Onda
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
Na pia chamara-se Aurora; Onda era o nome que
lhe deram nos salões.
Por quê? A culpa era dela e de Shakespeare;
dela, que o mereceu; de Shakespeare, que o aplicou à instabilidade dos corações
femininos.
Tinha um coração capaz de abrigar seiscentos
cavaleiros em dia de temporal, e até sem temporal. Batessem-lhe à porta, que a
hospitaleira castelã abria sem maior indagação. Dava ao peregrino água para os
pés, pão alvo e vinho puro para o estômago, leito macio e aquecido para o
corpo. Mas, depois disto, fechava-se muito bem fechada em sua alcova, e,
rezando a Deus pela paz dos viajantes alojados, dormia tranquila em seu leito
solitário.
De tais facilidades em dar asilo a uns, mesmo
quando outros ainda estavam sob o teto hospitaleiro, é que lhe nasceu a
denominação que serve de título a estas páginas.
Pérfida como a onda, disse um dia um dos
enganados, vendo-a passar em um carro e indo parar à porta do Wallerstein.
O nome pegou.
Ora, vejamos, em minha imparcialidade de
historiador, se esta denominação lhe quadrava.
Coitadinha! não precisava muito tempo para
ler-lhe nos olhos, adivinhar-lhe os gestos, traduzir-lhe nos sorrisos, a
vivacidade, a dissimulação, a afabilidade que constituem o tipo da moça
namoradeira.
Via-se que ela conhecia a fundo esta arte de
atrair e prender os corações e as vontades com um simples volver de olhos, um
simples meneio de leque.
Dera-lhe Deus uma beleza que era a sua base
de operações. Não é que a beleza seja absolutamente necessária. Sei de alguém
que reconheceu uma mulher cujas feições examinadas, uma por uma, não tinham
traço algum de beleza; mas que sabia mover uns olhos que Deus lhe deu e de que
ela, seja dito em honra da verdade, fazia um mau uso. Tão mau, que este alguém
em questão, depois de se apaixonar por eles, achou-se um dia sem coração e sem
futuro...
Se era assim com aquela, o que não seria com
esta, que, além de um par de olhos vivíssimos, formosíssimos, eloquentíssimos,
possuía as verdadeiras formas de beleza feminina?
Onda sabia que tinha os olhos bonitos:
volvia-os a cada momento; sabia que possuía mãos de princesa: concertava os
cabelos de minuto a minuto; sabia que possuía uns dentes e uma boca divinos:
sorria a propósito de cada coisa; sabia que os seus pés eram dos mais
perfeitos: procurava não sujar o vestido quando descia do carro.
De modo que, amigos ou estranhos, pobres ou
ricos, poetas ou prosas, velhos ou moços, todas as criaturas que pertenciam ao
sexo do autor e do leitor destas linhas, ficavam fascinados, presos,
apaixonados.
Ela cuidava extremamente de pôr em relevo a
sua beleza mediante os inventos da arte. Era assinante dos melhores jornais de
modas e freguesa das melhores casas de novidades elegantes. Distinga-se porém:
a minha heroína era casquilha para ser namoradeira, o que é alguma coisa
diferente da casquilha por casquilhice. Se me é lícito aplicar uma fórmula
séria, direi que há entre as duas espécies a diferença que vai do princípio de
arte pela arte ao princípio de arte pela moral.
Onda sabia que o espírito do homem deixa-se
prender facilmente pelos atrativos artificiais juntos aos atrativos naturais, e
não deixava de aumentar pela cifra da elegância a unidade da beleza com que a
natureza a dotara.
Acrescente-se a isto, que Onda possuía um
gosto apuradíssimo. Mesmo na escolha dos mais simples trajares revelava-se nela
a discrição, o acerto, a boa mão, para usar de uma expressão popular.
Ora, não se resiste facilmente a quem reúne
tantos predicados; e se a simples
presença bastava para prender, o que não era
quando aquela boca se abria, como uma taça de mel do Himeto, e destilava, não
digo palavras, gotas de pura ambrosia do céu?
Assim que, naquelas guerras de amor, a
presença era o primeiro ataque, a palavra a batalha campal. Ninguém saía delas
são e salvo; saía-se ferido, e, o que é mais, sem esperanças de chegar a
coronel. O tempo dava alguma confiança aos que se enamoravam dela em virtude de
uma reflexão que lhes parecia justa; e era que nem toda a vida Onda faria de
sua beleza uma simples rede para passatempo. Esta esperança fortificava as
coragens e inspirava as constâncias. O próprio tempo os ia desenganando até a
hora em que se deu o episódio que vou narrar em poucas palavras.
