Papéis Velhos
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
Brotero é deputado. Entrou agora mesmo em casa, às duas horas da noite, agitado, sombrio, respondendo mal ao moleque, que lhe pergunta se quer isto ou aquilo, e ordenando-lhe, finalmente, que o deixe só. Uma vez só, despe-se, enfia um chambre e vai estirar-se no canapé do gabinete, com os olhos no teto e o charuto na boca. Não pensa tranquilamente; resmunga e estremece. Ao cabo de algum tempo senta-se; logo depois levanta-se, vai a uma janela, passeia, para no meio da sala, batendo com o pé no chão; enfim resolve ir dormir, entra no quarto, despe-se, mete-se na cama, rola inutilmente de um lado para outro, torna a vestir-se e volta para o gabinete.
Mal se sentou outra vez no canapé, bateram
três horas no relógio da casa. O silêncio era profundo; e, como a divergência
dos relógios é o princípio fundamental da relojoaria, começaram todos os
relógios da vizinhança a bater, com intervalos desiguais, uma, duas, três
horas. Quando o espírito padece, a coisa mais indiferente do mundo traz uma
intenção recôndita, um propósito do destino. Brotero começou a sentir esse
outro gênero de mortificação. As três pancadas secas, cortando o silêncio da
noite, pareciam-lhe as vozes do próprio tempo, que lhe bradava: Vai dormir.
Enfim, cessaram; e ele pôde ruminar, resolver, e levantar-se, bradando:
— Não há outro alvitre, é isto mesmo.
Dito isso, foi à secretária, pegou da pena e
de uma folha de papel, e escreveu esta carta ao presidente do conselho de
ministros:
Excelentíssimo senhor
Há de parecer estranho a vossa excelência
tudo o que vou dizer neste papel; mas, por mais estranho que lhe pareça, e a
mim também, há situações tão extraordinárias que só comportam soluções
extraordinárias. Não quero desabafar nas esquinas, na Rua do Ouvidor, ou nos
corredores da Câmara. Também não quero manifestar-me, na tribuna, amanhã ou
depois, quando vossa excelência for apresentar o programa do seu ministério;
seria digno, mas seria aceitar a cumplicidade de uma ordem de coisas, que
inteiramente repudio. Tenho um só alvitre: renunciar à cadeira de deputado e
voltar à vida íntima.
Não sei se, ainda assim, vossa excelência me
chamará despeitado. Se o fizer, creio que terá razão. Mas rogo-lhe que advirta
que há duas qualidades de despeito, e o meu é da melhor.
Não pense vossa excelência que recuo diante
de certas deputações influentes, nem que me senti ferido pelas intrigas do A...
e por tudo o que fez o B... para meter o C... no ministério. Tudo isso são
coisas mínimas. A questão para mim é de lealdade, já não digo política, mas
pessoal; a questão é com vossa excelência. Foi vossa excelência que me obrigou
a romper com o ministério dissolvido, mais cedo do que era minha intenção, e,
talvez mais cedo do que convinha ao partido. Foi vossa excelência que, uma vez,
em casa do Z... me disse, a uma janela, que os meus estudos de questões
diplomáticas me indicavam naturalmente a pasta de estrangeiros. Há de
lembrar-se que lhe respondi então ser para mim indiferente subir ao ministério,
uma vez que servisse ao meu país, vossa excelência replicou: — É muito bonito,
mas os bons talentos querem-se no ministério.
Na Câmara, já pela posição que fui
adquirindo, já pelas distinções especiais de que era objeto, dizia-se,
acreditava-se que eu seria ministro na primeira ocasião; e, ao ser chamado vossa
excelência ontem para organizar o novo gabinete, não se jurou outra coisa. As
combinações variavam, mas o meu nome figurava em todas elas. É que ninguém
ignorava as finezas de vossa excelência para comigo, os bilhetes em que me
louvava, os seus reiterados convites, etc. Confesso a vossa excelência que
acompanhei a opinião geral.
