Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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I
O Galgo, tomada a última barcada de
negros, fizera-se de vela. Bordejava ao terral da madrugada, na pequena enseada
de Ambriz, os faróis apagados para escapar aos cruzeiros ingleses e ganhar o
mar alto, onde ninguém o vencia. As primeiras barras do dia começavam a clarear
para os lados de terra, e o navio, ainda entre pontas, não conseguia fazer-se
ao largo. No tombadilho, passeando de bombordo a boreste, o velho Sumares
praguejava, porque o vento ia escasseando. O brigue caturrava lentamente na
vaga e ele olhava preocupado o horizonte a oeste, sondando-o com um longo olhar
inquieto, através da obscuridade...
II
Das trinta e
seis perigosas viagens à Costa, nenhuma lhe custara como aquela. À saída do porto,
pegara logo uma lestada que arrebatara um mastaréu, inutilizando-lhe um homem e
fazendo-o rolar, durante oito dias, aos trambolhões, à capa. Depois, fora
aquele “raio do diabo” do Contest perseguindo-o,
na última semana, com uma tenacidade formidável, até a antevéspera, em que
conseguira escapar, graças à intensa escuridão da noite, na baía de Biafra.
Ainda sentia subir-lhe o sangue à cabeça, numa onda de raiva, à lembrança
daqueles sete dias perdidos, de contínuas e trabalhosas manobras, ora escondendo-se
nos recantos da costa, ora sumindo-se nos vagalhões do alto mar. E, todas as
manhãs, sempre à vista, as velas perseguidoras do maldito cruzeiro! Carregara,
durante dois dias e duas noites, num sobressalto, sem arriar ferros, só com um
ancorote, pronto a suspender ao primeiro sinal. E, pela primeira vez, sentia-se
fatigado dos seus setenta e seis anos de mar.
Porque o
velho Sumares nascera no oceano, na altura das Canárias, na câmara de uma
galera das Índias, uma alegre manhã atlântica, de mar manso e céu claro. Seu
pai, o capitão de bordo, era um famoso náutico, descendente de uma antiga
família de marítimos do Algarve. Chamava-se Manuel Sumares, mas ora conhecido,
entre os capitães portugueses do seu tempo, pelo Manuel Mastro, em virtude do seu porte teso e agigantado, do
excepcional sangue-frio no perigo, da grande força muscular. Nunca tremera
diante da tormenta, nem sentira a fadiga das viagens. Piloto muito moço, apenas
tirara a carta, começou a comandar. A mulher, que o acompanhava sempre pelos mares,
uma robusta filha de pescadores da Póvoa, morena e planturosa, com uns olhos
negros esplêndidos, fora criada nas praias, aos ventos salitrosos do oceano e
ao cadente rebentar das vagas. Tivera seis filhos homens, dos quais os três
mais velhos, ainda muito tenros, começaram a labutar sobre as águas. Casara aos
quatorze anos e saíra logo a viajar. Muito forte, muito corajosa e saudável,
nas constantes viagens, vivia sempre em cima, no tombadilho, ao lado do marido,
acompanhando o movimento das manobras com intrepidez máscula. Isto fazia com
que os marinheiros, nas palestras íntimas do rancho, a tratassem sempre pela
Velha Náutica.
O Sumares
herdara do pai a gigantesca estatura, a calma extraordinária e a possança viril
de músculos, coroadas por uma inteligência natural e um incomparável espírito
de aventura. Da mãe, recebera a beleza cinzelada do busto e os grandes olhos
nanquinados, imprimindo uma radiação e um encanto à larga fisionomia ariana,
emoldurada em bela barba basta e numa espessa cabeleira ondeada. Aos quinze
anos, todo imberbe, era lindo, forte, escultural, lembrando o filho de um
pescador do Pireu, ou um antigo grumete dos Argonautas. Bem novo ainda, com
pouco mais de dez anos, entrara a servir, como moço de convés, sob as ordens do
pai, revelando desde logo extraordinária, vocação para a vida do mar. Assim
fizera numerosíssimas viagens. Foi em Santa Catarina, onde naufragara numa
sumaca portuguesa que ia para o Prata, que obtivera o seu primeiro comando, num
palhabote da pequena cabotagem. Tinha então vinte anos. As viagens eram para o
Rio Grande do Sul, e, em uma delas, o Sumares realizava inesperadamente a sua
primeira aventura, salvando, com risco de vida, sob um pampeiro forte, toda a
tripulação de uma barca inglesa, naufragada na barra. Valeu-lhe esta “áfrica” uma medalha do governo britânico, acompanhada de
um riquíssimo binóculo de master, com
uma inscrição e o seu nome nos cilindros dourados, onde se falava da Rainha
Vitória e do Almirantado.
