Pássaros marinhos
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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— Que linda
tarde e que admirável ocaso!
A voz
fresca, alegre, clara, argentina que estas palavras soltara, partira de um
grande caramanchão envolto em espessos rendilhados de verdura estrelada de
flores que ficava a um canto do jardim, bem na linha do alto e vasto gradil da
frente, numa bela chácara de Icaraí.
E logo um
rapaz alto e moreno, forte e de tênue bigode curto, com uns olhos negros
expressivos e um vago ar melancólico, o qual percorria os canteiros um a um
atrás de uma flor predileta que não encontrava entretanto, apanhando à pressa
uma singular orquídea cor de ouro aberta, como uma pequenina estrela, entre as
demais companheiras vulgares, no parapeito musgoso do velho muro lateral, —
encaminhou-se, radiante, para o lugar de onde partira.
Entretanto,
ao subir a escadinha cimentada e ao transpor a pequena porta, cheia de festões
aromais, do caramanchão, estacou de repente, vacilante e enleado diante de sua
prima Laura, a adorada do seu coração, que, contra toda a sua expectativa, ali
se achava sozinha, desacompanhada da infalível camarada de sempre, a sua
irmãzinha Olga, uma graciosa menina de oito anos, inquieta e pipilante como um
passarinho, mas que era às vezes ingenuamente maliciosa com a sua finura e
ditos infantis. A buliçosa pequena, esquecida por instantes da irmã, andava a
brincar agora, com algumas camaradinhas da vizinhança, lá para os fundos da
chácara. Laura, porém, vendo o primo meio tímido e embaraçado, disse-lhe
risonha e naturalmente:
— Entre,
Armando; sem cerimônia. Não se inquiete por me ver aqui sozinha. A Olga não
deve tardar. Venha apreciar este magnífico ocaso...
Ele acudiu a
sorrir:
— Mas
podemos ficar ambos aqui, assim tão afastados de todos e a sós?
E se o titio
e a titia falarem?...
— Por que
não?
Era o que
faltava se os parentes que se estimam já não pudessem mais estar a sós, por
instantes ao menos! Depois, o papai e a mamãe estão ali bem perto na varanda.
Deixe-se pois de tolices, e venha admirar comigo o esplendor do crepúsculo...
Ele então avançou para a frente do caramanchão e debruçou-se com ela à
larga janela rasgando-se entre a densa folhagem enfestada de trepadeiras em
flor.
O crepúsculo era, com efeito, suntuoso.
A praia de
Icaraí estendia-se, recurva em crescente, desde o Canto do Rio até à praia das
Flechas, na sua imensa faixa branca arenosa, recoberta para o alto, à fila das
vivendas e chácaras, de rasa vegetação e densos maciços de pitangueiras,
salpicadas de frutos rubros. Por toda ela, aqui e além, viam-se pequenos grupos
de pessoas, alguns caminhando lentamente, em passeio, para cá, para lá, na
batente do mar, enquanto outros pousavam, de pé ou sentados, nos montículos dos
cômoros, as fisionomias saturadas do imenso esplendor da tarde estival e
voltadas para o gigantesco lençol líquido e azul celeste, em certos pontos
chamalotados, da majestosa baía de Guanabara. Crianças traquinavam, em álacres
disparadas, ao longo da vagas quebrando-se metricamente em largas barras de
espuma, com um grosso marulho reboante e monótono; ou jogavam pedaços de pau ao
mar, que grandes cães terra-nova, a latir, numa pacífica jovialidade animal,
saltavam a buscar, a nado, em consecutivas viagens. Em frente a alguns chalés,
cortando a monotonia geral das construções brasileiras, ingleses, em claros e
leves trajos de verão, palravam e cachimbavam preguiçosamente, olhando os ares
luminosos e o mar.
Do outro
lado da Baía, as montanhas do Distrito Federal e da cidade do Rio de Janeiro,
correndo numa extensa, recortada e alta mancha azulada, faziam destacar, na
fulgurante barra escarlate do ocaso, os píncaros culminantes da Tijuca, do
Corcovado e da Gávea. Um grande steamer
transatlântico passava vagarosamente, em demanda dos pórticos ciclópicos da
entrada da baía, deixando uma esteira de aljôfares a ondular, popa fora, nas águas.
A ilha da Boa Viagem erguia-se, empinada a um lado, em bordado relevo
pinturesco, com a sua igrejinha em ruínas destacando tristemente no alto,
contra o céu azulado. A Itapuca e um outro minúsculo ilhote granítico evocavam,
numa vaga e idealizadora poesia de lenda, os velhos menhirs da Bretanha. Ao longo do Canto do Rio ostentava-se uma
multidão colorida de pequenas canoas de pescadores — umas puxadas em terra, em
descanso, outras carregadas com as suas escuras redes de tucum para os
primeiros lanços da noite. O vento leve do mar refrescava. A tarde, de uma
suavidade e transparência ideais, fulgurava deliciosamente, ao poente, pelos
brilhos de ouro do ocaso...
Armando e
Laura, muito unidos à janela do caramanchão, profundamente enlevados no encanto
da paisagem e do céu, entreolhavam-se de vez em quando, trocando palavras de
amor em vagas frases murmuradas...
