Pavores de enfermo
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Não obstante a sua aparência de
homem grave, circunspecto, ponderado, que lhe assegurara aquele emprego de
confiança, o coronel Bonifácio Coutinho, diretor do Asilo de Senhoras
Arrependidas, era, intimamente, um dos temperamentos menos compatíveis com as responsabilidades
daquelas funções. Lutando, disputando-se o domínio da sua vontade,
defrontavam-se, nele, o desejo e o interesse. E não era sem custo, sem
violência, que este se superpunha à brutalidade dos seus nervos, tornando-lhe
possível a manutenção daquela sinecura amável, que lhe amenizava as infinitas
asperezas da vida. Assim constituído, o coronel resolveu, um dia, quebrar a sua
couraça e, chamando em particular o médico do estabelecimento, pediu-lhe um
conselho:
— Diga-me cá, doutor, diga-me, com
reserva: o senhor acha que me fica mal conquistar uma ou outra das nossas
asiladas?
— Absolutamente, não! — acudiu o
facultativo. — Desde que elas queiram, não há, mal nenhum. Eu próprio tenho me
prevalecido dessa faculdade, procurando, apenas, não investir contra aquelas
que, de antemão, parecem rigidamente sérias.
— E que faz o doutor para
diferençar umas das outras? — objetou o velho. — Como que o senhor as
distingue?
O galeno tomou-o pelo braço,
arrastou-o para o silêncio de uma janela deitando sobre jardim, e revelou-lhe o
seu segredo:
— Olhe: o senhor, quando se
quiser aventurar a uma destas conquistas, faça o seguinte: chegue perto da
asilada que houver escolhido, pergunte-lhe a idade; se ela lhe disser uma idade
visivelmente inferior àquela que tem, faça-lhe a sua declaração, que será, por
força, bem sucedido.
E apertando-lhe a mão
— Experimente.
Um mês depois foi o médico
chamado para ver o diretor do Asilo, cujas condições de saúde preocupavam
seriamente os seus subordinados. O estado de depressão era visível. O pulso,
irregular, incerto, descompassado, denunciava um profundo abalo orgânico, que
os seus cinquenta e cinco anos haviam tornado perigoso. À vista do enfermo, o
médico compreendeu a sua missão, e, pedindo que os enfermeiros se retirassem,
começou:
— Meu caro coronel, é preciso que
o senhor mude de vida.
— Eu?
— Sim, senhor. O senhor abusou do
meu conselho, e deve lembrar-se que não é mais uma criança, um moço, um rapaz
no vigor dos anos.
E interrompendo-se:
— Que idade o senhor tem?
— Como? — atalhou o doente,
alarmado.
— Eu estou perguntando que idade
tem o senhor.
A essa confirmação da consulta,
passou pelo cérebro do enfermo um pensamento sinistro. Com que ideia lhe fazia
o médico aquela pergunta? E foi com o pavor nos olhos que se sentou, de
repente, no leito, bradando, horrorizado, com os olhos fora das órbitas:
— Cento e cinquenta anos doutor!
Duzentos! Duzentos e cinquenta anos, doutor!
E disparou, escada abaixo.
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