A opinião enganou-se, eu enganei-me; o
ministério está organizado sem mim. Considero esta exclusão um desdouro
irreparável, e determinei deixar a cadeira de deputado a algum mais capaz, e,
principalmente, mais dócil. Não será difícil a vossa excelência achá-lo entre
os seus numerosos admiradores. Sou, com elevada estima e consideração.
De vossa excelência desobrigado amigo,
BROTERO.
Os verdadeiros políticos dirão que esta carta
é só verossímil no despeito, e inverossímil na resolução. Mas os verdadeiros
políticos ignoram duas coisas, penso eu. Ignoram Boileau, que nos adverte da
possível inverossimilhança da verdade, em matérias de arte, e a política,
segundo a definiu um padre da nossa língua, é a arte das artes; e ignoram que
um outro golpe feria a alma do Brotero naquela ocasião. Se a exclusão do
ministério não bastava a explicar a renúncia da cadeira, outra perda a ajudava.
Já têm notícia do desastre político; sabem que houve crise ministerial que o
conselheiro *** recebeu do Imperador o encargo de organizar um gabinete, e que
a diligência de um certo B... conseguiu meter nele um certo C... A pasta deste
foi justamente a de estrangeiros; e o fim secreto da diligência era dar um
lugar na galeria do Estado à viúva Pedroso. Esta senhora, não menos gentil que
abastada, elegera dias antes para seu marido o recente ministro. Tudo isso iria
menos mal, se o Brotero não cobiçasse ambas as fortunas, a pasta e a viúva;
mas, cobiçá-las, cortejá-las e perdê-las, sem que ao menos uma viesse
consolá-lo da perda da outra, digam-me francamente se não era bastante a
explicar a renúncia do nosso amigo?
Brotero releu a carta, dobrou-a, encapou-a,
sobrescritou-a; depois atirou-a a um lado, para remetê-la no dia seguinte. O
destino lançara os dados. César transpunha o Rubicão, mas em sentido inverso.
Que fique Roma com os seus novos cônsules e patrícias ricas e volúveis! Ele
volve à região dos obscuros; não quer gastar o aço em pelejas de aparato, sem
utilidade nem grandeza. Reclinou-se na cadeira e fechou o rosto na mão. Tinha
os olhos vermelhos quando se levantou; e levantou-se, porque ouviu bater quatro
horas e recomeçar a procissão dos relógios, a cruel e implicante monotonia das
pêndulas. Uma, duas, três, quatro...
Não tinha sono; não tentou sequer meter-se na
cama. Entrou a andar de um lado para outro, passeando, planeando, relembrando.
De memória em memória, reconstruiu as ilusões de outro tempo, comparou-as com
as sensações de hoje, e achou-se roubado. Voluptuoso até na dor, mirou
afincadamente essas ilusões perdidas, como uma velha contempla as suas
fotografias da mocidade. Lembrou-se de um amigo que lhe dizia que, em todas as
dificuldades da vida, olhasse para o futuro. Que futuro? Ele não via nada. E
foi-se achegando da secretária, onde tinha guardadas as cartas dos amigos, dos
amores, dos correligionários políticos, todas as cartas. Já agora não podia
conciliar o sono; ia reler esses papéis velhos. Não se releem livros antigos?
Abriu a gaveta; tirou dois ou três maços e
desatou-os. Muitas das cartas estavam encardidas do tempo. Posto nem todos os
signatários houvessem morrido, o aspecto geral era de cemitério; donde se pode
inferir que, em certo sentido, estavam mortos e enterrados. E ele começou a
relê-las, uma a uma, as de dez páginas e os simples bilhetes, mergulhando nesse
mar morto de recordações apagadas, negócios pessoais ou públicos, um
espetáculo, um baile, dinheiro emprestado, uma intriga, um livro novo, um
discurso, uma tolice, uma confidência amorosa. Uma das cartas, assinada
Vasconcelos, fê-lo estremecer:
A L...a, dizia a carta, chegou a São Paulo,
anteontem. Custou-me muito e muito obter as tuas cartas; mas alcancei-as, e
daqui a uma semana estarão contigo; levo-as eu mesmo. Quanto ao que me dizes na
tua de H... estimo que tenhas perdido a tal ideia fúnebre; era um despropósito.
