Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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De pé, junto
às pedras das ameias, num recanto isolado do velho castelo gaulês, erguido
sobre a ponta penhascosa de uma enseada da Armórica cheia tradições e legendas,
uma dessas princesas venetas, vaporosas e albentes, que eram o encanto dos
Bardos e dos Cavaleiros, fixava longamente, com os olhos úmidos de saudade, as
águas mansas de Quiberon, desdobrando-se para além, cobertas de frisos
de ouro sob a iluminação do poente.
A pequenina
cabeça alourada, de um contorno rafaelesco, estava inclinada sobre a
planura azulada do golpo como ao peso dos seus sonhos ou da sua cabeleira,
premida artisticamente sob a alta touca frouxelada de rendas, de onde jorravam
para a testa, por cima das sobrancelhas escuras, leves madeixas cor de feno. E
seu rosto formosíssimo, de um rosado penugento, apoiava-se a uma das mãos
firmada numa aberta das ameias, enquanto a outra, suspensa no ar, agitava um
lenço claro, que ondulava ao vento.
A dois
passos, para trás, aprumado e elegante nas suas vestes estreitas, a listras
escarlates e pretas, o espadim de prata pendendo ao talim de seda, o belo Pajem
favorito, segurando às mãos, numa atitude de respeito, a longa cauda opulenta
do seu vestido de veludo azul, guarnecido de barras de arminhos e bordaduras de
ouro reluzentes. Olhava também o mar, mas o seu olhar amoroso, de um brilho
meigo, sorria como numa vaga alegria, em que a sua alma exultava intimamente
incendida num clarão de esperança que lhe inflava o forte peito, sempre abatido
e opresso, no seu amor obscuro, pelo alto desdém da Princesa.
E agora, que o Duque partia na
cruzada aventureira para as batalhas da Religião em terras remotas do Oriente,
surgia-lhe a vaga esperança de que ela viesse, um dia, movida de compaixão ou
afeto, suavizar, com um sorriso de graça, as amarguras da sua existência. E
sentia-se que o seu grande desejo, nesse supremo momento, era que a frota
aventureira, ali singrando lentamente, desaparecesse, de uma vez e para sempre,
arrastada pelas ondas, no seio da bruma argêntea...
Mas a loura
castelã, na dor desse apartamento, indiferente e chorosa, nem sequer observava
de leve o júbilo do jovem Pajem, imersa como estava na contemplação dolorosa
das velas queridas que fugiam para além.
A galé do
Duque panejava ainda entre pontas, em meio às águas dormentes. A alta
popa vogadora, toda coberta de incrustações e ornatos onde corriam grossos
verdugos de prata sobre largos quadrados de marfim e pérola, destacando no
coral do poente, fazia como o relevo risonho dessas ilhas encantadas que
apareciam e desapareciam, outrora, tentadoramente, pelos ocasos ou madrugadas
do norte, na limpidez sonhadora das lendas. E as outras naves menores, com as
suas asas de lona diminuídas à distância, deslizavam para o sul, como um bando
de alcíones albentes.
A formosa
princesa, nesse momento de mágoas, esquecia-se, a olhar as fugidias velas
boiantes, evocando tristemente a sua vida de outrora, desde o dia glorioso em
que o amado Paladino germânio chegara ao seu castelo bretão. Fora ao tempo
dessas batalhas memoráveis da Escócia, em que Wallace, à frente dos seus
altivos highlands, batia-se
leoninamente contra as hostes de Eduardo I. Os ruídos da derrota final desses
celtas insubmissos mas desventurosos tinham chegado à Bretanha com os primeiros
nevoeiros de inverno. dezembro, com os seus furores e os seus ventos glaciais,
fustigava toda a costa, sublevada numa tempestade tremenda. Uma noite, em que o
noroeste parecia querer arrancar os carvalhos nas florestas e despedaçar as
cabanas nas landes e montanhas brumosas, a sentinela do Farol das Rochas dera
para o castelo o sinal de um naufrágio sobre os altos cabeços. E logo a
guarnição despertara ao estrídulo clangor das buzinas, rompendo dentre as
ameias. A Princesa acordara também, na sua câmara vermelha, iluminada
nebulosamente pelo clarão da veilleuse; e,
envolta no seu manto de peles, correra através das salas silenciosas até ao
Torreão do Ocidente, para ver o que ocorria sob a borrasca inclemente. Das
janelas ogivais pôde divisar vagamente, como na alucinação de um pesadelo, a
cena agitada de uma nave ao longe, despedaçando-se por sobre os penedos.
