Paulino e Roberto
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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O Paulino toda a vida remou contra a maré! Para cúmulo da
desgraça, o destino atirou-lhe nos braços uma esposa que não era precisamente o
sonhado modelo de meiguice e dedicação.
Adelaide não lhe perdoava o ser pobre, o ganhar apenas o
necessário para viver. O seu desejo era ter um vestido por semana e um chapéu
de quinze em quinze dias, — possuir um escrínio de magníficas joias, —
deslumbrar a Rua do Ouvidor, — frequentar bailes e espetáculos, — tornar-se a
rainha da moda. Não se podia conformar com aquela vida de privação e trabalho.
O Paulino, que era a bondade em pessoa, afligia-se muito por não
poder proporcionar à sua mulher a existência que ela ambicionava. Fazendo um
exame de consciência, o mísero acusava-se de haver sacrificado a pobre moça,
que, bonita e espirituosa como Deus a fizera, teria facilmente encontrado um
marido com recursos bastantes para satisfazer todos os seus caprichos de frou-frou sem dote.
Ele só tinha um amigo, um amigo íntimo, seu companheiro de
infância, o Vespasiano, que um dia lhe disse com toda a brutalidade:
— Tua mulher é insuportável! Eu, no teu caso, mandava-a para o
pasto!
— Oh! Vespasiano! não digas isso!...
— Digo, sim! senhor! digo e redigo... — Vocês não têm filhos;
portanto, não há consideração nenhuma que te obrigue a aturar um diabo de
mulher que todos os dias te lança em rosto a tua pobreza, como se ela te
houvesse trazido algum dinheiro, e o esbanjasses!.
— Isso não é conselho que se dê a um amigo, nem eu tenho razões
para me separar de Adelaide.
— Pois não te parece razão suficiente essa eterna humilhação a que
ela te condena?
— Pois sim, mas quem me manda ser tão caipora?
— Não creias que, se melhorasses de posição, ela melhoraria de
gênio. Aquela é das tais que nunca estão contentes com a sorte, nem se lembram
de que Deus dá o frio conforme a roupa. Se algum dia chegasses a ministro, ela
não te perdoaria não seres presidente da República!
— Exageras.
Pode ser; mas afianço-te que mulher assim não a quisera eu nem
pesada a ouro! Prefiro ficar solteiro.
Efetivamente, Vespasiano, apesar de ser muito amigo de Paulino,
não o frequentava, tal era a aversão que lhe causava a presença de Adelaide.
Não a podia ver.
***
Paulino em vão procurava por todos os meios e modos melhorar de
vida, aumentando o parco rendimento, quando um comerciante, seu conhecido, lhe
propôs uma pequena viagem ao Rio Grande do Sul, para a liquidação de certo
negócio. Era empresa que lhe poderia deixar um par de contos de réis, se fosse
bem sucedida.
Instigado pela mulher, a quem sorria a perspectiva de alguns
vestidos novos, Paulino partiu para o Rio Grande a bordo do Rio Apa; tendo, porém, desembarcado em
Santa Catarina, perdeu, não sei como, o paquete, e foi obrigado a esperar por
outro.
Antes que esse outro chegasse, recebeu a notícia de que o Rio Apa naufragara, não escapando nenhum
homem da tripulação, nem passageiro algum. Do próprio paquete não havia o menor
vestígio. Sabia-se que naufragara porque desaparecera.
Paulino agradeceu a Deus o ter escapado milagrosamente ao
naufrágio.
***
Ao ver o seu nome impresso, nos jornais, entre os das vítimas,
atravessou-lhe o espírito a ideia de calar-se, fazendo-se passar por morto. Não
sei se ele teria lido o Jacques Amour, de
Zola, ou a Viuvinha, do nosso
Alencar.
— Em vez de me livrar da Adelaide, como aconselhava o Vespasiano,
livrá-la-ei de mim. Ora está dito! Seremos ambos assim mais felizes... —
Ninguém o conhecia em Santa Catarina, e ele, de ordinário taciturno e
reservado, a ninguém se queixara de haver perdido a viagem, de modo que pôde
executar perfeitamente o seu plano. Calou-se, muito caladinho, e deixou que a
notícia da sua morte circulasse livremente, como a dos demais passageiros do Rio Apa.
Escusado é dizer que mudou de nome.
Tendo feito conhecimento com um rico industrial teuto-brasileiro,
ex-colono de Blumenau, foi com este para o interior da província, e, como era
inteligente e trabalhador, não tendo mulher que o "encabulasse",
arranjou muito bem a vida, conseguindo até pôr de parte algum pecúlio.
***
Passaram-se anos sem que Roberto, o ex— Paulino, tivesse notícias
de Adelaide.
Resolveu um dia ir ao Rio de Janeiro, a passeio, convencido de que
ninguém mais se lembrava dele, nem o reconheceria, pois deixara crescer a
barba, engordara extraordinariamente, e tinha um tipo muito diverso do de
outrora.
O seu primeiro cuidado foi passar pela casinha de porta e janela
onde morava, na Rua do Alcântara, quando embarcou para o Sul. Não a encontrou:
tinham erguido um prédio no local outrora ocupado pelo ninho dos seus amores
sem ventura.
Informou-se na venda próxima que fim levara a viúva de um tal
Paulino, morador naquela rua, náufrago do Rio
Apa; ninguém se lembrava dessa família, e ele teve a sensação de que era
realmente um defunto.
Procurou ver Vespasiano, e viu-o, quando saía da Alfândega, onde
era empregado. O seu movimento foi correr para o amigo e dizer-lhe: — Olha! sou
eu! não morri! venha de lá um abraço! — mas conteve-se, e deixou-o passar,
saboreando um cigarro.
— Como está velho! pensou Paulino; eu decerto não o reconheceria,
se o supusesse tão morto como ele me supõe a mim! Deixá-lo! Eu morri deveras, e
nada lucraria em ressuscitar, mesmo para ele, que era o meu único amigo.
***
Bem inspirado andou o morto em não se dar a conhecer, porque,
alguns dias depois, achando-se num bondinho da Praça Onze, atravessando a Rua
do Riachuelo, viu entrar no carro o Vespasiano acompanhado por uma senhora que
era Adelaide sem tirar nem pôr.
Paulino conteve o natural sobressalto que lhe causou aquela
aparição.
Ela vinha muito irritada. Logo que se sentou, voltou-se com mau
modo para Vespasiano, e disse-lhe:
— Eu logo vi que você me dizia que não!
Paulino reconheceu a voz da sua viúva.
— Mas, reflete bem, Adelaide; aquele dinheiro está destinado para
o aluguel da casa, e tu não tens assim tanta necessidade de uma capa de seda!
Adelaide soltou um longo suspiro, e expectorou esta queixa bem
alto para que todos a ouvissem:
— Meu Deus! que sina a minha de ter maridos pingas! Você ainda é
pior que o outro!
— Ah! se ele pudesse ver-nos lá do outro mundo, murmurou entre os
dentes Vespasiano, como se riria de mim!
Roberto ficou muito sério, olhando com indiferença para a rua, mas
Paulino riu-se, efetivamente, no fundo do oceano.
A última frase é espetacular! Como todo o conto, aliás.
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