Os bois xucros
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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I
Eram
princípios de agosto. Nessa noite começavam os terços do Bom Jesus em casa do
Nicácio. Às ave-marias entrara a afluir para ali, aos poucos, toda a boa gente
das circunvizinhanças. No céu saíra já a rondar a lua, iluminando tudo com a
poeira sutil da sua luz fria de grande lâmpada incandescente de Brush. As
pequeninas casas de São Francisco branquejavam, afastadas umas das outras,
entre sebes, cafezais e laranjais murmurosos, como ovelhas, espalhadas pelos
socalcos e inclinações de uma encosta.
II
Desde meia
tarde que as raparigas da Maria Veríssima — a
Berta, a Bernardina e a Clara — curricavam pela casa das amigas,
gárrulas, alvissareiras e alegres, a comunicar as novas ocorridas, durante o
dia, na freguesia. Contara-lhas o irmão, o João, que andara na rede, lá fora. — Era o casamento, no dia seguinte, de José Alexandre com a Maria Luísa
Rosas, a do patacão. O escândalo do
Manuel Téa pegado ao romper do dia, com a Maricota Sodré, lá no sítio do
Claudino, na casinha do carro — forte pouca
vergonha! O Maurício esbofeteado pelo Joaquim Valente, no caminho do
campo, por umas histórias de ciúmes. O filho da Leandra, o magricela, que era
caixeiro e usava casaco comprido, como de padre, que chegara pela manhã da
cidade. O Antônio Rego, que viera dos Ratones com uma tropa de bois xucros: o Justino
já tinha apartado um para a vara; era um bagual, o raio, procurava a gente que
nem um cachorro e, na Cachoeira, segundo diziam, partira dois laços só de um
tirão!... Mas, de tudo, o que mais as encantava era o do Nicácio, desde muito
esperado, que ia afinal começar e que só acabaria oito dias depois, conforme o
velho lavrador prometera quando estivera de cama, quase a espichar, com as sezões.
— Ia ser só do fino o terço do Nicácio! exclamavam elas, numa balbúrdia
adorável. Uma semana inteirinha! Ai-ai! ia doer
de bom!...
E combinaram
com as do Chico Pereira para irem juntas, com a mãe, assim que anoitecesse. Mas
careciam da companhia de um homem, por causa dos bois xucros. Quem havia de
ser? Tinham tanto medo de bois xucros, Nossa Senhora! O pai andava fora, pelas
alturas do Arvoredo, na pescaria do mar grosso, e nesse dia não voltava; o
João, esse, não servia para nada, não prestava mesmo, o galinha, não valia o comer que comia, pois se tinha mais medo de
almas do outro mundo que elas próprias, coitadas, umas pobres mulheres! Mas
quem havia de ser então?... E na pressa de se ajustarem, para se irem logo
arranjar, não achavam quase um conhecido, um amigo, um parente que as
acompanhasse.
— Quem havia de ser? refletiam. Eram raros os rapazes
daqueles lados, e os poucos que havia andavam azeitando lá para as Coivaras, onde também se rezava o terço, no
Luiz Boião, para as bandas do porto. Os primos das Areias também não vinham,
por terem piorado das febres. Só se fossem os do Luiz Maria e os do Rufino, que
não perdiam nada, principalmente no Nicácio que era ainda contraparente deles.
Assentaram,
definitivamente, em aguardá-los, ir com eles, de companhia. Mas debalde
esperaram. Entrou a noite, fez-se o luar, e nada dos rapazes! Estavam já num
desespero, numa inquietação, aflitas, quase a chorar. Para os lados do Nicácio,
de vez em quando, um filete de luz rubra erguia-se, varava o ar, estourava numa
explosão de faíscas.
— Lá atiçam foguetes! Lá atiçam foguetes! Murmuravam.
Já principiou! Não! Ninguém podia perder aquele tercinho da alma!...
De instante
a instante, davam uma chegadinha ao Caminho Novo. Nada! Ninguém!
E entraram a
pedir à mãe para irem assim mesmo.
— Também isso de medos era uma bobagem! Tanta gente na
estrada! A noite tão clara! Que tolice! Depois, os bois não iam sair do pasto
àquela hora!...
E
convenceram a velha que, carinhosamente, resoluta mas supersticiosa, enfiou
para a rua de xale na cabeça:
— Olhem, depois não se queixem se vier por ali alguma!...
E puseram-se
em marcha, numa algazarra vivaz, cheias de risos onde transparecia a animação
da alegria — as mais audazes adiante, as mais
tímidas atrás, cosidas umas às outras.