No momento em que Onda, completando vinte e
cinco anos, pareceu chegar à idade razoável de passar do capricho ao amor sério
e digno, apareceu na intimidade da família desta misteriosa donzela um rapaz,
que meses antes chegara de uma longa viagem à Europa à custa de um tio
desembargador.
Antes de pisar o reino da nova Diana já
Ernesto (é o nome do herói) sabia com quem ia lidar. Meia dúzia de logrados
tiveram cuidado de instruí-lo da alcunha e das qualidades da moça.
Ernesto, depois de ouvir as narrações e as
imprecações de todos, puxou uma fumaça, e brandindo um chicotinho de junco,
olhou para os seis e disse-lhes:
— Não quero argui-los de fraqueza ou inépcia;
mas façamos uma aposta: o que perdem se eu conseguir domar essa gentil pantera?
— Ora! exclamaram em coro os seis ministros
decaídos.
— Isso não é responder.
Um dos interlocutores respondeu:
— Mas é impossível domá-la! disse um que era
poeta.
— Impossível? exclamou Ernesto. Meus amigos,
se Penélope não tivesse pressentimento de que, mais tarde ou mais cedo, Ulisses
lhe apareceria em casa, não fiaria tanto, e em vez de sustentar a tantos
pretendentes, sustentaria apenas um, o que era mais acertado, no duplo ponto de
vista da economia e do coração. Onda, como lhe chamam, espera sem dúvida
Ulisses que sou eu, e os vai iludindo até que eu apareça para entrar na posse
do direito que a natureza me conferiu. Esta é a verdade...
Cada qual dos seis pretendentes desenganados
tinha consciência de ter feito os últimos esforços, consciência em que entrava
um tanto de fatuidade; mas tinham isso, e foi por isso que, quando Ernesto
acabou de falar, responderam todos com a mais estrondosa gargalhada.
A fatuidade falara em primeiro lugar no
espírito de Ernesto; a gargalhada ofendeu-lhe o amor-próprio; insistiu, já
sério, ou antes com aquele riso especial que em nossa língua se exprime tão bem
pelo riso amarelo; depois de dez minutos de renhida discussão, assentou-se que,
no caso de vitória, Ernesto teria direito às seguintes prendas:
Um jantar no Hotel de Europa.
Um cavalo.
Um mês de verão em Petrópolis.
Uma assinatura do Teatro Lírico.
Um milheiro de charutos de Havana.
Saldar todos os credores.
Um manuscrito de Voltaire.
Esta última aposta era do poeta que se gabava
de possuir muitos manuscritos de homens célebres, e que, declarando o que
perderia, teve cuidado de fazer observar que perderia mais que todos.
No caso em que Ernesto fosse derrotado
pagaria aos outros, coletivamente, um lauto banquete.
Nisto despediram-se.
Ernesto estava compenetrado da situação.
Perder era correr-se de vergonha, sobretudo depois do tom em que falara e da
confiança que mostrava ter em si. Outras razões aduzia ainda: ganhar era, não
só envergonhar a tantos, como ainda entrar de cabeça alta na posse de uma
mulher formosa e de uma fortuna regular.
Já por esta reflexão fica o leitor instruído
de que Ernesto não era homem de dar uma polegada de si ao ideal. Uns através
dos olhos da mulher queriam ver a alma; Ernesto enxergou simplesmente uma bolsa
recheada. Este modo de traficar a própria pessoa não é nenhuma descoberta, nem
eu me dou por Arquimedes. Aponto simplesmente mais este traço do nosso herói.
Ora, o nosso herói, pesadas as coisas, ficou
determinado a entrar em combate.
"Qu'allait-il
faire dans cette galère?" perguntaria Geronte.
O caso é que foi.
A primeira coisa que Ernesto resolveu no seu
espírito foi não ceder um palmo ao encanto de Onda. Era o melhor meio para
operar melhor. Estando a frio podia calcular, e calcular era, pelo menos, criar
as mesmas vantagens da inimiga.
Não nos demoremos, leitor, com as primeiras
cenas deste namoro, que nos não adiantam nada. Saltemos uns vinte dias e
cheguemos a uma tarde de junho em que Onda, em companhia de duas amigas, espera
a visita de Ernesto.
Depois de certa espera anuncia-se a chegada
do herói. Onda recebe-o com o melhor dos seus sorrisos.
Ernesto, contente de si, cumprimentou o mais
graciosamente que podia a bela e as amigas, e depois, com uma graça que
procurava ser natural, assentou-se na cadeira que Onda lhe indicara com um
gesto.
