mais velho, quando viu que tudo ia mesmo por água a baixo,
teve um anjo-da-guarda caridoso que depositou na língua do felizardo o micróbio
do tifo. Micróbio foi pra barriguinha dele, agarrou tendo filho e mais filho a
milhões por hora, e nem passaram duas noites, havia lá por dentro um footing
tal da microbiada marchadeira, que o asfaltinho das tripas se gastou. E o
desbatizado foi pro limbo dos pagãos sem culpa. Sobrou Paulino.
É lógico que ele não podia inda
saber que estava sobrando assim tanto neste mundo duro, porém sabia muito bem
que naquela casa não sobrava nada pra comer. Foi crescendo na fome, a fome era
o alimento dele. Sem pôr consciência nos mistérios do corpo, ele acordava
assustado. Era o anjo... que anjo-da-guarda! era o anjo da malvadeza que
acordava Paulino altas horas pra ele não morrer. O desgraçadinho abria os olhos
na escuridão cheirando ruim do quarto, e inda meio que percebia que estava se
devorando por dentro. De primeiro ele chorava.
— Stá zito, guaglion!
Que “stá zito” nada! Fome vinha
apertando... Paulino se levantava nas pernas de arco, e balanceando chegava
afinal junto à cama da mãe. Cama... A cama grande ela vendeu quando esteve uma
vez com a corda na garganta por causa do médico pedindo aquilo ou vinte
bagarotes pela cura do pé arruinado. Deu os vinte vendendo a cama. Cortou o
colchão pelo meio e botou a metade sobre aqueles três caixões. Essa era a cama.
Teresinha acordava da fadiga com
a mãozinha do filho batendo na cara dela. Ficava desesperada de raiva. Atirava
a mão no escuro, acertasse onde acertasse, nos olhos, na boca-do-estômago,
pláa!... Paulino rolava longe com uma vontade legítima de botar a boca no
mundo. Porém o corpo lembrava duma feita em que a choradeira fizera o salto do
tamanco vir parar mesmo na boca dele, perdia o gosto de berrar. Ficava
choramingando tão manso que até embalava o sono da Teresinha. Pequenininho,
redondo, encolhido, talqualmente tatuzinho de jardim.
O sofrimento era tanto que
acabava desprezando os pinicões da fome, Paulino adormecia de dor. De
madrugada, o tempo esfriando acordava o corpo dele outra vez. Meio esquecido,
Paulino espantava de se ver dormindo no assoalho, longe do colchão da vó.
Estava com uma dorzinha no ombro, outra dorzinha no joelho, outra dorzinha na
testa, direito no lugar encostado no chão. Percebia muito pouco as dorzinhas,
por causa da dor guaçu do frio. Engatinhava medroso, porque a escureza estava
já toda animada com as assombrações da aurora, abrindo e fechando o olho das
frestas. Espantava as baratas e se aninhava no calor ilusório dos ossos da avó.
Não dormia mais.
Afinal, ali pelas seis horas, já
familiarizado com a vida por causa dos padeiros, dos leiteiros, dos homens
cheios de comidas que passavam lá longe, um calor custoso nascia no corpo de
Paulino. Porém a mãe também já estava acordando com as bulhas da vida. Sentada,
vibrando com a sensualidade matinal que bota a gente louco de vontade, a
Teresinha quase se arrebentava, apertando os braços contra a peitaria, o ventre
e tudo, forçando tanto uma perna contra a outra que sentia uma dor nos rins.
Nascia nela esse ódio impaciente e sem destino, que vem da muita virtude
conservada a custo de muita miséria, virtude que ela mesma estava certa, mais
dia menos dia tinha de se acabar. Procurava o tamanco, dando logo o estrilo com
a mãe, “si não sabia que não era mais hora de estar na cama”, que fosse botar
água na tina, etc.