Acometeu-a uma emoção e seus olhos marcaram-se de lágrimas, quando as rajadas
tumultuosas do vento lhe trouxeram aos ouvidos gritos roucos e aflitivos de
náufragos morrendo. Sentia-se inquieta e queria descer aos pavimentos térreos
para dar ordens aos marinheiros. Mas sossegara logo, porque descobrira à
claridade dos fuzis, que abriam por vezes através da noite densa, a sua brava
gente marítima já às voltas com o barco, nas rochas ou sobre os vagalhões
desfeitos. Não parara, porém, toda a noite, e ao outro dia, erguendo-se muito
cedo, dirigia-se para o Salão dos Troféus, quando o Pajem surgira, narrando-lhe
tudo minuciosamente. “A nau se desfizera
totalmente, perecendo a tripulação, e só se salvando um homem que parecia o
almirante, um príncipe talvez, pelas suas vestes e o seu nobre aspecto
guerreiro. Fora recolhido sem sentidos, com a fronte ferida e as vestes
despedaçadas; e assim se achava ainda fora das muralhas, no alpendre das galés
e das redes...”
Ela ouvira a
narração num desassossego e numa palidez, e dera ordem para que acomodassem o
náufrago no Torreão do Oriente. À noite, fora ela própria velar o enfermo, que
repousava sobre um vasto leito de acaju, todo esmaltado de chaparias de prata e
finas ramagens em relevo. A luz de uma lâmpada fosca, feita de vidro verde,
suspensa do alto teto de carvalho entalhado por delgadas correntes de bronze
saindo de um fofo de seda e oscilando brandamente, se destacava, sobre o veludo
amarelo dos grossos travesseiros, o seu rosto belo e forte, aureolado por leve
barba loura e longas madeixas à nazarena. Tinha o encanto marcial de um herói e
a enformatura máscula de um deus. Por isso ela se lhe rendera logo, tomada de
uma forte paixão de gaulesa. Mas, só alguns dias depois, já convalescente, é
que ele pode bem observá-la, encantar-se também pela sua feitura soberba. E,
numa mesma fascinação e magia, ficaram-se amando loucamente.
Ele
disse-lhe então o seu nome, a sua vida, o seu reino. Era Ludovico, da Germânia.
Possuía terras, castelos e inúmeras legiões guerreiras. Reinava sozinho, e
respeitado pelas outras nações, sobre um povo poderoso e valente, para quem ele
era a suprema felicidade e o supremo bem. Mas um emissário da Escócia chegara
um dia. E logo abandonara as suas terras, o seu trono, e atravessara o mar com
o melhor dos seus guerreiros... Batera-se pelos escoceses, tivera vitórias,
fora cantado nos hinos caledônios pelos bardos cavaleiros. De uma feita, porém,
num encontro terrível em que houvera traição, perdera-se a batalha, ao mesmo
tempo que outros revezes sucediam em todo o campo, coroando as armas inglesas.
A Escócia submetera-se; Wallace, ferido, fora feito prisioneiro. E como ele,
Ludovico, escapasse ao desastre com um grupo de guerreiros, resolvera partir,
tornar às suas terras do Reno. Após alguns dias de viagem, uma tempestade caiu
de repente: a frota então dispersara, sob a ira dos ventos; e a sua galé,
desmantelada e perdida, rolara para o sul, sem governo. Depois fora o naufrágio
sobre aqueles cabeços.
Ela, ainda
mais apaixonada e impressionada por aquela história aventurosa e heroica,
decidira imediatamente esposá-lo, encantada e num deslumbramento. E foi por uma
noite luarenta da Armórica, cheia de cânticos druídicos e da espiritualidade
das lendas, que os esponsais se celebraram, no castelo em festa, cujas janelas
flamantes iluminavam fantasticamente as planícies e as águas, despertando a
sonolência das landes e agitando as velhas almas sagradas que rondam à noite,
os menhirs... Por fim, vieram os dias
gloriosos da tumultuosa jornada ao Sequana: o inimigo submetido, em meio aos
vivas guerreiros, riquezas adquiridas, troféus conquistados, e alargadas as
terras do castelo em novos e poderosos domínios. E agora? O apartamento
tristíssimo, a saudade dolorosa e atroz. E ainda aquela jornada sobre o mar
infinito... Voltaria? Quando?... Ah! sorte enigmática, insondável e misterioso
destino!...
E junto às
pedras das ameias, recortadas em silhueta de coroa, a Princesa cismava, e de
seus olhos transparentes e azuis as lágrimas corriam, enquanto ao lado,
ocultamente, o pajem exultava e a galé velejante do Duque desaparecia além, sob
o poente dourado, numa esteira sinuosa de espuma...
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