Até este dia Ernesto tinha procedido muito
elementarmente: fazia um louvor à beleza de Onda entre dois suspiros que
magoavam à força de parecerem magoados. Era, na opinião de Ernesto, o primeiro
meio, o mais natural, o mais próprio. O que é certo é que, depois de alguns
dias, Onda lhe parecera decidida a aceitá-lo. Mas não seria fingimento? dizia
consigo Ernesto; e concluindo pela afirmativa, procurou empregar todas as suas
armas, de maneira que não só pudesse aferir a sinceridade dos sentimentos da
moça, mas ainda inspirar-lhe sentimentos verdadeiramente sinceros e profundos.
Ora, eis aqui como ele estreou a conversa:
— Já sei que está com saudades de mim?
— Ande lá, respondeu Onda, ainda bem que é o
primeiro a fazer o capítulo da própria acusação.
— Sou criminoso.
— Talvez, não... Mas sabe por que tive
saudades?
— Porque não venho aqui há cinco dias.
— Bem. E por que não veio?
Dizendo isto Onda cravou em Ernesto um desses
olhares que, procurando animar uma resposta, deixam o espírito em perplexidade
e confusão.
Ernesto esteve dois minutos sem responder,
mas também sem desviar os seus olhos dos olhos da moça.
É que aquele olhar era de fogo grego que Onda
guardara para a ocasião oportuna. Depois de uma ausência de cinco dias,
parecendo que a presa se escapava, cumpria prendê-la de modo que não lhe desse
mais ocasião de tão longos esquecimentos.
Esse olhar era tudo. Derrubaram-se os
projetos de Ernesto: vinha com a intenção de experimentar o ciúme da moça,
trazia já redigida a mentira que servia de arma, mas tudo se lhe esqueceu, tudo
se inutilizou.
Sem desviar os olhos de Onda, Ernesto
balbuciou estas palavras:
— Estive doente...
— Doente? Com efeito, está pálido.
Ernesto lançou rapidamente os olhos para um
espelho e reparou que estava realmente pálido.
Mas esta palidez não resultava de moléstia
alguma, ou antes resultava de uma moléstia que só agora se manifestava em toda
a sua ação.
Onda estava segura de seu triunfo. Via o
efeito que produzia no espírito de Ernesto e comprazia-se nessa vitória que tão
voluntariamente adiara. O essencial era convencer a Ernesto que ela o amava.
Ora, o tom das suas palavras, a magia do seu olhar, faziam entrar no espírito
do moço esta convicção.
Depois de duas horas de conversa, em que o
tempo pareceu correr mais rapidamente do que costumava, para Ernesto
entende-se, Onda estendeu graciosamente a mão esquerda para Ernesto e
perguntou-lhe:
— Vai ao Teatro Lírico?
— Oh! com certeza!
Ernesto não se pôde furtar a um desejo de
tomar alguma coisa do tesouro que se lhe oferecia. Levou a mão de Onda aos
lábios e imprimiu-lhe um beijo apaixonado.
— Deste beijo, pensava Ernesto, pode nascer a
minha ventura. Talvez até hoje ninguém ousasse a isto.
E na verdade, Onda pareceu estremecer
sentindo os lábios do moço na pele alva e fina da sua mão de princesa.
Quanto às duas amigas, essas voltaram o rosto
e não puderam esconder um sorriso, ao ver a figura de Ernesto e a graça cortesã
com que ele se curvou e beijou a mão de Onda.
Ernesto saiu com os sentidos exaltados, o
coração palpitante, as ideias confusas; estava definitivamente namorado, e, o
que é mais, pensava ele, tinha agarrado a bela fugitiva.
À noite foi ao Teatro Lírico. Charton, que
então fazia as delícias do público fluminense, cantava nesse dia uma das suas
melhores criações. O teatro estava cheio; todos aplaudiam a artista com sincero
entusiasmo; nessa noite não cantava a competidora de Charton, a Emmy Lagrua; e,
como é sabido, os frequentadores do teatro tinham-se dividido em dois partidos
extremados, fogosos, mais fogosos e extremados que os partidos episcopais no
concílio de Nicéa.
Só Ernesto não se filiava a nenhum partido; o
único objeto de partido para ele fulgia em um camarote da 2ª ordem. Onda estava
esplêndida nessa noite. De sua cadeira Ernesto assestava quase constantemente o
seu binóculo contra o camarote. Onda, que acompanhava todos os gestos e
movimentos de Ernesto, fitava o olhar nos vidros do binóculo do moço e deixava
errar nos lábios um sorriso fascinador.