Então Paulino, antes das duas
mulheres, abandonava o calor nascente do corpo. Ia já rondar a cozinha porque
estava chegando o momento mais feliz da vida dele: o pedaço de pão. E que
domingo pra Paulino quando, porque um freguês pagou, porque a sogra apareceu,
coisa assim, além do pão, bebiam café com açúcar!... Chupava depressa,
queimando a língua e os beicinhos brancos, aquela água quente, sublime de
gostosa por causa duma pitadinha de café. E saía comer o pão lá fora.
Na frente da casa não, era lá que
ficavam a torneira, as tinas e o coaral. As mulheres estavam fazendo suas
lavagens de roupa e era ali na piririca: briga e descompostura o tempo todo.
Quem pagava era o reinação do Paulino. Acabava sempre com um pão mal comido e
algum cocre de inhapa bem no alto do coco, doendo fino.
Deixou de ir para lá. Abria a
porta só encostada da cozinha, descia o degrau, ia correcorrendo se rir pra
alegria do frio companheiro, por entre os tufos de capim e as primeiras moitas
de carrapicho. Esse matinho atrás da casa era a floresta. Ali Paulino curtia as
penas sem disfarce. Sentado na terra ou dando com o calcanhar nos olhos dos
formigueiros, principiava comendo. De repente quase caía levantando a perninha,
ai! do chão, pra matar a saúva ferrada no tornozelinho de bico. Erguia o pão
caído e recomeçava o almoço, achando graça no requetreque que a areia ficada no
pão, ganzava agora nos dentinhos dele.
Mas não esquecia da saúva não.
Pão acabado, surgia, distraindo a fome nova, o guerreiro crila. Procurava uma
lasca de pau, ia caçar formigas no matinho. Afinal, matinho não muito pequeno
porque dava atrás na várzea, e não havia senão um lembrete de cerca fechando o
terreno. Mas nunca Paulino penetrou na várzea que era grande demais pra ele.
Lhe bastava aquele matinho gigante, sem planta com nome, onde o sol mais
preguiça nunca deixava de entrar.
Graveto em punho lá ia em busca
de saúva. As formiguinhas menores, não se importava com elas não. Só arremetia
contra saúva. Quando achava uma, perseguia-a paciente, rompendo entre os ramos
entrançados dos arbustos, donde muitas vezes voltava com a mão, a perna ardendo
por ter relado nalgum mandarová. Trazia a saúva pro largo e levava horas
brincando com a desgraçadinha, até a desgraçadinha morrer.
Quando ela morria, o sofrimento
recomeçava pra Paulino, era fome. O sol já estava alto, porém Paulino sabia que
só depois das fábricas apitarem havia de ter feijão com arroz nos tempos ricos,
ou novo pedaço de pão nos tempos felizmente mais raros. Batia uma fome triste
nele que outra saúva combatida não conseguia distrair mais. Banzava na
desgraça, melancolizado com a repetição do sofrimento cotidiano. Sentava em
qualquer coisa, descansando a bochecha na mão, cabeça torcidinha, todo
penaroso. Afinal, nalguma sombra rendada, aprendeu a dormir de fome. Adormecia.
Sonhava não. As moscas vinham lhe bordando de asas e zumbidos a boquinha
aberta, onde um resto de adocicado ficou. Paulino dormindo fecha de repente os
beiços caceteados, se mexe, abre um pouco as perninhas encolhidas e mija quente
em si.
Sono curto. Acordou muito antes
das fábricas apitarem. Mastigou a boca esfomeada, recolheu com a língua os
sucos perdidos nos beiços. Requetreque de areia e uma coisinha meia doce no
paladar. Tirou com a mão pra ver o que era, eram duas moscas. Moscas sim, porém
era meio adocicado. Tornou a botar as moscas na língua, chupou o gostinho
delas, engoliu.
Foi assim o princípio dum disfarce
da fome por meio de todas as coisas engulíveis do matinho. Não tardou muito e
virou “papista” como se diz: trocou a caça das saúvas pelos piqueniques de
terra molhada. Comer formiga então...
