O velho professor
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Dia límpido e alegre, de sol de ouro ardente, aquele domingo de fevereiro
de 1897. Eram 7 horas da manhã. Da larga curva de rails que vem da Estação de D. Clara assinalando o solo com um paralelo
faiscante, um trem surgia, com uma grande voluta de fumo a jorrar no espaço,
arquejando e silvando monstruosamente pela sua possante locomotiva Baldewin, em
corrida para a linha central, no tumultuar das rodas em movimento. Súbito, toda
essa matinada caminheira teve uma pausa, e o comboio parou em Madureira. Uma
aglomeração de pessoas de todos os matizes, que ali estava à espera do trem sob
um dos alpendres que ladeiam a pequena casa de madeira dessa Estação suburbana,
barafustou à pressa para o interior dos vagões de primeira e segunda classe.
Após um ou dois minutos novo silvo agudíssimo, novos arquejos poderosos de
máquina a vapor e uma como que trovoada de ferros entrechocando-se — e o
comboio abalou, perdendo-se ao longe, em meio à casaria e à paisagem verdejante
e risonha, para os lados de Cascadura.
No largo de Madureira, a quatrocentos metros da Estação mais ou menos, um
ajuntamento de velhos, moços e meninos, num vozear alegre e festivo, tendo às
mãos grandes ramos de flores naturais, com uma banda de música à frente tocando
um dobrado — largava do alpendre de uma habitação, estrada Marechal Rangel
acima, ao admirável esplendor da manhã. Em todas as casas do largo as famílias
assomavam às janelas e portas, olhando curiosamente o préstito, bem como as
demais pessoas em trânsito e os raros populares em descanso que por ali
vagavam, gozando o domingo.
A princípio nesse subúrbio pouco movimentado e pacífico, todos ignoravam a
origem e destino do pequeno cortejo em marcha. Mas logo depois se soube, com
inteira certeza, que aquilo era uma manifestação ao conhecido e estimadíssimo
cidadão José Teodoro Burlamaqui, velho professor primário da freguesia de
Irajá. Tal homenagem fora improvisadamente organizada pelos principais
funcionários públicos, negociantes, agricultores e artistas de Madureira e
cercanias, que, havia quarenta anos, tinham sido alunos desse famoso preceptor
de crianças, e que, sabedores na véspera do decreto que jubilava o seu querido
e venerando educador, lhe iam testemunhar, por esse modo, a sua estima e
gratidão.
O principal autor de tão bela e carinhosa ideia tinha sido o
tenente-coronel do corpo de polícia da Capital Federal Antônio Joaquim Vieira,
atualmente reformado nesse posto e que fora discípulo amado do velho Burlamaqui.
Vieira, que é um homem simpático e de tez de um negro bronzeado, de estrutura
atlética e de um porte de colosso, inteligente e loquaz apesar da sua ligeira
cultura mental, feita tão somente na escola primária e com aquele velho
professor — preparara, com arte e originalidade, o meio por que devia levar-se
a efeito a manifestação que assim fraternalmente os reunia nesse momento,
combinando com todos os antigos condiscípulos levarem ao seu velho mestre um
relógio de ouro cravejado de brilhantes tendo gravadas, na caixa, uma
expressiva dedicatória e as datas de sua nomeação e jubilação no magistério.
Combinaram mais levar cada um os filhos e netos — que como eles tinham cursado
a escola — e reproduzir, durante o trajeto de Madureira a Irajá, o que haviam feito
diariamente outrora, em meninos.
Efetivamente, apenas passaram o local denominado Otaviano, entraram, como
nos tempos já remotos e saudosos da infância, a saltar, correr e brincar uns
com os outros, em disparadas que levantavam uma poeirada branca no caminho, ao
longo das bastas sebes floridas. Os filhos e netos acompanhavam-nos, praticando
a mesma coisa, como se fossem todos meninos. Destacava-se à frente do bando,
como um antigo “baliza” de batalhão, o tenente-coronel Vieira que, gordo e
musculoso, com a sua pele brônzeo-negra de núbio e o seu porte colossal, de um
metro e noventa de altura, se deslocava mais que todos em piruetas e pinchos,
em troças e traquinadas festivas...
Àquela matinada colegial de velhos, moços e meninos, matinada tão fora do
comum ali, principalmente aos domingos, os habitantes saíam ao terreiro ou
desciam às porteiras do caminho para ver o que era aquilo.
Nas pastagens planurosas ou nas lombadas das colinas, os cavalos e bois que
retoiçavam satisfeitamente a grama ainda meio úmida da orvalhada da noite,
suspendiam por instantes a sua faina comedoira e, pescoço erguido e orelhas
fitas, ficavam pacificamente a olhar, numa muda admiração animal, o
algazarrento séquito caminhante, até este perder-se de todo na primeira volta poeirenta
da estrada cheia de sol.
A troupe fazia alto à porta de
cada venda, e todos, principalmente os velhos, invadiam essas pequenas casas de
negócio, num alvoroço, como verdadeiros colegiais, a comprar pão e bananas,
chamando familiarmente pelos antigos donos da casa:
— Ó seu Luís! Ó seu Fonseca! Ó seu João...
Mas os novos proprietários respondiam:
— Já não está mais aqui! Ou: ― Já é morto, coitado!
E despachavam, solicitamente e a rir, aquela multidão jucunda e ruidosa de
fregueses de momento que jamais ali haviam visto e que iam decerto em romaria a
algum sítio próximo.