Ernesto sabia que o sorriso era para ele, e
subia proporcionalmente ao sétimo céu.
Mas seria Ernesto o único cortesão da beleza
de Onda que se achava no teatro? Outros havia que, de diversos pontos da sala,
como outros tantos observadores astronômicos, estudavam a marcha e a beleza
daquele planeta. No fim do primeiro ato convenceram-se todos de que havia na
sala um preferido.
— Quem será? foi a primeira pergunta que cada
qual fez a si.
E a resposta mental que para eles mesmos
deram a esta pergunta foi:
— É natural que ele vá ao camarote.
E todos, caminhando por vias diversas e
separadamente, chegaram quase ao mesmo tempo a um mesmo ponto: o camarote de
Onda.
Eram três. Ernesto completava o número de
quatro. Foi o último que entrou, radiante e feliz.
Quando entrou viu os três competidores, que
ele já conhecia, conversando alegremente com a esquiva dama.
Por que alegremente?
Onda, ao primeiro que apareceu e que a
censurara com meias palavras, respondeu:
— Pelo indiferente, ri-se; pelo escolhido...
sente-se.
O pretendente sentiu bater-lhe o coração
violentamente.
A tia de Onda, que se achava no camarote, não
ouviu a conversa, nem que ouvisse lhe prestaria atenção.
Casquilhice.
Ao segundo despeitado Onda respondeu com um
olhar significativo, como aquele que abatera Ernesto; ao terceiro poupou os
olhos para poder falar a mão graciosa cujos músculos pareciam outros tantos
fios elétricos.
De modo que, supondo-se cada qual mais feliz
que o outro, enchia-se de certa vaidade e olhava com sincera compaixão para os
outros.
E mais que todos Ernesto, que entrou no
camarote com aquela confiança de quem sabe que causa uma grande satisfação, tão
grande como seria grande o aborrecimento que os outros causariam.
E nenhum, depois de meia hora de conversação,
mudava de parecer. Onda sabia conservar no espírito de cada um a convicção da
sua preferência: uma palavra ambígua, um meneio de leque, um olhar, um gesto,
tudo lhe eram armas para combater a dúvida e afirmar a fé no coração dos seus
adoradores.
O resto da noite passou-se do mesmo modo,
repetindo-se as visitas e confirmando cada um no espírito do outro a opinião de
que era néscio e importuno.
No fim do espetáculo foi Ernesto que teve a
honra de acompanhar Onda ao carro. Ia de cabeça alta, lançando um olhar de
desdém para todos, e dirigindo-se frequentemente a Onda, que lhe respondia com
suma graça e volubilidade.
Junto aos últimos degraus da escada da porta
lateral que dá para a Rua dos Ciganos estavam os seis amigos da aposta,
risonhos e interrogativos.
Ernesto viu-os, cumprimentou-os levemente e
dirigiu-se para a porta. Um dos outros competidores trazia a velha tia de Onda
e apressou-se a descartar-se dela fazendo-a entrar na carruagem. Depois,
Ernesto conduziu a moça, fê-la entrar e ia dizer duas palavras de despedida
quando sentiu que lhe ficara na mão o lenço de cambraia da formosa Onda.
Antes que o menor sinal de admiração a
comprometesse, Onda estendeu a mão a Ernesto e disse-lhe com voz doce e
insinuante:
— Até amanhã!
— Até amanhã!
A tia também repetiu, entre dois bocejos, as
duas palavras:
— Até amanhã!
Mas Ernesto já ali não estava. Beijar o
lenço, metê-lo na algibeira do paletó e correr para os amigos que o esperavam à
porta do teatro, foi uma e a mesma coisa.
— Bravo! bravo! repetiram em coro os amigos.
Ernesto não sabia que dizer. Olhava para
todos com um sorriso quase alvar, tal era o estado em que o deixara a
inesperada ventura da dádiva do lenço.
— É minha! pensava ele.
— Então ganhaste a aposta? perguntaram os
outros.
— Não sei: esperem. Quero declarar-lhes a
vitória completa no dia em que puder apelar para o reconhecimento da igreja.
— Ah! ah! então casas-te?
— Por que não? Oh! meus amigos, mais tarde ou
mais cedo hei de acabar por aí. Sinto em mim a bossa conjugal. Ninguém foge à
sina. Ora, se há de ser com outra, por que não há de ser com esta? Não lhes
disse eu que era o Ulisses desta Penélope? Verão se acertei. O que é certo é
que, como o pai de Telêmaco, tive meus naufrágios, e no fim de tantas
atribulações aguardo a felicidade doméstica. Trato agora de flechar os
pretendentes. Meus caros, a confiança e a coragem são tudo. Chénier tem razão:
.............. Ami, reprends courage,
Toujours le ciel glacé ne souffle point l'orage.