Junto dos montinhos dos
formigueiros encostava a cara no chão com a língua pronta. Quando formiga
aparecia, Paulino largava a língua hábil, grudava nela a formiga, e a
esfregando no céu-da-boca sentia um redondinho infinitesimal. Punha o
redondinho entre os dentes, trincava e engolia o guspe ilusório. E que ventura
se topava com alguma correição! De gatinhas, com o fiofó espiando as nuvens,
lambia o chão tamanduamente. Apagava uma carreira viva de formiga em três
tempos.
Nessa esperança de matar a fome,
Paulino foi descendo a coisas nojentas. Isto é, descendo, não. Era incapaz de
pôr jerarquia no nojo, e até o último comestível inventado foi formiga. Porém
não posso negar que uma vez até uma barata... Agarrou e foi-se embora
mastigando, mais inocente que vós, filhos dos nojos. Porém, compreende-se: eram
alimentos que não davam sustância nenhuma. Fábrica apitava e o arroz-com-feijão
vinha achar Paulino empanturrado de ilusões, sem fome. Pegou aniquilando,
escurecendo que nem dia de inverno.
Teresinha não reparava. O buçal
da virtude estava já tão gasto que via-se o momento da moça desembestar livre,
vida fora. Foi o tempo em que tapa choveu por todas as partes de Paulino
cegamente, caísse onde caísse. Quando ela vinha pra casa já escutava a
companhia do Fernandez, carroceiro. Era um mancebo de boa tradição, desempenado,
meio lerdo, porém com muita energia. Devia de ter vinte-e-cinco anos, se tinha!
e se engraçou pela envelhecida, quem quiser saiba por que. Buçal arrebentou.
Quando ele pôde carregar a trouxa pra ela, veio até a casa, entrou que nem
visita, e Teresinha ofereceu café e consentimento. A velha, sujando a língua
com os palavrões mais incompreensíveis, foi dormir na cozinha com Paulino
espantado.
Em todo caso a boia melhorou, e o
barrigudinho conheceu o segredo da macarronada. Só que tinha muito medo do homem.
Fernandez fizera uma festinha pra ele na primeira aparição, e quando saiu do
quarto de-manhã e beberam café todos juntos, Paulino confiado foi brincar com a
perna comprida do homem. Mas tomou com um safanão que o fez andar de orelha
murcha um tempo.
E lógico que a sogra havia de
saber daquilo, soube e veio. Teresinha muito fingida falou bom-dia pra ela e a
mulatona respondeu com duas pedras na mão. Porém agora Teresinha não carecia
mais da outra e refricou, assanhada feito irara. Bateboca tremendo! Paulino nem
tinha pernas pra abrir o pala dali, porque a velha apontava pra ele, falando
“meu neto” que mais “meu neto” sem parada. E mandava que Teresinha agora se
arranjasse, porque não estava pra sustentar cachorrice de italiana acueirada
com espanhol. Teresinha secundava gritando que espanhol era muito mais melhor
que brasileiro, sabe! sua filha de negro! mãe de assassino! Não careço da
senhora, sabe! mulata! mulatona! mãe de assassino!
— Mãe de assassino é tu, sua
porca! Tu que fez meu filho sê infeliz, maldiçoada do diabo, carcamana porca!
— Saia já daqui, mãe de
assassino! A senhora nunca se amolou com seu neto, agora vem com prosa aí! Leve
seu neto se quiser!
— Pois levo mesmo! coitadinho do
inocente que não sabe a mãe que tem, sua porca! porca!
Suspendeu Paulino esperneando, e
lá se foi batendo salto, ajeitando o xale de domingo, por entre as curiosas
raras do meidia. Inda virou, aproveitando a assistência, pra mostrar como era
boa:
— Escute! Vocês agora, não pago
mais aluguel de casa pra ninguém, ouviu! Protegi você porque era mulher de meu
filho desgraçado, mas não tou pra dar pouso pra égua, não!