Este fato e
outros, numerosamente ocorridos em toda a costa durante aquele inverno de
tremendas borrascas, deram-lhe, desde logo, nas duas províncias do Sul, uma
grande notoriedade. Só se falava então no capitão Sumares. Depois, nos navios
de longo curso, que iam continuamente às Antilhas e à América Central, para
onde se encarreirara, fez, com o seu imenso prestígio de marinheiro genial,
prodigiosas salvações no mar. E, entre todas as viagens ali, era célebre a
temerosa travessia sob o estourar dos ciclones no Golfo do México, onde
sessenta navios soçobraram, só escapando ele num velho patacho.
Mas a
formação da sua estranha biografia, quase inverossímil e lendária, a que a
imaginação popular dera cores fantásticas, sobrenaturais, teve lugar, com mais
publicidade e ruído, quando capitão dos navios da Costa, no tráfico do escravo
onde ocorreram inauditos casos. Aí enriquecera, logo no começo, a dois
armadores do Desterro, com magníficas viagens dando resultados consideráveis.
Como casara, porém, na família Calado, uma antiga firma comercial, também
armadora e agora um pouco atrasada pelas contínuas perdas no mar, nos últimos
anos — passou a comandar um dos navios da
casa.
Escolhera,
entre os quatro restantes, o Galgo,
que fizera apenas uma viagem à África, e essa mesma com tanta infelicidade que
os ingleses o haviam aprisionado, já na volta, depois de oito dias de
singradura larga, levando-o com carregamento e guarnição para Santa Helena,
onde o abandonaram. O desastre se dera porque o capitão dessa época,
aterrorizado desde um temporal que apanhara pelo equinócio, e que obrigara a
correr em árvore seca, durante um dia, aos boléus, sobre os vagalhões irados — tivera medo de puxar pelo barco, por causa do mar e do sul terrível
que reinava, temendo-lhe o casco esguio, o enorme pano, a guinda
desmesurada.
O navio era
novo, de um modelo lindo, uma construção rara. E o novo capitão, ao sair a
barra, pela primeira vez, no Galgo,
puxando todo, às bordadas, contra o norte duro, reconheceu logo, pela excelente
marcha, que aquilo “era uma
espada”. Ao botar-se a barquinha,
verificava-se sempre oito a dez milhas folgadas — à popa, à bolina, a um largo. Foi nessa viagem que o Sumares
começou a série inédita e louca de aventuras que tanto o celebraram entre os
capitães costeiros, e das quais se saiu sempre vitorioso até aquela bem cercada
agora de maus presságios...
III
Mas
claridades róseas começaram a alastrar o céu — e
o sol rompeu, num pasmoso esplendor tropical, fazendo destacar, muito vivas, as
areias brancas da costa, as florestas à beira d'água e, ao fundo, as montanhas
cinzentas da Serra Leoa, sumindo-se além, num esvaecimento nostálgico. A luz de
ouro jorrante cobria de inúmeras placas rutilosas a vastíssima amplidão do mar.
A oeste, o curvo e imenso horizonte se mostrava agora, deserto e longínquo, numa
extensa linha azulada...
De repente,
das águas de Benin, dobrando o cabo de Palmas, ao noroeste, velas branquejaram.
Era uma embarcação de alto bordo.
O velho
Sumares, à amurada, de binóculo em punho, observava atentamente o navio: proava
naquele rumo, à grande distância, por isso não podia distinguir bem. Supôs, a
princípio, uma galera portuguesa, de torna-viagem às possessões na costa. Mas,
ao virar de bordo, reconheceu que era um brigue, trazendo à mezena a bandeira
inglesa arvorada:
— Ah! com um milhão de raios, o Contest!...
E mandou
logo virar para o sul.
IV
Todo aquele
dia seguiu-o, ameaçadoramente, como na última semana, a terrível proa, que só
desapareceu ao cerrar da noite, mas cujos faróis acesos brilhavam, através da
treva, espreitando-o sinistramente, como os olhos de um felino fantástico. Pela
madrugada o vento escasseou, e outra vez avistaram, à doce luz dourada do
Levante, quilhando-lhes a esteira branca, sobre as águas de sable, o temeroso
casco. A maldita calmaria, tão conhecida naquelas paragens, começava. E o
cruzeiro vinha-lhes na alheta, já muito próximo, a menos de três milhas
escassas.
