Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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A alma humana é uma caverna tão
ponteada de esconderijos e retorcida de zigue-zagues que ainda não houve na
terra um homem, por mais atilado e meticuloso, que chegasse a conhecer a
metade, sequer, do seu próprio coração. Quando a gente supõe haver encontrado
uma vida simples, singela, sem complicações nem subterfúgios, eis que se abre
diante de nós um abismo, um vulcão, uma boca subterrânea, capaz de engolir o
peregrino que lhe busca desvendar o mistério. Mesmo no que diz respeito à
educação, isto é, às qualidades adquiridas pelo indivíduo, essas surpresas não
são raras nem, geralmente, pequenas. E era disso mesmo que eu me convencia,
mais uma vez, há poucos dias, ao voltar da última recepção do coronel Anfrísio
Guimarães, pai do Dr. Claudemiro Guimarães cujo nome é, pode-se dizer, um dos
orgulhos da nova geração de advogados brasileiros.
Homem de sólidos capitais, o
coronel, assim que o filho casou, teve, não se sabe por que, uma
desinteligência com a esposa, a velha e virtuosa D. Querubina, passando a
residir no palacete do novo casal, cujas despesas, de nove contos por mês, são
enfrentadas galhardamente pela sua fortuna. Madame Claudemiro, a nora, tem
pelos cinquenta anos do sogro uma adoração filial. O filho, o Dr. Claudemiro,
respeita-o duplamente como pai, e, principalmente, porque o velho lhe desculpa
sempre, como os bons pais, perante a esposa, as suas longas vigílias jurídicas
fora do lar. E como a vida lhes corra, a uns e a outros, como um ribeiro
japonês entre margens de crisântemos eu me dou, de vez em quando, ao prazer de
visitá-los, concorrendo para a enchente das suas salas nas costumeiras
recepções dos domingos.
Um desses dias, fui. E
conversávamos em uma roda sobre costumes orientais, quando, de repente, a
propósito de casamentos, eu me lembrei dos "reddis", povo da Índia
meridional, cuja história havia lido na véspera, e contei, com certo
desvanecimento:
— Os "reddis", nesse
particular, são originalíssimos. Entre eles, a mulher de quinze ou vinte anos
pode esposar um menino de seis, o qual será criado por ela. Enquanto, porém, a
criança não cresce, ela fica, por seu turno, entregue a um parente do marido,
geralmente ao pai deste, seu sogro, o qual poderá substituir o filho em todas
as eventualidades. E este esposo interino preenche de tal forma as suas funções
de tutor, que o marido, quando cresce encontra, já, a casa repleta de crianças,
que, sendo seus filhos, são, também, seus irmãos.
Como se fizesse em torno de mim
um silêncio geral, eu o aproveitei, continuando:
— Esses maridos não ficam, porém,
prejudicados; sendo as suas mulheres mais velhas do que eles, e os
"seus" filhos quase da sua idade, eles terão, mais tarde, a
compensação, fazendo com os filhos o que o pai fizera com eles. E assim vivem
muito bem.
Enquanto eu contava essa
história, notei que alguém se afastava do grupo. E quando acabei, fiquei estarrecido
com uma surpresa: junto de mim, com a minha bengala e a minha cartola na mão,
estava o coronel Guimarães, que me perguntava, pálido, com ligeiros tremores no
"cavaignac":
— O conselheiro pediu o seu
chapéu?
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