Conversaremos à vista.
Esse simples trecho trouxe-lhe uma penca de
lembranças. Brotero atirou-se a ler todas as cartas do Vasconcelos. Era um
companheiro dos primeiros anos, que naquele tempo cursava a academia, e agora
estava de presidente no Piauí. Uma das cartas, muito anterior àquela,
dizia-lhe:
Com que então a L... a agarrou-te deveras?
Não faz mal; é boa moça e sossegada. E bonita, maganão! Quanto ao que me dizes
do Chico Sousa, não acho que devas ter nenhum escrúpulo; vocês não são amigos;
dão-se. E depois, não há adultério. Ele devia saber que quem edifica em terreno
devoluto...
Treze dias depois:
Está bom, retiro a expressão terreno
devoluto; direi terreno que, por direito divino, humano e diabólico, pertence
ao meu amigo Brotero. Estás satisfeito?
Outra, no fim de duas semanas:
Dou-te a minha palavra de honra que não há no
que disse a menor falta de respeito aos teus sentimentos; gracejei, por supor
que a tua paixão não era tão séria. O dito por não dito. Custa pouco mudar de
estilo, e custa muito perder um amigo, como tu...
Quatro ou cinco cartas referiam-se às suas
efusões amorosas. Nesse intervalo o Chico Sousa farejou a aventura e deixou a L...
a; e o nosso amigo narrou o lance ao Vasconcelos, contente de a possuir
sozinho. O Vasconcelos felicitou-o, mas fez-lhe um reparo.
... Acho-te exigente e transcendente. A coisa
mais natural do mundo é que essa moça, perdendo um homem a quem devia atenções
e que lhe dera certo relevo, recebesse com alguma dor o golpe. Saudade,
infidelidade, dizes tu. Realmente, é demais. Isso não prova senão que ela sabe
ser grata aos benefícios recebidos. Quanto à ordem que lhe deste de não ficar
com um só traste, uma só cadeira, um pente, nada do que foi do outro, acho que
não a entendi bem. Dizes-me que o fizeste por um sentimento de dignidade;
acredito. Mas não será também um pouco de ciúme retrospectivo? Creio que sim.
Se a saudade é uma infidelidade, o leque é um beijo; e tu não queres beijos nem
saudades em casa. São maneiras de ver...
Brotero ia assim relendo a aventura, um
capítulo inteiro da vida, não muito longo, é verdade, mas cálido e vivo. As
cartas abrangiam um período de dez meses; desde o sexto mês começaram os
arrufos, as crises, as ameaças de separação. Ele era ciumento; ela professava o
aforismo de que o ciúme significa falta de confiança; chegava mesmo a repetir
esta sentença vulgar e enigmática: "zelos, sim, ciúmes, nunca". E
dava de ombros, quando o amante mostrava uma suspeita qualquer, ou lhe fazia
alguma exigência. Então ele excedia-se; e aí vinham as cenas de irritação, de
reproches, de ameaças, e por fim de lágrimas. Brotero às vezes deixava a casa,
jurando não voltar mais; e voltava logo no dia seguinte, contrito e manso.
Vasconcelos reprimia-o de longe; e, em relação às deixadas e tornadas,
dizia-lhe uma vez:
Má política, Brotero; ou lê o livro até o
fim, ou fecha-o de uma vez; abri-lo e fechá-lo, fechá-lo e abri-lo é mau,
porque traz sempre a necessidade de reler o capítulo anterior para ligar o
sentido, e livros relidos são livros eternos.
A isto respondia o Brotero que sim, que ele
tinha razão, que ia emendar-se de
uma
vez, tanto mais que agora viviam como os anjos no céu.
