Pau-Man-Chen
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Cena doméstica. Lá está o meu cozinheiro a bater
cabeça, como se diz neste Macau; lá está ele rezando aos seus deuses
protetores. Que lhe preste! Acabou de me roubar nas contas, como bom chinês que
é, serenamente agressivo em tudo ao europeu; e passou a entregar-se a esta
outra ocupação não menos meritória.
Sendo seus os aposentos inferiores, é ali rei, ou pelo
menos mandarim; faz o que quer. Os altares aos deuses anicham-se pelas paredes,
aos cantos do sobrado, sobre as mesas; e até junto ao fogão, onde se guisa o
meu jantar, se presta culto a supinas divindades. Misteriosos ritos. São papéis
encarnados, contendo cabalísticos dizeres; são figuras de horríveis monstros,
coloridas pelas tintas mais surpreendentes, nas disposições mais grotescas,
despertando quase o riso, despertando quase o medo, a quem não vive em graça em
tal Olimpo. Ali o cozinheiro, em humildes genuflexões de crente, vem depor suas
ofertas, minhas ofertas, pois sou eu que pago a festa, — ofertas de laranjas,
de doces, de chá, de porco assado e de outras iguarias. — Ali ardem lumes
místicos; e frequentemente, pela noite, como agora, se queimam pivetes, círios
rubros, resinas e papéis, de tudo emanando um fumo atroz, que invade em
torvelino a casa toda, que chega sem respeito ao sítio onde me encontro, e me
sufoca. Paciência! Paciência é o
único código de conduta para o aventureiro que escolheu para exílio um canto
exótico, longe, muito longe do torrão onde nasceu, e no qual a civilização
disparatada, a feição própria das gentes com quem lida, hão de fatalmente
apresentar-se, dominantes.
Os deuses, com quem por assim dizer vivo em contato, e
a cuja sublime proteção, posto que indiretamente, me confio, são muitos, um
enxame. É todo o Olimpo budista e o inteiro mito primitivo, amalgamados em
crendices; legiões de espíritos. Naturalmente, há uns mais preferidos, que se
invocam no lar com mais piedoso amor; neste número, segundo informações
recentes que colhi, deve contar-se Pau-Man-Chen; e é a sua história maravilhosa
que me proponho narrar, como puder.
***
O deus Pau-Man-Chen, venerado em todo o imenso
império, tem uma face branca e tem uma face preta. Na China não há efetivamente
ninguém que não o adore, que não lhe preste no altar doméstico, o culto
merecido; a ele, que tudo sabe e tudo pode, que possui a ciência do bem e a
ciência do mal, que com um olho contempla os céus e as grandes coisas puras, e
com o outro mira a terra profunda até aos antros lôbregos dos demônios,
adivinha-lhes os maléficos desígnios. O deus Pau-Man-Chen tem uma face branca e
tem outra face preta...
***
Há não sei quantos mil anos, morreu não sei aonde, uma
mulher casada. O marido, não resta dúvida, procedeu segundo o ritual do estilo,
e mandou depositar o caixão num solitário templo. Mal imaginava ele que a
defunta seguia grávida no esquife; e mal imaginava que o menino, que se
ocultava no seu ventre, ia votado a altos destinos...
***
Foi por aquela época, numa mercearia do sítio, que
começou sendo notado, com justo sobressalto do dono da quitanda, o caso que vou
expor. Fazia-se sem novidade a venda, dia a dia; mas, quando pela manhã se dava
balanço às contas e ao dinheiro, encontrava-se sempre, de mistura com o monte
das sapecas, dois desses papelitos amarelos, com a competente mancha prateada,
que são nada menos do que a moeda corrente entre as almas do outro mundo, nas
suas transações... Era prova claríssima de que andava por ali coisa
sobrenatural, — bruxaria, visita de fantasmas, ou outro mistério parecido. —
Estudou-se o caso atentamente e com bem justificáveis ânsias de terror; observaram-se
os fregueses, um por um. Chegou-se por fim à conclusão de que, em tal enigma,
andava por certo envolvido aquele vulto de mulher de maneiras suspeitosas,
trazendo uma criança no regaço, e chegando-se todas as noites ao balcão para
comprar um bolo, que oferecia ao pequerrucho. Aos cobres, que largava das mãos
lívidas, cadavéricas, não havia nada que dizer-se; eram excelentes; mas quem
ignora que de noite todos os bruxedos são possíveis, e é a luz fraca do dia que
seguidamente os desmascara?... O patrão (os tendeiros do mundo inteiro, e desde
séculos sem conto, são homens de raro engenho), o patrão, certa noite,
conseguiu sem ser sentido, atar um longo fio à ponta da cabaia da freguesa; e
quando ela se ausentou, pôs-se a largar o fio, à medida dos seus passos. No dia
seguinte, facilmente o finório percorreu a linha de trajeto da misteriosa
caminheira; e foi assim esbarrar, no termo do passeio, com o caixão da defunta,
de que atrás se fez menção. Do caso, sem detenças, correu a dar parte ao viúvo,
de quem era conhecido.
