Os Dois
Irmãos
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Era uma vez dois irmãos que eram soldados num exército
estrangeiro, mas que eram tão maltratados que até fome passavam. Um dia disse o
mais novo para o mais velho:
Irmão, isto não se pode sofrer; é melhor nós fugirmos
e irmos correr esse mundo de Cristo.
Respondeu o mais velho:
Não, que nos podem apanhar e castigar-nos.
O mais novo, porém, não o quis atender e um belo dia
fugiu. Caminhou, caminhou sem encontrar que comer até que foi ter à porta de
uma grande quinta onde avistou um formoso pomar em que as laranjeiras vergavam
ao peso das laranjas. Bateu à porta e tornou a bater e como lha não viessem
abrir, resolveu-se a saltar o muro para ir comer laranjas. Como não lhe
aparecesse ninguém, ele comeu a fartar e escondeu entre o fato as laranjas que
pôde, para continuar a sua jornada; mas, ao chegar ao muro por onde tinha
entrado, por mais esforços que fizesse não lhe foi possível saltar e ouviu uma
voz que lhe dizia:
Para fora não, para dentro sim.
Ele respondeu:
Se é pelas laranjas, elas aí ficam.
E dito isto, deitou no chão as laranjas que levava
consigo.
Passaram-se muitas horas e ele, vendo que não
conseguia sair, foi passear pela quinta e então depararam-se-lhe vistosos
jardins, lindos pomares e verdes hortas.
Estava já cansado de tanto andar, até que chegou a um
lindo palácio e entrou e foi dizendo:
Com licença, com licença.
Ninguém lhe respondia.
Afinal foi ter a uma sala onde encontrou uma linda
menina que estava bordando. Ele desfez-se em desculpas e contou-lhe o que lhe
tinha sucedido; ela então respondeu-lhe que não tinha nada a desculpar, antes
estimava muito vê-lo e que, se ele quisesse, podia ficar naquele palácio. Como
se decidisse a ficar, ela levou-o a uma varanda e mostrou-lhe os jardins,
hortas e pomares, e, como ele se mostrasse maravilhado de tudo quanto via,
perguntou-lhe ela o que de tudo quanto tinha visto desde que entrara no palácio
lhe tinha mais agradado. O rapaz, como a fome apertasse, respondeu que o que
mais lhe agradava eram as couves que ele via na horta.
À ceia mandou a menina que lhe apresentassem na mesa
um prato de couves e combinou com a criada que quando estivessem à mesa
apagasse ela a luz. Estavam pois a menina e o rapaz para cear e a criada,
fingindo que ia espevitar a luz, apagou-a; então a menina levantou-se e disse:
Cada qual se agarre à coisa de que mais gostar.
E o soldado agarrou-se ao prato das couves. A menina,
despeitada, disse-lhe:
Visto que gostais tanto de couves, é bem que eu vos
mostre as que ainda não viste.
E nisto conduziu-o a uma varanda que deitava para um
curral de porcos e deitou-o para lá. Por mais que o pobre soldado pedisse à
menina que o tirasse dali, ela não o quis atender e lá o deixou até ao dia
seguinte.
O irmão mais velho do rapaz, quando deu pela falta
dele, fugiu também; seguiu os mesmos caminhos que o irmão seguira e
sucederam-lhe as mesmas aventuras; quando, porém, a menina do palácio lhe disse
que se agarrasse àquilo de que mais gostasse, ele agarrou-se a ela e disse-lhe
que de tudo o que vira no palácio e na quinta era ela que mais lhe agradara.
Então a menina respondeu-lhe que estava encantada naquele palácio até que lá
fosse ter um homem que gostasse mais dela do que das riquezas que a cercavam;
que era filha de um rei, o qual determinara que houvesse um torneio para ela
escolher entre os cavaleiros o que devia ser seu esposo e portanto que se
apresentasse ele muito bem vestido, que entre todos só havia de escolher a ele.
À noite mandou a princesa preparar uma rica cama em
quarto fronteiro ao dela; mas ele, quando ia para se deitar, em vez de ir para
o quarto que lhe destinaram, foi para o da princesa.
Esta, quando lá o viu, disse-lhe:
Enganaste-te, que não era este o quarto que te estava
destinado, mas fica, pois vais em breve ser meu esposo.
Depois contou-lhe o que sucedera com o outro soldado e
ele logo de madrugada pediu para o ir ver e, ao reconhecer o seu irmão, pediu à
princesa que lhe desse a liberdade, o que ela fez, dando-lhe muitas riquezas e
mandando-o que seguisse o seu caminho.
No dia seguinte disse ao seu escolhido que era preciso
que ele saísse do palácio e que fosse para tal hospedaria, que, em sendo o dia
do torneio, o iria avisar, pois convinha que o rei seu pai não soubesse o que
se tinha passado. Depois de se abraçarem, separaram-se.
O soldado foi ter à tal hospedaria e, como a dona da
casa tivesse uma filha muito linda e como ela percebesse que o soldado tinha
muito dinheiro, tais artes empregaram para prender o rapaz na hospedaria que
até lhe deram a beber água com dormideiras a ponto que ele não podia acordar e
dormia de noite e de dia.
Como se aproximasse o dia do torneio, a princesa foi
procurar o soldado e responderam-lhe que estava a dormir. A princesa, para não
o acordar, voltou no dia seguinte e deram-lhe a mesma resposta. Ela então foi
ter ao quarto onde ele estava e escreve-lhe no punho da camisa: “Tal dia é o
torneio.” Ele, quando acordou, reparou no que estava escrito no punho da
camisa, recordou-se do ajuste e levantou-se da mesa sem atender às donas da
casa, que lhe pediam que antes de partir bebesse uma gota de água. Elas queriam
era pô-lo a dormir.
Chegado o dia do torneio, o soldado vestiu um fato
mais rico ainda do que o dos fidalgos que iam ao torneio; montou um rico cavalo
e foi passear debaixo da janela da princesa, mas ia tão bem vestido que ela não
o conheceu. Então, o rei perguntou à princesa qual era o seu escolhido, ao que
ela respondeu que o seu escolhido não aparecera.
Findas o torneio, convidou o rei todos os cavaleiros
para jantar. O soldado foi sentar-se perto da princesa, e mostrou-lhe a manga
da camisa e então ela, levantando-se, disse, indicando o soldado: “Eis aqui o
escolhido do meu coração; é este o único homem que me preferiu às riquezas que
me cercam.” Casaram e viveram no meio das maiores felicidades.
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