11/28/2017

Os diabos e os velhos (Conto), de Wenceslau de Moraes


Os diabos e os velhos
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Fala a lenda japonesa.
Era uma vez um velho, que tinha um enorme lobinho sobre a cara, na face por sinal. Certo dia, achava-se ele na montanha, a cortar lenha — era esta a sua humilde profissão, — quando o surpreendeu uma terrível tempestade, chuva a potes, ventania desabalada, o raio faiscando nas alturas; tão terrível, que se viu obrigado a ficar por aqueles sítios e a buscar um abrigo para a noite. Abrigo, na floresta, era difícil problema; um grande tronco de árvore, escavado pelos séculos, ofereceu-lhe a única guarida.
No seu posto, agachado e sem poder dormir, foi o velho passando tristes horas. Alta noite, principiou a dar razão dum estranho vozear, longe a princípio, mas pouco a pouco avizinhando-se-lhe. — “Olá, resmungou, tanta gente por aqui, e eu que contava achar-me só?...” — E pôs-se a espreitar, curiosamente, sem sombra de receio.
O que o velho então viu, muito a custo, à luz fugidia dos relâmpagos, mal pode imaginar-se. Uma numerosa sociedade aproximava-se; mas nunca ao velho aparecera tão estranha sociedade como aquela. Era um bando imenso de patuscos, de diabos incontestavelmente, medonhos nos aspetos: uns, encarnados, vestidos de kimonos verdes; outros, negros, vestidos de kimonos encarnados; a um faltava um olho; a outros o nariz; alguns não tinham boca. Puseram-se a acender uma fogueira enorme, com palha, com folhas, com cavacos que encontraram; e as chamas sinistramente os patentearam. Acocorados em torno da fogueira, em duas filas, bebendo saké em amigável reinação, pareciam mesmo gente, os tais demônios. A vasilha ia passando à roda, de garra em garra, entre os convivas; e tantas voltas deu, e renovada tantas vezes foi, que já não tinham conto as bebedeiras. Um dos mais jovens assistentes ergueu-se como pôde, e começou uma cantiga, dançando ao mesmo tempo; os outros imitaram-no. Era então extremamente emocionante a vista da paisagem: a fogueira, ateada pelas rajadas sucessivas, alastrava-se e subia, furiosa, até às nuvens, em turbilhões de fumo e labaredas, e ia alumiando diabolicamente a cena inteira — ramarias de bambus e de pinheiros, profundezes de bosques, penedos gotejantes, torrentes espumosas, e ainda a turba imensa dos diabos esbravejando em mímicas atrozes. — Uns rodopiaram em vertiginosas piruetas; outros iam gravemente alçando a perna e ensaiando minuetes; outros, imóveis, ou antes querendo assim quedar-se, ondulavam em bordos grotescos de borrachos; e de colina em colina os ecos repetiam os torvos descantes em falsete, de mistura com as lamentações das árvores açoitadas pelo vento, e a salva de artilharia dos trovões. Berrava uma voz esganiçada: “Que grande reinação! mas bem quisera ver mais alguma novidade!...”
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Metido no seu esconderijo, o rachador de lenha passou por todos os tormentos que o espanto, o susto e o desamparo juntos produzem no ânimo dum velho. Por fim, passadas horas, ia já folgando na festa — ou não fosse ele japonês! — e tal poder teve sobre ele a bambochata, que lhe venceu escrúpulos e temores, e o levou a esta resolução formal. — “Matem-me embora estes diabos, se quiserem, mas pretendo também ir pandegar!” — Surdindo então da toca, barrete enfiado até às orelhas, machadinha suspensa da cintura, ei-lo a reunir-se à malta, a dar as boas-noites e a ensaiar passos de dança. Foi agora a vez de se espantarem os demônios; mas tão cômico era o velho, no seu pobre corpinho corcovado, avançando em meneios, e recuando após, e virando-se para a direita em cortesias, e voltando-se para a esquerda em reverências, e traçando no ar, com o pé descalço, estupendas parábolas coreográficas, que desataram todos em risota, gritando: — “Viva o velho! muito bem! que bem dança o velho!” — E prosseguiram depois, neste propósito: — “Queremos que tomes sempre parte em nossas festas, por seres mui reinadio; mas, como pode acontecer que não pretendas voltar mais, vais deixar-nos um penhor de que acederás a este convite.”
Consultaram-se entre si, e decidiram da consulta, extrair-lhe o lobinho; muita gente do povo, é notório, considera este achaque como um valioso talismã para ser-se afortunado. Ei-los pois, olhos atentos, braços nus, dedos palpando, lancetas e tenazes em ação; e o velho estendido sobre o solo, um segura-lhe uma perna, um outro a outra, outro prende-lhe os braços, outro delicadamente ampara-lhe a cabeça; e saíram-se do caso com limpeza, não causando a menor dor ao paciente. Depois, foram guardar o lobinho num estojo.
Quando, sereno já o tempo, rompeu a madrugada, uma bela madrugada cor-de-rosa, e os pardais começaram a papear nas ramarias, desapareceu então a malta dos demônios. O velho desceu à sua aldeia. Entrou em casa muito contente, ainda um tanto estonteado da bebida, sem o lobinho é claro, com a sua face muito lisa, sem o mínimo defeito. O caso maravilhou com razão a companheira, e a gente conhecida. Ia-se servindo o chá pela família e pelos curiosos que acorriam, sobre a esteira, junto do braseiro; e era uma chuva de exclamações e de perguntas, que obrigaram o velho a explicar, nos seus detalhes surpreendentes, as peripécias da estranha noite que passara na montanha.
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Ora, havia entre os vizinhos presentes um outro velho, que tinha um enorme lobinho sobre a cara, na face esquerda por sinal. Muito calado, assim com ares de não prestar ouvidos à palestra, ia em mente, o finório, retendo todas as minúcias. Não partilhando das crendices da gentalha, pelo contrário, desejoso de ver-se livre do tortulho, ia já estudando a maneira de entregar-se nas mãos de tão sábios curandeiros. Ei-lo pois, por uma noite escura, caminho da montanha; seguidamente, ei-lo abrigado sob o mesmo tronco de árvore, à espreita dos diabos. Não faltaram. Começou a bambochata, — risota, dança, vinho. — Juntou-se então aos demônios, a medo, um outro figurão. — “Olá, cá está de novo o velho! voltou, e vem dançar!” — Dançou, efetivamente, e sem ser muito rogado; mas era um desastrado; e tão mal desempenhou o seu papel, tão falto de jeito e de pilheria, que os demônios, tomando-o sempre pelo conviva primitivo, zangaram-se e disseram-lhe: — “Enganaste-nos, brejeiro! és um grande desjeitoso; devolvemos-te o penhor que nos deixaste e aconselhamos-te a que não pises mais este lugar.” — Um da chusma foi buscar o lobinho, e zás! pespegou com ele na face direita do sujeito. Saíra de casa com um, e voltou com dois, um lobinho em cada face. Pode imaginar-se o desapontamento do sujeito e a hilaridade dos vizinhos. Parece que, na aldeia, durante semanas e semanas, paralisou todo o trabalho; os velhos, as velhas, as raparigas, os garotos, não faziam senão rir, rir a bandeiras despregadas, — e o caso não era para menos! 

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