De repente,
após um pequeno silêncio, formosa donzela, que tinha agora os seus negros olhos
fascinantes voltados para o morro da Conceição, teve este alegre grito
alvissareiro para o primo e namorado:
— Olha o
primeiro cordão de pássaros marinhos que aí vem! São os biguás que já começam a
recolher do fundo da baía, por onde andaram o dia inteiro à pesca, e buscam o
seu pouso noturno, lá fora, nas ilhas da barra. Mas como pairam hoje tão
alto!...
Efetivamente
era o primeiro bando de pássaros marinhos — desses que no verão costumam passar
todas as tardes do interior plácido da baía para as costas bravas do mar — que
se destacava no céu, por de sobre o morro da Conceição, voando, em demanda do
seu pouso de pernoite, direito às ilhas da barra. Plainava muito elevado esse
pelotão de asas, mantendo-se quase invariavelmente numa linha horizontal, que
só se quebrava quando, para vencer a pressão do vento do mar, se tornava
necessário um voo mais esforçado. Mas essa ligeira alteração de linha, que de
vez em quando ocorria e apenas durava momentos, jamais se fazia abruptamente,
por uma quebra brusca e rude, mas, constantemente, por súbitas e vagas curvas bem
dispostas e pelas quais dir-se-ia que naquela falange de pássaros os corpos de
cada um se achavam como ligados por delgadíssimo e invisível fio, formando um
estranho e aéreo rosário de asas palpitantes.
No entanto,
a esse primeiro cordão de aves do mar seguiam-se outros e outros, numerosa e
inconstatavelmente — uns voando alto como o primeiro, alguns numa elevação
média ao ar, e ainda alguns quase rastejando nas águas azuis da baía. E era
admirável ver passar, seguidamente, destacando no céu vesperal, essa infinita
sucessão de negras reticências voadoras — pois outra coisa não parecia serem
tais enfiadas de pássaros marinhos, cortando a tarde, norte-sul, para os seus
ninhos insulares da costa, perenemente embalados pela rouca cantilena das vagas
e pelas revoltas espumas do Atlântico...
Laura, então, inefavelmente deliciada com esses graciosos bandos de
pássaros, que amava ver deslizarem aos crepúsculos pelos céus estivais,
mostrava ao noivo vivamente cada nova fileira que surgia, aviventando e
pintalgando de pequeninos pontos, negros moventes o cetim doce do Espaço. E,
tomada de um vago arrebatamento de amor, dizia a Armando meigamente:
— Olha aquele enorme cordão que ali vem agora (e apontava um que pairava já
a meio da bela praia alvacenta, onde os grupos de pessoas se quedavam também,
ao instante, a contemplar os bandos de aves marinhas) e aquele... e aquele
outro... e ainda aquele... Repara bem como vêm todos unidos, tão felizes e
contentes, envoltos no mesmo afeto recíproco, para o sossego e o conforto dos
ninhos... Por que nós, seres humanos, não havemos de viver como esses belos
pássaros marinhos que, todas as manhãs, invariavelmente, partem juntos e cheios
de ardor para a batalha da vida e voltam sempre, pelas tardes, ligados pela
mesma afeição, ao remanso dos seus lares, para a paz e para as doçuras da
vida?... Um dia, quando for o nosso enlace, havemos de viver como esses
pássaros, sempre unidos e com um mesmo ideal na existência, gozando os nossos
amores num acorde da alma perfeito, suave, mútuo, sublime...
Ele,
fundamente enternecido ante aquelas palavras, murmurou:
— Pois sim,
querida, pois sim!...
E, arrebatado, ia para abraçá-la e beijá-la, quando a irrequieta e
espertíssima Olga, como um pequenino mas verdadeiro “demônio dos embaraços”,
entrou, graciosamente, às risadas, pela porta do caramanchão, seguida de um
bando gorjeante de crianças amigas...
Já então,
dentro desse torreão de verdura, se fizera uma densa penumbra, porque a barra
purpúrea do crepúsculo, se sumira de todo a oeste. As águas azuis da baía
enegreciam pouco e pouco, na gradativa e melancólica retirada dos últimos
clarões vespertinos. A praia de Icaraí apagava também a sua alvura, à poeira
sutil e funerária das ave-marias, que lentamente amortalhava na treva os derradeiros
encantos do dia. Nas altas e recortadas montanhas fronteiras do outro lado, os
rútilos e fulvos colares da iluminação pública da Capital Federal cortavam as
faldas, chapadas e declives com a pontilhada fulguração da sua luz recuada e
longínqua. O céu tornava-se de um azul ferrete muito denso, já todo pregueado a
leste pelos belmazes de ouro das estrelas. E, apesar do denso esfuminhado do
firmamento e das águas, onde tudo era ao instante uma poeirada de cinza,
distinguiam-se ainda as negras asas dos últimos pássaros marinhos, passando,
unidos em cordão, avançando, voando mais ligeiramente agora, com a noite, e
perdendo-se totalmente, por fim, sobre os montes, já escurecidos e tristes, do
saco da Jurujaba...
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