Os anjos dissolveram a sociedade. Parece que
o anjo L... a, exausto da perpétua antífona, ouviu cantar Dáfnis e Cloé, cá
embaixo, e desceu a ver o que é que podiam dizer tão melodiosamente as duas
criaturas. Dáfnis vestia então uma casaca e uma comenda, administrava um banco,
e pintava-se; o anjo repetiu-lhe a lição de Cloé; adivinha-se o resto. As cartas
de Vasconcelos neste período eram de consolação e filosofia. Brotero lembrou-se
de tudo o que padeceu, das imprudências que praticou, dos desvarios, que lhe
trouxe aquela evasão de uma mulher, que realmente o tinha nas mãos. Tudo
empregara para reavê-la e tudo falhara. Quis ver as cartas que lhe escreveu por
este tempo, e que o Vasconcelos, mais tarde, pôde alcançar dela em São Paulo e
foi à gaveta onde as guardara com as outras. Era um maço atado com fita preta.
Brotero sorriu da fita preta; deslaçou o maço e abriu as cartas. Não saltou
nada, data ou vírgula; leu tudo, explicações, imprecações, súplicas, promessas
de amor e paz, uma fraseologia incoerente e humilhante. Nada faltava a essas
cartas; lá estava o infinito, o abismo, o eterno. Um dos eternos, escrito na dobra do papel, não se chegava a ler, mas
supunha-se. A frase era esta: "Um só minuto do teu amor, e estou pronto a
padecer um suplício et..." Uma traça bifara o resto da palavra; comeu o
eterno e deixou o minuto. Não se pode
saber a que atribuir essa preferência, se à voracidade, se à filosofia das
traças. A primeira causa é mais provável; ninguém ignora que as traças comem
muito.
A última carta falava de suicídio. Brotero,
ao reler esse tópico, sentiu uma coisa indefinível; chamemos-lhe o "calafrio
do ridículo evitado". Realmente se ele se houvesse eliminado, não teria o
presente desgosto político e pessoal; mas o que não diriam dele nos pasmatórios
da Rua do Ouvidor, nas conversações à mesa? Viria tudo à rua, viria mais alguma
coisa; chamar-lhe-iam frouxo, insensato, libidinoso, e depois falariam de outro
assunto, uma ópera, por exemplo.
— Uma, duas, três, quatro, cinco principiaram
a dizer os relógios.
Brotero recolheu as cartas, fechou-as uma a
uma, emaçou-as, atou-as e meteu-as na gaveta. Enquanto fazia esse trabalho, e
ainda alguns minutos depois, deu-se a um esforço interessante: reaver a
sensação perdida. Tinha recomposto mentalmente o episódio, queria agora
recompô-lo cordialmente; e o fim não era outro senão cotejar o efeito e a causa,
e saber se a ideia do suicídio tinha sido um produto natural da crise.
Logicamente, assim era; mas Brotero não queria julgar através do raciocínio e
sim da sensação.
Imaginai um soldado a quem uma bala levasse o
nariz, e que, acabada a batalha, fosse procurar no campo o desgraçado apêndice.
Suponhamos que o acha entre um grupo de braços e pernas; pega dele, levanta-o
entre os dedos, — mira-o, examina-o, é o seu próprio... Mas é um nariz ou um
cadáver de nariz? Se o dono lhe puser diante os mais finos perfumes da Arábia,
receberá em si mesmo a sensação do aroma? Não: esse cadáver de nariz nunca mais
lhe transmitirá nenhum cheiro bom ou mau; pode levá-lo para casa, preservá-lo,
embalsamá-lo; é o mesmo. A própria ação de assoar o nariz, embora ele a veja e compreenda
nos outros, nunca mais há de podê-la compreender em si, não chegará a
reconhecer que efeito lhe causava o contato da ponta do nariz com o lenço.
Racionalmente, sabe o que é; sensorialmente, não saberá mais nada.
"Nunca mais? pensou o Brotero... Nunca
mais poderei..."
Não podendo obter a sensação extinta, cogitou
se não aconteceria o mesmo à sensação presente, isto é, se a crise política e
pessoal, tão dura de roer agora, não teria algum dia tanto valor como os velhos
diários, em que se houvesse dado a notícia do novo gabinete e do casamento da
viúva. Brotero acreditou que sim. Já então a arraiada vinha clareando o céu.
Brotero ergueu-se; pegou da carta que escrevera ao presidente do conselho, e
chegou-a à vela; mas recuou a tempo.
"Não, disse ele consigo; juntemo-la aos
outros papéis velhos; inda há de ser um nariz cortado".
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