O velho
Sumares receava agora o alcance da artilharia que montava o navio, mas guardava
o sangue-frio habitual, observando o menor movimento do inimigo. O piloto, no
arco de gávea, procurava devassar o convés inglês com o seu longo olhar. E a
guarnição do Galgo, de cima do
castelo, mirava, o sobrolho carregado, a aproximação do brigue.
Era
colossal o vaso britânico, pelo seu comprimento, um enorme pontal, a alterosa
mastreação, sendo que só as gáveas e os joanetes podiam dar para todo o pano do
Galgo!
E
alguns dos marinheiros, rudes velhos encanecidos no tráfico, que tinham sido
aprisionados de uma feita por um dos cruzeiros, lembravam-se ainda, com terror,
olhando o monstruoso navio, dos maus tratos e da cruel desumanidade da maruja
inglesa. Os que ofereciam resistência nas abordagens ou davam combate eram
içados, depois, no lais das vergas, ou passados de mergulho por debaixo do casco
ou calabrotados...
— Um inferno! concluía o velho gajeiro Domingos, o mais idoso da
companha; só faltava matar-nos, trincar-nos os bofes... Excomungados! E ali
estavam a segui-lo! Só se aquele barco, o Galgo,
já estivesse com craca, senão os havia de ensinar, aos patifes, deixassem
estar! E demais com quem! Com o velho Sumares... Ora, os diabos!...
Os outros,
que o ouviam, exclamavam entusiasticamente:
— Quais quê! ao Galgo nem
uma bala o pegava! Aquilo era um corisco pra andar! Dessem-lhe vento, que era o
que ele queria! E que fossem bugiar os cursários!
E
fixavam o Contest, franzindo o beiço,
com profundo desdém, como marinheiros que conhecem o seu barco.
O João
Catarina, que subia do rancho para render o homem do leme, e que ouvira o fim
da conversa, gritou-lhes também, voltando-se, com uma das mãos à cinta,
endireitando a faca:
— O que,
rapazes? o “carroça”? Não dava pra nada...
Pois se aquilo era pior que uma boia!...
Mas, à ré, o
velho Sumares não tirava o binóculo do barco. Parecia-lhe, inexplicavelmente,
que o outro se aproximava mais, apesar da calmaria. E intimamente pensava:
— Talvez efeito das correntes, das águas...
Começava a
estranhar, porém, o silêncio das baterias já em alcance quando, de repente, o
piloto gritou para baixo:
— Fazem sinal para atravessar!... Fazem sinal para
atravessar!...
Em seguida,
um estampido grosso e rouco de canhão rolou sobre as águas, que o sol a pino o
malhava.
— Ah! os miseráveis ameaçam-nos! rosnou o velho
Sumares, vendo uma nuvem de algodão que se adelgaçava lentamente, cobrindo o
brigue à meia-nau.
Os
marinheiros, pelas amuradas, à proa, berravam, numa indignação:
— Olha os estupores! Vão balear-nos! vão balear-nos!
E
efetivamente, dali a instante, os tiros repetiam-se, à bala.
O cruzeiro,
todo em pano, entrando ainda para vante, estava já à distância de braças.
Agora, das enxárcias, dominava-se-lhe toda a vasta tolda: à popa, o comandante
e alguns oficiais moviam-se furiosamente, em manobras desesperadas, enquanto
outros, às baterias, mandavam o fogo.
Todo o
horizonte em torno deserto no seu grande disco nostálgico. E o mar, de altos
vagalhões, desviava as pontarias, arrancando pragas aos artilheiros furiosos.
O Galgo, quase parado na ausência dos
ventos, parecia entregar-se, numa fatiga de animal cansado, à explosiva fúria
inimiga. O velho Sumares, ao catavento, sob as balas cruzando o convés à ré,
sem poder corresponder ao ataque, numa íntima e intensa revolta de
encolerizado, posto que exteriormente calmo, olhava, em meio do ranger zarro
das vergas e dos mastros onde o pano murchava, as evoluções do navio, sacudindo
leoninamente a grande barba espessa e a bela cabeça alva.
O Contest, porém, não adiantava mais uma
braça, meio atravessado, só atirando com os canhões de bombordo.