Mas a Teresinha, louca de ódio,
já estava olhando em torno pra encontrar um pau, alguma coisa que matasse a
mulatona. Esta achou melhor partir duma vez, triunfante ploque ploque.
Paulino ia ondulando por cima
daquelas carnes quentes. Chorava assustado, não tendo mais noção da vida,
porque a rua nunca vista, muita gente, aquela mulher estranha e ele sem mãe,
sem pão, sem matinho, sem vó... não sabia mais nada! meu Deus! como era
desgraçado! Teve um medo pavoroso no corpinho azul. Inda por cima não podia
chorar à vontade porque reparara muito bem, a velha tinha um sapatão com salto
muito grande, pior que tamanco. Devia de ser tão doído aquele salto batendo no
dentinho, rasgando o beiço da gente... E Paulino horrorizado enfiava quase as
mãozinhas na boca, inventando até bem artisticamente a função da surdina.
— Pobre de meu neto!
Com a mão grande e bem quente
pegou na cabecinha dele, ajeitando-a no pescoço de borracha. Carregado gostoso
naqueles braços bons, com o xale dando inda mais quentura pra gente ser
feliz... E a velha olhou pra ele com olhos de piedade confortante... Meu Deus!
que seria aquilo tão gostoso!... É assomo de ternura, Paulino. A velha
apertou-o no peito abraçando, encostou a cara na dele, e depois deu beijos,
beijos, revelando pro piá esse mistério maior.
Paulino quis sossegar. Pela
primeira vez na vida o conceito de futuro se alargou até o dia seguinte na ideia
dele. Paulino sentiu que estava protegido, e no dia seguinte havia de ter
café-com-açúcar na certa. Pois a velha não chegara a boca ajuntada bem na cara
dele e não dera aquele chupão que barulhava bom? Dera. E a ideia de Paulino se
encompridou até o dia seguinte, imaginando um canecão do tamanho da velha,
cheinho de café-com-açúcar. Foi se rir pras duas lágrimas piedosas dela, porém
bem no meio da gota apareceu uma botina que foi crescendo, foi crescendo e
ficou com um tacão do tamanho da velha. Paulino reprincipiou chorando baixo,
que nem nas noites em que o acalanto da manha embalava o sono da Teresinha.
— Ara! também agora basta de
chorar! Ande um pouco, vamos!
O salto da botina encompridou
enormemente e era a chaminé do outro lado da rua. O pranto de Paulino parou,
mas parou engasgado de terror. Chegaram.
Esta era uma casa de verdade.
Entrava-se no jardinzinho com flor, que até dava vontade de arrancar as
sempre-vivas todas, e, subida a escadinha, havia uma sala com dois retratos
grandes na parede. Um homem e uma mulher que era a velha. Cadeiras, uma cadeira
grande cabendo muita gente nela. Na mesinha do meio um vaso com uma flor
cor-de-rosa que nunca murchou. E aquelas toalhinhas brancas nas cadeiras e na
mesa, que devia distrair a gente cortando tantas bolotinhas...
O resto da casa assombrou desse
mesmo jeito o despatriado. Depois apareceram mais duas moças muito lindas, que
sempre viveram de saia azul-marinho e blusa branca. Olharam duras pra ele.
Aqueles quatro olhos negros desceram lá do alto e tuque! deram um cocre na alma
de Paulino. Ele ficou tonto, sem movimento, grudado no chão.
Daí foi uma discussão terrível.
Não sei o que a velha falou, e uma das normalistas respondeu atravessado. A
velha asperejou com ela falando no “meu neto”. A outra respondeu gritando e uma
tormenta de “meu neto” e “seu neto” relampagueou alto sobre a cabeça de
Paulino. A história foi piorando. Quando não teve mais agudos pras três vozes
subirem, a velha virou um bofete na filha da frente, e a outra fugindo escapou
de levar com a colher bem no coco.