Acercam-se o viúvo e um bando de curiosos, do esquife,
e abrem-no, ao pasmo de todos. Cena estranha! Sobre os farrapos descoloridos, úmidos,
fétidos, pasto de vermes, — quem já, dos que me leem, pousou os olhos no
espetáculo duma tumba escancarada? — lá está estendida a esposa, e lá está um
menino. Vivo? sim. Viva? viva parece, duma existência sobrenatural embora; mas
como ninguém dela cuidasse, ali ficou jazendo para sempre. As atenções, os
carinhos, convergem para o menino; o pai estende-lhe os braços, arranca-o à
desolação daquele leito, chama-o à vida, à sociedade, ao mundo.
***
A lenda popular completa esta curiosa história pela
maneira que vai ver-se. A defunta, ali amortalhada, ali estendida sobre as
tábuas, foi mãe, não sei por que milagre — não se discutem milagres. — O resto
explica-se melhor: o mistério psíquico da maternidade, isso que nas mães se
patenteia como uma força imensa, sem limites no afeto, sem barreiras nos zelos,
capaz de todos os arrojos, pode aninhar-se naquele corpo inerte, e imprimir
vontade àquele feixe de ossos. Aos primeiros vagidos da criança, o cadáver
pôs-se a contemplar os próprios seios murchos, pendentes, vazios de seiva,
roídos pelos bichos. O cadáver moveu-se então, galvanizado pelo amor — qualquer
cadáver de mãe, naquelas condições, faria o mesmo; — começou a dar pontapés no
impossível; partiu a murros as paredes do seu cárcere; e apertando de encontro
aos ossos o filhito, e embrulhando-se discretamente na mortalha, foi a correr
comprar um bolo à venda próxima. A criança assim foi medrando, passando os dias
naquele estranho berço. Foi por isso que ficou com uma face branca, a que
voltava para a luz e para o céu, e com uma face preta, a que pousava na sombra,
de encontro à terra negra. De então lhe veio o duplo condão de conhecer o bem e
de conhecer o mal, de ver com um olho os deuses, e com um olho os demônios.
Pelo correr dos anos, foi mandarim de modestos lugarejos, pois lhe sobrava asco
pelas riquezas, pelo fausto e pelos altos cargos. Os nobres senhores, o próprio
imperador que muito o honrava, tremiam do seu juízo. Lia nas consciências e lia
nos destinos. Distinguia na turba os humildes, os bons, os oprimidos; e também
os impostores, os verdugos, os infames. Premiava as virtudes, azorragava os vícios.
Os desmandos da corte, a rapina dos ministros, os mexericos das concubinas,
foram por ele desmascarados e punidos. Assim viveu por longos tempos este
grotesco e sublime figurão; assim passou por todo o império, para glória da
China e para consolação dos ofendidos. O povo punha de parte os labores e vinha
prostrar-se em saudações à borda das estradas, ao vê-lo atravessar cidades e
campinas, galgar os montes e descer os vales, sempre incansável, seguindo a
largos passos, como se fosse um procurador atarefado com demandas. Flutuava-lhe
ao vento a longa cabaia esfarrapada, suja de lama e de poeira dos caminhos; a
mão adunca brandia um báculo nodoso; as pupilas chamejavam iracundas; o corpo
ossudo definia-se, na majestade façanhuda dos gestos arrogantes, nos compridos
bigodes de asiático, pendentes como franjas, na barba aberta em leque,
chegando-lhe à barriga, e na disformidade do rosto pintado a duas cores, branca
uma face e outra face preta. Um belo dia safou-se deste mundo; mas lá anda no
outro, certamente, espreitando cá para baixo, e não largando de mão o seu
fadário.
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