Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
---
Dize-me como dormes que eu te
direi os pecados que tens. É durante o sono, realmente, que a consciência se
revela. O sono agitado, aflito, repassado de gemidos e roncos, denuncia sempre
uma alma atribulada, um espírito perseguido de cuidados, um coração atormentado
pela consciência. A consciência tranquila, dorme com o corpo, irmanados num
grande sossego reparador.
As mulheres que se revoltam
contra os maridos que roncam alto, não cometem, portanto, com isso, uma
injustiça. Um escritor já disse, uma vez, que a garganta de um esposo, era, às
vezes, a trombeta de Jericó, diante da qual ruíam todas as ilusões da mulher. E
a afirmação era justa, porque é durante o sono que, adormecida a tirania da
vontade, o homem se manifesta, sonoramente, com todos os defeitos dissimulados
durante o dia.
Há, entretanto, casos
patológicos, que, embora não justifiquem uma alteração do critério geral,
servem, contudo, para ilustrar, com uma variante curiosa, um capítulo sobre a
matéria.
A fazenda de Santa Justina, no
município de Maricá, estava entregue, já, ao primeiro sono compensador, quando
bateram à porta do casebre do Antônio Luiz, único, naquelas alturas, que ainda
coava a luz da candeia pelos interstícios das paredes, das janelas e dos
portais.
— Quem é? — gritou, de dentro,
aborrecido, o dono da casa, juntando, com os dedos úmidos de saliva, as cartas
de um baralho espalhadas sobre a madeira de um tamborete.
— Sou eu! — respondeu, de fora,
uma voz desconhecida no lugar.
Aberta a porta, o Benedito
Gamela, que ia de viagem, explicou o seu desejo: queria pousada por uma noite,
a fim de alcançar, no dia seguinte, a fazenda do Atoleiro, onde ia trabalhar na
apanha de café.
— Você não tem, por aí, alguma
moléstia pegadeira? — indagou o Antônio Luiz, desconfiado.
— Eu? D'aonde, minha Nossa
Senhora? Eu nunca tive moléstia na minha vida. A doença que tenho, desde
pequeno, nunca fez mal a ninguém, graças a Deus.
— Que moléstia é essa?
— A minha? Eu sofro de pele
curta.
— Pele curta? — estranhou o
morador.
Não querendo, porém, mostrar-se
desconhecedor de certas novidades da medicina, Antônio Luiz não insistiu:
acendeu uma lamparina, foi ao compartimento próximo, desenrolou no chão uma
esteira de palha, e, concluído tudo, convidou:
— Entre p'ra cá. A casa é sua.
E encostando a porta, deitou-se
na sala próxima.
Dez minutos não se tinham passado
ainda quando o dono da casa deu um pulo, sobressaltado: do quarto do hóspede,
onde a lamparina bruxoleava, desenhando visagens na parede, subia um rugido de
tempestade, que abalava o aposento.
— Camarada!... Camarada!... —
chamou o Antônio Luiz, empurrando a porta. — Que é isso? Você está morrendo?
— Hein?... Hein?... — Acordou o
caboclo, em sobressalto. — O que é?... O que é?...
— Você está roncando como um
trovão. Que é isso?
— É "pele curta",
homem. Eu não disse a você? — explicou o Benedito, estremunhado.
O outro não compreendeu, e ele
explicou:
— A minha moléstia é essa: quando
eu fecho os olhos, abro a boca. É por isso!
E, estirando-se na esteira,
desandou, de novo, a roncar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...