A invenção de Paulino não podia
ajuntar mais terrores. E o engraçado é que o terror pela primeira vez despertou
mais a inteligência dele. O conceito de futuro que fazia pouco atingira até o
dia seguinte, se alongou, se alongou até demais, e Paulino percebeu que entre raivas e
maus-tratos havia de passar agora o dia seguinte inteiro e o outro dia seguinte
e outro, e nunca mais haviam de parar os dias seguintes assim. É lógico: sem
ter a soma dos números, mais de três mil anos de dias seguintes sofridos, se
ajuntaram no susto do piá.
— Vá erguer aquela colher!
As metades do arco se moveram
ninguém sabe como, Paulino levantou a colher do chão que deu pra velha. Ela
guardou a colher e foi lá dentro. A varanda ficou vazia. Estava tudo arranjado,
e as sombras da tarde rápida entravam apagando as coisas desconhecidas. Só a
mesa do centro inda existia nitidamente, riscada de vermelho e branco. Paulino
foi se encostar na perna dela. Tremia de medo. Chiava um cheiro gostoso lá
dentro, e da sombra da varanda um barulhinho monótono, tique-taque, regulava as
sensações da gente. Paulino sentou no chão. Uma calma grande foi cobrindo o
pensamento aniquilado: estava livre do tacão da velha. Ela não era que nem a
mãe não. Quando tinha raiva não atirava botina, atirava uma colher levinha,
brilhando de prateada. Paulino se encolheu deitado, encostando a cabeça no
chão. Estava com um sono enorme de tanto cansaço nos sentimentos. Não havia
mais perigo de receber com tamanco no dentinho, a mulatona só atirava aquela
colher prateada. E Paulino ignorava se colher doía muito, batendo na gente.
Adormeceu bem calmo.
— Levante! que é isso agora! Como
esse menino deve ter sofrido, Margot! Olhe a magreira dele!
— Pudera! com a mãe na gandaia,
festando dia e noite, você queria o que, então!
— Margot... você sabe bem certo o
que quer dizer puta, hein? Eu acho que a gente pode falar que Paulino é
filho-da-puta, não?
Se riram.
— Margot!
— Senhora!
— Mande Paulino aqui pra dar
comida pra ele!
— Vá lá dentro, menino!
As pernas de arco balançaram mais
rápidas. Uma cozinha em que a gente não podia nem se mexer. A velha boa inda
puxou o capacho da porta com o pé:
— Sente aí e coma tudo, ouviu!
Era arroz-com-feijão. A carne,
Paulino viu com olho comprido ela desaparecer na porta da varanda. Menino de
quatro anos não come carne, decerto imaginou a velha, meia em dificuldades
sempre com a educação das filhas.
E a vida mudou de misérias pra
Paulino, mas continuou a sempre miserável. Boia melhorou muito e não faltava
mais, porém Paulino estava sendo perseguido pelos vícios do matinho. Nunca mais
a mulatona teve daqueles assomos de ternura do primeiro dia, era uma dessas
cujo mecanismo de vida não difere muito do cumprimento do dever. Aquele beijo
fora sincero, mas apenas dentro das convenções da tragédia. Tragédia acabara e
com ela a ternura também. E no entanto ficara muito em Paulino a saudade dos
beijos...
Quis se chegar pras moças porém
elas tinham raiva dele, e podendo, beliscavam. Assim mesmo a mais moça, que era
uma curiosa do apá virado e nunca tirava as notas de Margot na escola, Nininha,
é que tomara pra si dar banho no Paulino. Quando chegava no sábado, o pequeno
meio espantado e muito com medo de beliscão, sentia as carícias dum rosto lindo
em fogo se esfregando no corpinho dele. Acabava sempre aquilo, a menina com uma
raiva bruta, vestindo depressa a camisolinha nele, machucando, “fica direito,
peste!” pronto: um beliscão que doía tanto, meu Deus!
Paulino descia a escada da
cozinha, ia muito jururu pelo corredorzinho que dava no jardim da frente,
puxava com esforço o portão sempre encostado, sentava, punha a mão na bochecha,
cabecinha torcida pro lado e ficava ali, vendo o mundo passar.