Le ciel,
d'un jour à l'autre, est humide ou serein.
Esta conversa já tinha lugar na rua. Uma
parte da noite, em casa de um dos amigos, onde foram todos tomar chá, Ernesto
continuou no mesmo falar de segurança, e nos outros, apesar da própria
experiência, foi desaparecendo a dúvida para dar lugar a um convencimento que
não era isento de despeito.
No dia seguinte Ernesto foi à casa de Onda e
voltou de lá mais do que encantado. A noite é boa conselheira; antes de
conciliar o sono, Ernesto refletira que a presença do lenço em sua mão poderia
ser fortuita, e com este pensamento diminuíram-se-lhe umas boas braças do
castelo que ele já construíra em seu espírito. Mas tão feliz era que se enganou
na sua presunção. Quando, para sondar a verdade das coisas, disse a Onda que
esta deixara cair por descuido o lenço, ela olhou-o fixamente e disse-lhe:
— Lenço é apartamento. Vamos experimentar se
nos havemos de separar.
Era positivo.
Ernesto ficou fora de si.
Nessa noite chegando à casa resolveu escrever
à moça mostrando-lhe o estado da sua alma.
Deu ordem para que o não incomodassem; mandou
fazer café, acendeu um charuto, leu e releu Propércio e Millevoye, e depois de
duas horas de incubação intelectual redigiu o seguinte manifesto do coração:
Minha prezada Senhora. — Uma palavra sua vai
ser para mim a condenação ou a salvação. Meu coração chegou ao estado de só
admitir estas soluções extremas.
Bem sei quão grande é a minha ousadia. Bem
sei que pretender o seu amor é aspirar às estrelas do céu, à luz divina da
glória eterna; sou talvez indigno de receber das suas mãos a coroa do meu
supremo martírio. E se, no meio desta ventura, posso discernir estas coisas, é
preciso que o amor que lhe consagro tome proporções tais que me não seja
possível conservar no fundo da minha mediocridade.
Amo-a; não cuide, porém, que este amor,
semelhante ao amor comum dos homens, fosse apenas o resultado de uma fantasia e
a conclusão de um cálculo. Vão. Este amor é caso de vida e de morte; é um
desses afetos em que a alma se empenha toda e do qual não pode sair sã e salva.
Desde que a vi, senti que o meu coração tinha
encontrado o seu ideal; onde há aí beleza mais admirável, mais rara, mais
completa? A antiguidade tinha repartido os diversos modos da beleza nas deusas
que inventou. Mas nesta que o meu coração faz glória de amar reúne-se tudo: a
majestade de Juno, o recato de Hebe, a beleza de Ciprina, o aspecto virginal
das três Graças.
A um coração de poeta, posto que de gênio não
o seja eu, tal reunião de encantos não podia passar despercebida; vê-la, foi
tornar-se cativo, e cativo desse cativeiro mágico que tem o dom de fazer beijar
os ferros e amar a condição. É que cativar-me assim, é libertar-me, é deixar os
laços da matéria, é remontar-me à pura região dos gozos desconhecidos.
Em tal estado, a afirmativa ou a negativa é
uma sentença de vida ou de morte. Nas suas mãos está fazer de mim um venturoso
ou um desgraçado.
Talvez fora melhor que isto que aqui lhe digo
no papel fosse expresso de viva voz; mas eu não sei se teria coragem de falar.
Longe de seus olhos sinto-me menos acanhado, mais livre, mais próprio para
exprimir o estado do meu coração.
Aguardo a sua sentença. — Ernesto.
Apesar de certa incongruência e da aparente
afetação desta carta, Ernesto releu-a contente, admirando o belo estilo que até
ali não descobrira em si.
Fechou a carta e arranjou meio de fazê-la
chegar secretamente às mãos de Onda.
A moça respondeu verbalmente que, no dia
seguinte, no sarau que se dava em casa de um tio dela, se entenderia com
Ernesto.
Ernesto recebeu com alguma amargura esta
resposta. Todavia sempre esperançado preparou-se para o sarau, e lá foi ter.
Antes de ir passou pelos olhos, durante o
dia, a cópia da carta com que ficara, e a cada período que lia parecia-lhe que
Onda não era capaz de resistir.
