11/28/2017

O velho médico (Conto), de Almachio Diniz


O velho médico
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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O mostruário exibia, garbosamente, os artigos da moda rigorosa.

Estefânio e Judite — esta desprendendo-se de si no devotamento ao esposo, e aquele, dominador da mulher vencida em mais anos, como se lhe tivesse o corpo de cor, curvas e linhas, luzes e perfumes — gozavam o esplendor dos luxos, com que o artifício corrige os defeitos da Natureza e apaga os estragos do Tempo...
Marco Antônio — o médico afamado — cofiando as enevoadas barbas em que se escondiam as ilusões do seu poder curador, arrancou os olhares dos dois esposos, e apoderou-se, com fascinante domínio, de suas atenções...
***
 —Bem pode a terapêutica dos homens... Vejo-o restituído ao fulgor da mocidade...
— É exato, doutor, passo agora sobre as moléstias como a insensível salamandra por sobre chamas... Descrendo da causa, não posso afetar-me com os seus efeitos: a sua medicina é a criadora das humanas torturas. Parece-me que já se disse: “Tirem os médicos e as enfermidades desaparecerão”... Mas, eu digo: fugi deles e estou curado. Deem-me milhões de médicos e estarão formados trilhões de doenças.
— E quem te curou, meu caro?
— A natureza...
— O novo deus pagão...
— Assim diz o doutor., mas, de fato, a inesgotável fonte de poderes curadores. Lembra-se de que o procurei exasperado com o que sofria?
— Lembro-me, sim.
— Foram tantos os diagnósticos que já perdi o direito de dar-lhes autorias.
— O Sr. era verdadeiramente um doente.
— E o dr. escreveu uma longa lista de medicamentos para horas certas e invariáveis.
— Realmente.
— Pois confesso-lhe: não fiz uso de um só. Também o doutor não foi o último médico que me assistiu. Ainda hoje louvo-lhe a sua acuidade na inspeção. Nada faltou à sua perspicácia, senão compreender que, no meu estado, as suas perguntas eram outras tantas sugestões e novos sintomas para a agravação de meu mal. Eu vivia desvairado na vontade de acusar males crescentes, e os meus assistentes porfiavam em ilustrar-me em torturas inéditas.
— Afinal... quem te curou?
— Dir-lhe-ei tudo, de começo. Hygia, a deusa da saúde, não é de todo má...
— A história vai ser a mesma de todos os doentes restabelecidos: salvaram-se pela ação do dedo de Deus, como teriam morrido pela intervenção do doutor...
— Creio que o senhor adianta um mau conceito. Não me tenho na conta dos casos comuns.
— Desculpe-me.
— Pois não! Mas, a minha doença foi uma criação dos meus médicos, e a minha cura proveio de minha inabalável resolução de abandoná-los. Eu estava em último grau de desengano quando o doutor foi chamado. Voltei assim às mãos de um alopata. Homeopatas e feiticeiros nada fizeram de resultado para minorar os meus padecimentos. Quando adoeci, aos vinte e três anos, foi numa convalescença de enfermidade efetivamente assassina: o amor. Eu tinha conseguido, pela vez primeira, objetivar uma paixão. E, não só isto: tivera, com todo o delírio próprio da idade, a posse fácil, e passageira contra a minha vontade, de uma mulher amada. O mundo inteiro concentrou-se, ao meu sentir, nos violentos pesadelos de minha carne inexperimentada. Foram sessenta dias, mil quatrocentas e quarenta horas, ou oitenta e seis mil e quatrocentos minutos de frenético jogo de instintos, durante os quais as paradas assediaram-me a alma, remontando as fichas do meu gozo ao máximo possível. O prazo desse amor fora, entretanto, fatal. Esgotou-se e a mulher fugiu-se-me dos braços como a espiral do fumo que procura as alturas. Ao depois disto, separado do entretenimento carnal, que me combalia as fibras, como a água que vai abalar as galerias subterrâneas para derribar as minas, tive a sensação do remorso de um grande crime...
— De um crime delicioso...
— Talvez, doutor.
— E então?
— Encegueirado pelo amor, o mundo ficou às escuras sem a luz do olhar dela. Quis correr nas suas pegadas, e senti-me tolhido como a voz na garganta do atormentado por um pesadelo. Vi em todos os convivas de minha existência, terríveis sombras fantásticas... E tudo findava sempre num choro convulso, durante o qual me punha a tremer com tanta violência quanta fazia estremecer todo o assoalho de minha alcova e soar fora de tempo a campainha do relógio sobre a mesa... Senti-me muitas vezes balançado como a esferazinha de madeira que anima o trilo dos apitos...