A estrada
desenrolava-se branca, deserta, aqui e além malhada de sombras pelos
espinheiros e bananais das margens. O curvo azul dos céus resplandecia, muito
alto, cheio de um misterioso encanto. Numa vasta paz mística que as gargalhadas
perturbavam sonoramente.
III
O Sebastião
e o Vicente, companheiros inseparáveis das correrias noturnas, famosos quebras
que vagavam toda a noite pelos sítios, em endemoninhadas aventuras, metendo-se
atrás das porteiras ou das moitas da estrada para dar sustos às mulheres vinham
repontando na encruzilhada da praia, quando ouviram de repente, no vasto
silêncio, para os lados da Ponte Velha, gritinhos de moças, exclamaçõezinhas,
risadas. Pararam, puseram-se à escuta: queriam reconhecer as vozes... Ah! eram
as da Maria Veríssima e outras, que iam para o terço! E combinaram-se logo para
lhes pregar um susto.
— Havia de ser com os bois xucros... Elas tinham
muito medo dos bois xucros... A tropa toda estava no pasto do Constâncio...
E, já
descalços, com os tamancos nas mãos, largaram à disparada pela picada que dava
para lá. Esconderam-se numa roça de cana, do lado da porteira, junto à cerca de
espinhos. Aí, de vez em quando, chegava-lhes aos ouvidos a alegria ruidosa do
terço do Nicácio.
A casa
ficava a algumas braças, logo passando o riacho, num alto, do lado do morro.
Pelas janelas abertas saía uma iluminação muito viva, que dourava a verdura
circunjacente manchando a fria dealbação do luar. No pequeno terreiro em
frente, silhuetas escuras, microscópicas, moviam-se, apinhadas, à flamejação
das luzes. E vozes frescas e agudas de crianças brincando, punham na noite silenciosa
e albente uma zurzinada festiva.
Mas os dois
quebras terríveis não queriam saber de nada, com o ouvido assestado para os
lados de baixo. Daí a instantes sentiram de novo as risadas das raparigas que,
pouco a pouco, avançavam para eles, tornando-se mais nítidas, com o seu timbre
alegre e cristalino. Depois fez-se um estrépito claro de passos e vozes
femininas.
Eles,
erguendo a cabeça, puderam enxergar, por entre o crivo das ramagens, já próximo
à porteira, à esquerda, o bando das moças, todas de branco, e lindas, ao luar,
como visões de baladas: vinham pela banda de cima, agarradas umas às outras,
rente à cerca, aterrorizadas, num fru-fru de saias engomadas e roçagantes,
estacando, às vezes, com gritinhos e saltos, à proporção que enfrentavam o pasto:
— Ninguém fale!... ninguém fale!... ciciavam elas. Lá estão os
bois, Virgem Maria!...
E
prosseguiam sempre, cautelosamente, sutilmente, como sobre um tapete, por cima
da grama das beiradas. Já tinham passado a porteira quando os rapazes
lançaram-se às carreiras dentro do canavial, levantando, por entre a folhagem,
a matinada de um gado em tropel, e gritando:
— Arreda! arreda! Aí vêm os bois xucros!...
As raparigas
dispararam, estonteadas, aos gritos, num pânico, numa corrida de desastre,
precipitando-se dentro do pequeno rio, ou arranhando-se ao contato brutal dos
espinheiros da estrada...
Da casa do
terço acudiram logo, homens e mulheres, correndo:
— O que era aquilo, Jesus?!... O que era aquilo?!...
E vieram
encontrar as raparigas numa lástima, molhadas, feridas, descompostas,
empastadas de lama. Socorreram-nas logo, levando-as em braços para a casa do Zé
Rocha, que ficava para dentro de um cafezal, muito perto dali. Aí mudaram de
roupa, todas nervosas, a tremer, quase a chorar...
No caminho,
os curiosos, apenas conhecido o fato, entraram a dispersar. Um velho, que
chegava a cavalo, vindo do mar, e que soubera de tudo exclamava, brandindo o
relho, com cólera:
— Não tinha que ver, aquilo tinha sido obra dos rapazes
da praia, os canalhas! Ah! que se os pegasse... Lanhava-os! Grandíssimos cães!...
E, teso na
sela, com a nobreza de um cossaco, deu de rédea irado e partiu a galope, num
impulso vingador.
Os rapazes
então, que tinham saboreado tudo agachados ainda entre as canas para não serem
espancados, saltaram para a estrada, a toda, e irromperam às gargalhadas na
noite clara...
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