Não quis ir cedo. Pareceu-lhe melhor fazer-se
esperar e fazer nascer da impaciência uma resposta mais pronta. Só às onze
horas compareceu ao sarau.
Dançava-se uma polca.
Onda e um cavalheiro (exatamente um dos
pretendentes do Teatro Lírico) faziam as delícias dos apreciadores da polca.
Ernesto, com o coração aos pulos, esperou,
encostado a um portal, que a dança acabasse.
E posto que dali a dez minutos a polca se
tivesse acabado, tal era a impaciência de Ernesto, que lhe pareceu um século. É
que não era só a impaciência, era já o ciúme de vê-la nos braços de outro.
Terminada a polca, Onda, contra as previsões
de Ernesto, foi percorrer alguns salões pelo braço do cavalheiro.
Que significava aquilo? Ernesto ficou algum
tempo perplexo. Finalmente refletiu que, tendo chegado poucos minutos antes,
não podia a moça saber logo da sua presença.
Devia ir falar-lhe.
Dava alguns passos quando um dos amigos da
aposta acercou-se dele e pediu-lhe novas do namoro.
Ernesto, procurando sorrir, disse que mais
tarde poderia dizer alguma coisa.
— Os outros estão aqui, disse o amigo.
— Todos? perguntou Ernesto.
— Todos.
— Bem, até logo.
E dizendo isto, Ernesto foi-se em procura da
mulher que o prendia.
Atravessando uma sala viu dirigir-se para ele
o par que procurava. Deteve-se. E para aparentar indiferença e acaso foi a um
espelho e aí fingiu consertar os cabelos, com a mão, ao de leve.
Ficava assim de costas para os dois e podia
ver no reflexo do espelho se ela reparava nele ou não.
Ora, o que ele viu foi a moça trocar com o
cavalheiro um olhar de ternura, e este arrancar-lhe das mãos, que apenas
opuseram fraca e doce resistência, uma pequena flor que ela tirara do
ramalhete.
Ernesto enfiou.
Após a comoção da cena que acabava de
presenciar, outra comoção o tomou: foi a vista do rosto pálido com que ficou.
Os dois passaram.
Ernesto deixou-se cair em um sofá.
Quase a ganhar a batalha, no momento da
vitória decisiva, encontrava-se repentinamente no mesmo ponto em que começara
as lutas.
Quando passou a primeira comoção veio-lhe à
lembrança a carta que escrevera e cuja resposta ia buscar. Mas devia pedi-la
depois do que presenciara? E não era a sua posição uma posição ridícula?
Pensando em tudo isto, Ernesto levantou-se e
passeou à toa por todas as salas e corredores.
Dançava-se, cantava-se, tocava-se; ele nada
via, nada ouvia; via o ridículo e o desdém. Supunha ter metido uma lança em
África e descobria agora que era tão medíocre como os outros.
Nestas reflexões amargas andava, quando, ao
passar por uma das salas, ouviu a voz de Onda.
A voz partia do vão de uma janela.
Ernesto escondeu-se no vão da janela contígua
e procurou cobrir-se entre as cortinas para não ser visto se alguém passasse.
Depois prestou o ouvido à conversação e
procurou distinguir as vozes. Não havia voz de homem. Além de Onda, havia uma
voz de mulher. Falavam o nome dele. Redobrou de atenção.
— Como és feliz! dizia a voz desconhecida.
— Feliz?
— Ou antes ardilosa!
— Por que ardilosa? Tenho eu culpa que sejam
todos os homens de uma mediocridade de espírito incomparável? Divirto-me, nada
mais.
— Oh! mas esse, o Ernesto, não é tão medíocre
assim...
— Mais que os outros. Tem o que os outros não
tinham ou não pareciam ter: a vaidade de agradar por seus encantos.
— Pois este?...
— É o que te digo. Acreditarás tu que foi só
depois de muitos dias que me resolvi a prendê-lo como todos? Ao princípio
afetava uma indiferença sem igual: parecia alheio a mim, e entretanto eu sabia
que ardia por figurar entre os meus adoradores. Hoje é o pior de todos. Se
visses a carta que me escreveu!
— Ah! escreveu-te...
— Oh! um regimento de tolices, sem pés nem
cabeça, umas coisas já muito velhas e batidas, declarando-me que da minha
decisão dependia a felicidade ou a condenação dele. Quer fazer supor que morre
se eu responder que não o aceito em meu coração. Que tal?
— Pensei que este meio já se não usava.
— Usa-se, usa-se...
— Mas dize-me cá; não gostas de alguém?
— Por ora, não.