E assim, entre beliscões e
palavras duras que ele não entendia nada, “menino fogueto”, “filho de
assassino”, ele também passava feito o mundo: magro escuro terroso, cada vez se
aniquilando mais. Mas o que que havia de fazer? Bebia o café e já falavam que
fosse comer o pão no quintal senão, porco! sujava a casa toda. Ia pro quintal,
e a terra estava tão úmida, era uma tentação danada! Nem ele punha reparo que
era uma tentação porque nenhum cocre, nenhuma colherada, o proibira de comer
terra. Treque-trrleque, mastigava um bocadinho, engolia, mastigava outro
bocadinho, engolia. E ali pelas dez horas sempre, com a pressa das normalistas
assombrando a calma da vida, tinha que assentar naquele capacho pinicando,
tinha que engolir aquele feijão-com-arroz num fastio impossível...
— Minha Nossa Senhora, esse
menino não come! Ói só com que cara ele olha pra comida! Pra que que tu suja a
cara de terra desse jeito, hein, seu porcalhão!
Paulino assustava, e o instinto
fazia ele engolir em seco esperando a colherada nunca vinda. Porém desta vez a
velha tivera uma iluminação no mecanismo:
— Será que!... Você anda comendo
terra, não! Deixe ver!
Puxou Paulino pra porta da
cozinha, e com aquelas duas mãos enormes, queimando de quentes:
— Abra a boca, menino!
E arregaçava os beiços dele.
Terra nos dentinhos, na gengiva.
— Abra a boca, já falei!
E o dedo escancarava a boquinha
terrenta, língua aparecendo até a raiz, todinha da cor do barro. A sova que
Paulino levou nem se conta! Principiou com o tapa na boca aberta, que até deu
um som engraçado, bóo! e não posso falar como acabou de tanta mistura de cocre
beliscão palmadas. E palavreado, que afinal pra criancinha é tabefe também.
Então é que principiou o maior
martírio de Paulino. Dentro da casa, nenhuma queria que ele ficasse, tinha
mesmo que morar no quintal. Antes do pão porém, já vinha uma sova de ameaças,
tão dura, palavra-de-honra: Paulino descia a escadinha completamente abobado,
sentindo o mundo bater nele. E agora?...
Pão acabou e a terra estava ali
toda oferecida chamando. Mas aquelas três beliscadoras não queriam que ele
comesse a terra gostosa... Oh tentação pro pobre santantoninho! queria comer e
não podia. Podia, mas depois lá vinha de hora em hora o dedão da velha furando
a boquinha dele... Como?... Não como?... Fugia da tentação, subia a escadinha,
ficava no alto sentado, botando os olhos na parede pra não ver. E a terra
sempre chamando ali mesmo, boa, inteirinha dele, cinco degraus fáceis em
baixo...
Felizmente não sofreu muito não.
Três dias depois, não sei se brincou na porta com os meninos de frente,
apareceu tossindo. Tosse aumentou, foi aumentando, e afinal Paulino escutou a
velha falar, fula de contrariedade, que era tosse-de-cachorro. Se haviam de
levar o menino no médico, em vez, vamos dar pra ele o xarope que dona Emília
ensinou. Nem xarope de dona Emília, nem os cinco mil-réis ficados no boticário
mais chué do bairro sararam o coitadinho. Tinha mesmo de esperar a doença, de
tanto não encontrando mais sonoridade pra tossir, ir-se embora sozinha.
O coitado nem bem sentia a
garganta arranhando, já botava as mãozinhas na cabeça, inquieto muito! engolindo
apressado pra ver se passava. Ia procurando parede pra encostar, vinha o
acesso. Babando, olho babando, nariz babando, boca aberta não sabendo fechar
mais, babando numa conta. O coitadinho sentava no lugar onde estava, fosse onde
fosse porque senão caía mesmo. Cadeira girava, mesa girava, cheiro de cozinha
girava. Paulino enjoado atordoado, quebrado no corpo todo.