— É curioso, deveras, o seu caso.
— Foi, doutor.
— Sim! Foi! E hoje sinto não lhe ter visto nesse tempo originalíssimo.
— Mas viu-me um outro médico e diagnosticou-me: um paranoico.
— Paranoico?
— Exatamente, doutor, e vá vendo. Aconselhou que eu me tratasse com banhos de luzes. Escravos do sentimentalismo clinico desse primeiro médico, os meus pais esgotaram uma fortuna e eu fui enormemente banhado, a contragosto, com luzes de todas as cores. Era inócuo o tratamento para me fazer bem, mas foi uma agravante dos meus males Exacerbei-me. Os meus nervos polarizaram-se como se aguçados por alta dose, mas não tóxica, de estricnina. Veio um segundo médico—já a esta hora e há muito tempo — vitimado por uma embolia cerebral. Olhou-me e disse, carrancudamente, diante de uma das minhas crises de saudade carnal: “são delírios epileptiformes”... E o tratamento passou a ser feito com altas doses de bromureto. A minha enervação deprimiu-se, e tornei-me um atoleimado, tanto que nem pranteei a morte de minha mãe, desgostosa com a minha trágica existência... Novo médico; vim a ser um simples neurastênico, com atonias nervosas. Reconstituintes, passeios, boas alimentações, prazeres, etc.: nada, porém, matava as saudades do meu instinto animal. Comecei de padecer do estômago, ora por excesso de alimentação, ou por escassez... Fui um dispéptico, padeci de insônias, tornei-me um narcoticômano. Na insônia, senti faltas de ar: novos médicos e fui um cardíaco, um arteriosclerótico... Abusaram de iodetos e tive hemoptises. Um Esculápio chamado às pressas, levando em conta a minha magreza, o sangue esvaziado dos meus pulmões e o histórico dos meus sofrimentos, num rápido prognóstico, anunciou a minha morte breve, por força de adiantadíssima tuberculose. Quando os doutos senhores me interpelavam, nunca tiveram o escrúpulo de ouvir-me no que sofria somente: sugeriam-me coisas que só dali por diante eu começava de sentir. E veio um curador homeopata: os seus remédios ingeri com facilidade, pela falta de sabor. Cai num abatimento nervoso, e um vizinho, que se enforcou dias depois porque se sentiu arruinado nas suas forças comerciais, lembrou que os maus espíritos encostados aos corpos de pessoas novas, faziam artes do demo... E não só apresentou a conveniência de ser eu rezado, como também foi buscar uma velhinha, encarquilhada e brônzea, que, de sobre o meu corpo, deitado de bruços na cama, esconjurou o meu malfeitor, com um galho da famosa arrudeira...
— E nem rezado, Sr. Estefânio?
— Para o doutor ver! Nem rezado!
— É única a sua história.
— Creio que sim, mas verdadeira. Notou-se, ao depois, que eu tinha mau funcionamento renal... E foi quando o senhor foi chamado.
— Assim acaeceu.
— E inda pensa o doutor que eu tivesse afeção nos rins?
— Se me não falha a memória, efetivamente.
— Pois escute: logo depois de sua intervenção, repudiando eu os medicamentos que o doutor indicou largamente, dois colegas seus foram trazidos em conferência.
— Que disseram eles?
— Discordaram preliminarmente do doutor, e discordaram entre eles mesmos. Do doutor discordaram reputando sãos os meus rins.
— Sãos, ou curados?
— Curados, não. Inatingidos até àquela data. E firmaram o diagnóstico de uma hepatite aguda, um encontrando atrofia do órgão e o outro hipertrofia.
— Mas, afinal, acertaram?
— Supõem que sim, porque ao depois da assistência deles recuperei a saúde.
— É espantoso, meu caro senhor.
— Não é, não, doutor. Ao tempo em que descri dos médicos, tinha reaparecido a mulher que eu amara. Visitou-me. Inflamamo-nos, e... estamos casados, não foi assim, Judite?
— Parece-me!
***
Assim exclamou, apenas, a sedutora mulher, com os olhos espelhando o enfeitiçamento de um lindo manteau exposto no mostruário de modas e confecções... enquanto o velho Doutor enrugava solenemente a espaçosa fronte...

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