— Mas deveras ninguém te inspirou ainda amor?
— Não. Que queres? Fui educada com o recato maior
deste mundo; entrando na convivência das outras, e nas distrações nos bailes,
não pude logo ao princípio tomar afeição alguma.
Foi tempo esse que gastei em duas coisas: em ler e observar. Ora, da leitura
adquiri ideias talvez um pouco absurdas, mas enfim adquiri, e fora das quais
não compreendo o amor. Gosto de amar e ser amada por inspiração, e com
verdadeira paixão. Até aqui nada tenho visto além de uns amores vulgares que
não contentam o coração.
— E sabes se algum dia encontrarás?
— Talvez... quem sabe?
— Ah! maliciosa! Aí anda coisa!
— Qual!
— Quem sabe se este último, este de hoje, o
da flor?...
Nisto passava um grupo. As vozes calaram-se e
Ernesto foi obrigado a coser-se mais com a janela e a cobrir-se com a cortina.
O rapaz suava ouvindo aquelas coisas a seu
respeito. Sentia o efeito que se sente ao acordar de um sonho em que se parece
estar no cimo de uma montanha, quando realmente se está a três ou quatro palmos
do chão.
Não era bem o amor dele que se ressentia; era
mais o amor-próprio ferido naquelas palavras com que era tratado.
Depois de uma batalha tão renhida e cuidada,
reparava ele que não passara de um joguete aos manejos de uma dama ardilosa e
namoradeira.
Quando pôde de novo ouvir a conversa que,
aliás, lhe chegava entrecortada e incompleta, já as duas moças tratavam de
outro ponto da questão.
— Mas o que pretendes fazer? perguntou a
desconhecida.
— É conforme o modo por que ele me falar.
Talvez o receba com uma secura tal que ele nunca mais se lembre de mim.
— Não tens pena de perdê-lo?
— Ora, rei morto, rei posto.
— Dize antes: reis mortos, reis postos!
Riram ambas, ambas se beijaram, e dando o
braço uma à outra saíram dali como dois anjinhos que acabavam de pedir a Deus
por uma alma condenada.
Ernesto, apenas sentiu que elas já estavam
longe, saiu do seu esconderijo.
Que iria fazer? Esteve alguns instantes sem
tomar determinação alguma. Ainda não tinha falado a Onda; o melhor meio que lhe
pareceu era dirigir-se à moça, cumprimentá-la e não tocar no assunto da carta.
Depois, se ela viesse de si ao assunto, falar conforme o tom das suas palavras
e procurar fugir ao ridículo e à afronta.
Tendo tomado esta resolução, Ernesto caminhou
para o salão em busca de Onda. Tocava-se o sinal de uma quadrilha. Ernesto
dirigiu-se para Onda com um sangue frio afetado e fez-lhe, o mais gracioso e
indiferente que pôde, um cumprimento. Depois convidou-a a dançar.
— E se eu tiver par? perguntou a moça, um
pouco admirada da discordância que notava entre a carta e aqueles modos.
— Paciência; esperarei.
— É tão resignado assim?
— Por que não?
Mas os olhos de Onda, com que Ernesto não
contava, iam fazendo já o efeito do costume, de modo que a indiferença com que
ele viera determinado começou a dar lugar a uma ternura misturada com humildade.
Onda respondeu:
— Pois quero dar-lhe uma prova de amizade.
Vou roer a corda ao par.
— Oh! isso!
— Por que não? Está dito: vamos dançar.
E, levantando-se, aceitou o braço de Ernesto,
que nada pôde responder a estas palavras, tão estranho lhe pareceu aquele
procedimento.
Formou-se a quadrilha e ambos dançaram, tendo
exatamente por vis-à-vis a
companheira de Onda e um dos rapazes da aposta com Ernesto.
É inútil dizer que nenhum cavalheiro alegou a
falta de Onda, visto que ela não tinha realmente par aceito para a quadrilha.
Durante a dança os ressentimentos de Ernesto
foram desaparecendo cada vez mais. No fim estava quase como na hora em que
escreveu a carta.
Terminada a quadrilha foram os dois para o
pequeno terraço da casa.
A noite era das mais belas. Esta
circunstância serviu de tema para as primeiras palavras de Ernesto, a quem
ocorreram no momento as palavras de uma situação de romance que ele lera alguns
dias antes.
Enquanto a conversa não passou dessas
banalidades, Onda mostrou-se amável a mais não ser. Mas Ernesto, iludido por
essas aparências, tendo esquecido perfeitamente a conversa da janela, ousou
falar bruscamente na carta e pedir uma resposta.