— Coitado. Olhe, vá tossir lá
fora, você está sujando todo o chão, vá!
Ele arranjava jeito de criar
força no medo, ia. Vinha outro acesso, e Paulino deitava, boca beijando a terra
mas agora sem nenhuma vontade de comer nada. Um tempo estirado passava. Paulino
sempre na mesma posição. Corpo nem doía mais, de tanto abatimento, cabeça não
pensando mais, de tanto choque aguentado. Ficava ali, e a umidade da terra ia
piorar a tosse e havia de matar Paulino. Mas afinal aparecia uma forcinha, e
vontade de levantar. Vai levantando. Vontade de entrar. Mas podia sujar a casa
e vinha o beliscão no peitinho dele. E não valia de nada mesmo, porque mandavam
ele pra fora outra vez...
Era de-tarde, e os operários
passavam naquela porção de bondes... enfim divertia um bocado pelo menos os
olhos ramelosos. Paulino foi sentar no portão da frente. A noite caía agitando
vida. Um ventinho poento de abril vinha botar a mão na cara da gente, delicado.
O sol se agarrando na crista longe da várzea, manchava de vermelho e verde o
espaço fatigado. Os grupos de operários passando ficavam quase negros contra a
luz. Tudo estava muito claro e preto, incompreensível. Os monstros corriam
escuros, com moços dependurados nos estribos, badalando uma polvadeira vermelha
na calçada. Gente, mais monstros e os cavalões nas bonitas carroças.
Nesse momento a Teresinha passou.
Vinha nuns trinques, só vendo! sapato amarelado e meia roseando uma perna linda
mostrada até o joelho. Por cima um vestido azul claro mais lindo que o céu de
abril. Por cima a cara da mamãe, que beleza! com aquele cabelo escuro fazendo
um birote luzido, e os bandós azulando de napolitano o moreno afogueado pelas
cores de Paris.
Paulino se levantou sem saber,
com uma burundanga inexplicável de instintos festivos no corpo, “Mamma!” que
ele gritou. Teresinha virou chamada, era o figliuolo. Não sei o que despencou
na consciência dela, correu ajoelhando a sedinha na calçada, e num transporte,
machucando bem delicioso até, apertou Paulino contra os peitos cheios. E
Teresinha chorou porque afinal das contas ela também era muito infeliz.
Fernandez dera o fora nela, e a indecisa tinha moçado duma vez. Vendo Paulino
sujo, aniquiladinho, sentiu toda a infelicidade própria, e meia que
desacostumou de repente da vida enfeitada que andava levando, chorou.
Só depois é que sofreu pelo
filho, horroroso de magro e mais frágil que a virtude. Decerto estava sofrendo
com a mulatona da avó... Um segundo matutou levar Paulino consigo. Porém,
escondendo de si mesma o pensamento, era incontestável que Paulino havia de ser
um trambolho pau nas pândegas. Então olhou a roupinha dele. De fazenda boa não
era, mas enfim sempre servia.
Agarrou nesse disfarce que
apagava a consciência, “meu filho está bem tratado”, pra não pensar mais nele
nunca mais. Deu um beijo na boquinha molhada de gosma ainda, procurou engolir a
lágrima, “figliuolo”, não foi possível, apertou muito, beijou muito. Foi-se
embora arranjando o vestido.
Paulino de-pezinho, sem um gesto,
sem um movimento, viu afinal lá longe o vestido azul desaparecer. Virou o
rostinho. Havia um pedaço de papel de embrulho, todo engordurado, rolando
engraçado no chão. Dar três passos pra pegá-lo... Nem valia a pena. Sentou de
novo no degrau. As cores da tarde iam cinzando mansas. Paulino encostou a
bochecha na palminha da mão e meio enxergando, meio escutando, numa indiferença
exausta, ficou assim. Até a gosma escorria da boca aberta na mão dele. Depois
pingava na camisolinha. Que era escura pra não sujar.
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