Assim, de venda em venda e em folgares pelo caminho, o cortejo percorreu,
primeiro, a estrada Marechal Rangel, depois a de Monsenhor Félix, entrando por
fim na da Pedreira que levava à casa da escola, em cujas proximidades a Linha
Férrea do Rio Douro fizera uma estaçãozinha adequadamente denominada — Parada
do Colégio.
Apenas foi avistado o grande e novo prédio para onde, havia dois anos, se
tinha mudado a escola, fez-se silêncio no préstito.
Seriam mais ou menos 9 horas, justamente o momento regulamentar para a
entrada dos alunos e início dos trabalhos escolares diários.
Chegado o bando ao portão principal, velhos, moços e meninos meteram-se em
forma, dois a dois, e como a porta do prédio que deitava para a varanda
alpendrada estivesse aberta, por ela entraram, nessa formatura, penetrando no
salão de aula. Ali, como há quarenta anos passados, os velhos — bem assim os
filhos e netos — tomaram lugar à sua carteira-classe, afetando aguardarem o
professor para as lições do dia...
O velho Burlamaqui, não obstante a surpresa em que fora colhido, porquanto
muito longe estava de pensar em semelhante manifestação, apenas viu entrarem os
seus discípulos de outrora compreendeu tudo e, inteligente como era, resolveu
não se dar por achado diante de tudo aquilo. Engravatado e abotoado como sempre
no seu terno de brim pardo que costumava trazer de verão, instantes depois
apresentava-se no salão de aula, e, correspondendo ao coro unânime de saudações
dos presentes, todos respeitosamente de pé, sentou-se na sua cátedra e fez um
sinal com a mão para que cada qual se sentasse também. Em seguida, batendo com
a régua na mesa, como a impor silêncio, disse meio comovido:
— Está aberta a última aula...
José Teodoro Burlamaqui era então um velhinho de cerca de setenta anos de
idade. Baixo, robusto, tinha ainda o porte aprumado e uma voz clara e nítida,
apesar de cortada já de uma vaga tremura. De altas qualidades morais —um
caráter imaculado e uma grande nobreza de alma — fora toda a vida um virtuoso.
Tivera sempre um certo sentimento de meiguice e afeto para os seus alunos, mas
isso sem a menor quebra da sua grande linha de austeridade pedagógica,
principalmente quando estava em aula. Durante o seu longo magistério, quando
tinha de castigar algum discípulo delinquente, fazia-o sempre com moderação e
justiça, pesando bem o valor de cada falta. Tais castigos, porém, raramente os
aplicara ele nesses quatro lustros frutuosos de serviços à infância, porque
bastava um golpe enérgico da sua voz ou uma expressão reprovadora do seu olhar
para que os mais inquietos sossegassem e os mais desabusados se contivessem.
Obtivera a cadeira de professor primário da freguesia de Irajá por concurso,
vencendo um bom número de contendores. Ao iniciar o magistério público, tendo
mais ou menos trinta anos, era um moço que já sabia impor-se pelo seu todo
digno, austero, correto. Era então, a despeito da sua pequena estatura, um
bonito homem, de pele clara e rosada, barba e cabelos castanhos, com uns olhos
muito vivos, expressivos, azuis. Agora, já em ancianidade, com o rosto
enrugado, os olhos doces ainda, mas vazios de esperanças e sonhos, os cabelos e
a barba de uma alvura imaculada, tinha o grande ar venerando de um Patriarca ou
de um Santo.
Mas apenas o velho Burlamaqui pronunciara as melancólicas e comovidas
palavras — “Está aberta a última aula...” — o seu antigo e querido discípulo
tenente-coronel Vieira ergueu-se e, aproximando-se da mesa, disse:
— Professor! Venho queixar-me do Sr. José Machado (e apontava para um velho
alto, magro, de barba e cabeça brancas) que hoje, quando vínhamos para a
escola, deu-me um pontapé.
— É verdade,
Sr. professor, acudiu logo o José Machado, erguendo-se da sua carteira. Dei um
pontapé no Sr. Vieira porque ele soltou um passarinho que eu trazia num
alçapão...
Esta encantadora reprodução de uma passada e remota cena da infância fora
bem imaginada e melhor executada pelos dois antigos discípulos da humilde
escola de Irajá.
O velho Burlamaqui então, muito enternecido mas procurando representar o
seu papel até ao fim, pegou da pena e do Livro dos castigos, exclamando:
— Bem, vou tomar nota. Hoje não os castigo porque é domingo; ficará para
amanhã... Amanhã?!... Mas que digo, se este é o último dia de aula?... E
quase sem poder concluir as palavras, numa grande emoção, acrescentou ainda: ―
Mas só agora é que vocês se lembraram de queixar-se? Só agora que são passados
quarenta anos?!...
E tinha as mãos mais trêmulas que de ordínário, e as lágrimas corriam-lhe,
duas a duas, pelo rosto e pelas barbas venerandas e brancas. Então os alunos —
velhos, moços e meninos — correram a abraçá-lo, chorando também de emoção...
Depois, o tenente-coronel Vieira puxou do rico relógio de ouro cravelado de
brilhantes e, após ligeiras mas expressivas palavras, entregou-o ao velho
professor em seu nome e no de todos os seus camaradas.
Velhos,
moços e meninos aproximaram-se então com os grandes ramos de flores naturais
que levavam e os desfolharam sobre a cabeça do velho Burlamaqui, que os
abraçava a todos um por um, murmurando por entre a comoção e o pranto:
— Eu não mereço isto, meus filhos! Não! Vocês é que foram sempre bons
meninos, como são hoje bons pais de família e bons cidadãos.
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