Da primeira vez Onda não respondeu.
Ernesto insistiu na exigência.
Onda convidou-o a levá-la ao salão.
— Mas a carta?
— A carta? disse ela. Que carta?
— A que eu lhe mandei.
— Ah! ainda não li. Tive tanta coisa em que
cuidar ontem.
Ernesto enfiou deveras.
— Não leu?
— Não li.
Ernesto não se pôde ter, e referiu a conversa
que ouvira entre Onda e sua amiga. Depois de ouvir a narração que Ernesto
matizou de pontos de admiração, Onda contentou-se em responder:
— Foi sonho!
Ernesto não disse palavra ouvindo isto.
Houve entre ambos um momento de silêncio.
Onda encetou conversa sobre coisas diversas.
Ernesto mal respondia por monossílabos.
Enfim, Onda pediu a Ernesto que a conduzisse
ao salão. Ernesto deu-lhe o braço e disse-lhe que também não se demoraria no
baile.
— Mas irá em minha casa amanhã, sim?
— Para quê? Para ouvir a leitura...
E cortou subitamente o que ia dizer.
Mas Onda adivinhou.
— Ora, disse ela. Não falemos mais nisso. Vá,
que eu gosto de sua companhia.
Ernesto levou Onda ao salão e saiu sem
despedir-se de ninguém.
Estava humilhado.
No dia seguinte, os seis amigos de Ernesto
receberam o seguinte bilhete:
Perdi a aposta. Estão convidados a jantar
hoje no Hotel de Europa às cinco horas. Enterro o amor. — Ernesto.
Às cinco horas os sete amigos estavam à roda
de uma mesa em uma das salas particulares do Hotel de Europa.
— Com que, perdeste? disse um.
— Não te dizíamos nós! acrescentava outro.
— Aprendeste à tua custa, acudia o terceiro.
— Não serás tolo em outra ocasião, observou
filosoficamente o quarto.
— São as lides que formam cavalheiros: isto é
de um poeta, citava o poeta da reunião.
— O que te vale é que não pareces ter perdido
muita coisa do coração neste negócio, dizia o último.
— É verdade, respondia Ernesto, dizes muito
bem. Perdi, mas salvei o coração. Meu amor-próprio não deixou de ressentir-se
com isto; mas juro que fiz o que era humanamente possível. É que realmente a
rapariga é insensível. Pois, olha, posso afirmar que eu conheço o nome aos bois...
Toda a conversa foi por este teor.
E era de ver a alegria sincera com que
Ernesto abriu a carteira, no fim do jantar, para saldar a vistosa conta que o
caixeiro lhe apresentara.
Devo dizer que o jantar que serviu de funeral
ao amor de Ernesto foi dos mais escolhidos.
Duas palavras, em forma de epílogo, para
fechar este ligeiro episódio.
Onda prosseguiu nos seus amores fáceis, dando
a todos os mesmos desenganos que custaram a Ernesto... um jantar.
Mas enfim, se os namoros passavam, também
passava o tempo, e um dia, estando ao espelho, Onda viu que a primeira ruga se
lhe desenhava no rosto. Tinha ela então trinta e três anos. A ruga era
prematura, mas, fosse ou não, existia, e esta descoberta deu sério cuidado à
moça.
Esperar o amor que sonhara pelos romances era
arriscar-se, visto que à primeira ruga sucederiam outra e outras.
Era preciso achar marido.
Lançou as vistas a lista dos seus adoradores,
já muito diminuída, não porque lhe faltasse a beleza, mas porque lhe sobrava
travessura para os arredar.
Entre esses adoradores havia um que pela
terceira vez depositava o coração aos pés da bela namoradeira. Da primeira vez
era um simples tenente de cavalaria; da segunda era capitão; agora era já
major.
Onda resolveu que lhe cumpria assentar praça
ao lado do major.
Daí a um mês anunciava-se o seu casamento. O
major abençoou a sua insistência e recebeu em matrimônio a esquiva donzela.
Daí para cá Onda tem-se mostrado fiel às
armas.
Quando Ernesto e os outros souberam disto
fizeram muitos epigramas, alguns desconsolados e sensaborões.
Mas a rapariga casou-se.
Ernesto no fim de dois anos vingou-se de tudo
procurando mulher e encontrando uma das mais modestas deste mundo. Os dois
casais são felizes; o leitor não menos por ter chegado ao fim deste episódio
sem derramar uma lágrima, e eu tanto como o leitor, por ter pingado o ponto
final a este escrito, cujo assunto principal é um desvio do espírito das
mulheres.
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