Durante duas
horas o Galgo não fora atingido; mas,
de repente, uma bala atravessou-lhe as amuradas. Foi um choque horrível,
seguido de outro que despedaçou a lancha grande, nos picadeiros, sobre as
escotilhas fechadas. No porão, nesse instante, correu como a zoada abafada de
um gado preso, tumultuando. E guinchos loucos silvaram, entre-vante do mastro
do traquete, pelo escotilhão acima. O contramestre, com três marinheiros,
arrancou logo o quartel gradeado, e desceram todos, de calabrote em punho...
O velho
Sumares estremecia, num desespero brutal, observando todos os movimentos do
inimigo contra a balaustrada. E logo grossas vozes de comando irromperam-lhe
dos lábios. Os marinheiros acudiram imediatamente, galgando os enfrechates, no
meio do fogo gritando de espaço a espaço.
Pela
primeira vez, nesse momento, o sangue calmo do velho marítimo sublevava-se
naquela tolda rasa, mas sem o trair apesar do grande abalo.
As balas
inglesas choviam, entretanto, sobre o tombadilho a jogar, carregando tudo numa
devastação formidável — o espelho da
popa, a gaiuta, as pipas da aguada...
E toda a
companha tinha agora movimentos atônitos, sob o fogo que aumentava.
O piloto
porém, à proa, animava-a com a sua rude calma e alegre vozeria, mandando safar
os ovéns e brandais que se despedaçavam. Era um rapaz dos Açores, de trinta
anos, robusto e vivo, de uma intrepidez colossal. O velho Sumares conhecia-o
desde menino e adorava-o pela sua coragem. Fora isso que o fizera, ainda muito
jovem, genro e piloto do velho lobo do mar.
Mas a brisa
do norte começava a cair fresca, e o Galgo
aumentava já a singradura quando acertou-lhe um balázio num mastro. Então, em
todo o navio houve como um estremeção geral, num formidando ruído de derrocada — e panos, vergas, mastaréus e mastro entraram a flutuar em roda, desfeitos,
aos pedaços, como arrebatados, num temporal. E, subitamente, vinte pulmões
vigorosos estrugiram, numa explosão de pragas:
— Má raios os partam!... Covardes!... Má raios os partam!...
Fora o
mastro grande que rebentara caindo de través sobre o trincaniz, destruindo a
borda falsa.
— Felizmente, ninguém apanhado! gritou o contramestre, que vinha para a
popa, branco como a cal.
E o velho
Sumares, junto ao leme, berrava, apoplético, a bracejar:
— Salta à ré! salta à ré! Com um milhão de diabos!
Safa... safa!...
A gente
caiu, numa rajada, sobre os destroços da cordoalha, coalhando todo o convés,
por cima da câmara, e rompeu a cortar à machadinha e à faca os cabos, enquanto
o navio atravessava batendo as velas de proa.
Sobre os
vagalhões em torno, boiavam agora, sinistramente, pedaços de mastro como
despojos de um naufrágio.
O Contest, que fora deixado longe, cessara
já de atirar.
A guarnição
do Galgo, numa faina trabalhosa,
safara, em poucos momentos, o convés, e o brigue, estalado o traquete, virara
logo, deixando tudo para trás sobre o mar...
Quando o
crepúsculo se desenhou a oeste, alastrando o horizonte, numa vaga iluminação
dourada, já o terrível casco britânico desaparecera, como soçobrado...
V
Daí a dias,
numa esplêndida manhã de sol vivo e mar calmo, o navio, só com um mastro,
entrava vitoriosamente o Arvoredo. Fundeara na Ponta das Canas, onde fora
lançado o carregamento e no outro dia, à tarde, o velho Sumares seguiu para o
Desterro onde, desde o amanhecer, não se falava senão no Galgo.
Por toda
parte, nas ruas e nas casas, o nome do célebre mareante cintilava como o de um
personagem fantástico, em meio às exclamações e comentários. E durante meses,
foi essa extraordinária viagem o assunto mais querido das palestras entre
aquelas populações da beira-mar, que têm toda uma simpática predileção pelas
lendas marítimas.
O velho
Sumares nunca mais embarcou, expirando aos noventa anos de idade, entre os
carinhos deliciosos das filhas e dos netos, na sua pitoresca habitação da
Arataca. E a história da sua vida rude e aventurosa ainda é hoje relembrada,
com inefável ternura, na placidez venturosa dos serões, nos lares.
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