O velho médico
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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O mostruário exibia, garbosamente, os
artigos da moda rigorosa.
Estefânio e Judite — esta desprendendo-se de
si no devotamento ao esposo, e aquele, dominador da mulher vencida em mais
anos, como se lhe tivesse o corpo de cor, curvas e linhas, luzes e
perfumes — gozavam o esplendor dos luxos, com que o artifício corrige os defeitos
da Natureza e apaga os estragos do Tempo...
Marco Antônio — o médico afamado — cofiando as
enevoadas barbas em que se escondiam as ilusões do seu poder curador, arrancou os
olhares dos dois esposos, e apoderou-se, com fascinante domínio, de suas
atenções...
***
—Bem pode a terapêutica dos homens... Vejo-o
restituído ao fulgor da mocidade...
— É
exato, doutor, passo agora sobre as moléstias como a insensível salamandra por
sobre chamas... Descrendo da causa, não posso afetar-me com os seus efeitos: a
sua medicina é a criadora das humanas torturas. Parece-me que já se disse: “Tirem
os médicos e as enfermidades desaparecerão”... Mas, eu digo: fugi deles e estou
curado. Deem-me milhões de médicos e estarão formados trilhões de doenças.
— E quem
te curou, meu caro?
— A
natureza...
— O novo
deus pagão...
— Assim
diz o doutor., mas, de fato, a inesgotável fonte de poderes curadores.
Lembra-se de que o procurei exasperado com o que sofria?
— Lembro-me,
sim.
— Foram
tantos os diagnósticos que já perdi o direito de dar-lhes autorias.
— O Sr.
era verdadeiramente um doente.
— E o dr.
escreveu uma longa lista de medicamentos para horas certas e invariáveis.
— Realmente.
— Pois
confesso-lhe: não fiz uso de um só. Também o doutor não foi o último médico que
me assistiu. Ainda hoje louvo-lhe a sua acuidade na inspeção. Nada faltou à sua
perspicácia, senão compreender que, no meu estado, as suas perguntas eram
outras tantas sugestões e novos sintomas para a agravação de meu mal. Eu vivia
desvairado na vontade de acusar males crescentes, e os meus assistentes
porfiavam em ilustrar-me em torturas inéditas.
— Afinal...
quem te curou?
— Dir-lhe-ei
tudo, de começo. Hygia, a deusa da saúde, não é de todo má...
— A história
vai ser a mesma de todos os doentes restabelecidos: salvaram-se pela ação do
dedo de Deus, como teriam morrido pela intervenção do doutor...
— Creio
que o senhor adianta um mau conceito. Não me tenho na conta dos casos comuns.
— Desculpe-me.
— Pois
não! Mas, a minha doença foi uma criação dos meus médicos, e a minha cura
proveio de minha inabalável resolução de abandoná-los. Eu estava em último grau
de desengano quando o doutor foi chamado. Voltei assim às mãos de um alopata.
Homeopatas e feiticeiros nada fizeram de resultado para minorar os meus
padecimentos. Quando adoeci, aos vinte e três anos, foi numa convalescença de
enfermidade efetivamente assassina: o amor. Eu tinha conseguido, pela vez
primeira, objetivar uma paixão. E, não só isto: tivera, com todo o delírio
próprio da idade, a posse fácil, e passageira contra a minha vontade, de uma
mulher amada. O mundo inteiro concentrou-se, ao meu sentir, nos violentos
pesadelos de minha carne inexperimentada. Foram sessenta dias, mil quatrocentas
e quarenta horas, ou oitenta e seis mil e quatrocentos minutos de frenético
jogo de instintos, durante os quais as paradas assediaram-me a alma, remontando
as fichas do meu gozo ao máximo possível. O prazo desse amor fora, entretanto,
fatal. Esgotou-se e a mulher fugiu-se-me dos braços como a espiral do fumo que
procura as alturas. Ao depois disto, separado do entretenimento carnal, que me
combalia as fibras, como a água que vai abalar as galerias subterrâneas para
derribar as minas, tive a sensação do remorso de um grande crime...
— De um
crime delicioso...
— Talvez,
doutor.
— E
então?
— Encegueirado
pelo amor, o mundo ficou às escuras sem a luz do olhar dela. Quis correr nas
suas pegadas, e senti-me tolhido como a voz na garganta do atormentado por um
pesadelo. Vi em todos os convivas de minha existência, terríveis sombras
fantásticas... E tudo findava sempre num choro convulso, durante o qual me
punha a tremer com tanta violência quanta fazia estremecer todo o assoalho de
minha alcova e soar fora de tempo a campainha do relógio sobre a mesa...
Senti-me muitas vezes balançado como a esferazinha de madeira que anima o trilo
dos apitos...
— É
curioso, deveras, o seu caso.
— Foi,
doutor.
— Sim!
Foi! E hoje sinto não lhe ter visto nesse tempo originalíssimo.
— Mas
viu-me um outro médico e diagnosticou-me: um paranoico.
— Paranoico?
— Exatamente,
doutor, e vá vendo. Aconselhou que eu me tratasse com banhos de luzes. Escravos
do sentimentalismo clinico desse primeiro médico, os meus pais esgotaram uma
fortuna e eu fui enormemente banhado, a contragosto, com luzes de todas as
cores. Era inócuo o tratamento para me fazer bem, mas foi uma agravante dos
meus males Exacerbei-me. Os meus nervos polarizaram-se como se aguçados por
alta dose, mas não tóxica, de estricnina. Veio um segundo médico—já a esta hora
e há muito tempo — vitimado por uma embolia cerebral. Olhou-me e disse,
carrancudamente, diante de uma das minhas crises de saudade carnal: “são
delírios epileptiformes”... E o tratamento passou a ser feito com altas doses
de bromureto. A minha enervação deprimiu-se, e tornei-me um atoleimado, tanto
que nem pranteei a morte de minha mãe, desgostosa com a minha trágica
existência... Novo médico; vim a ser um simples neurastênico, com atonias
nervosas. Reconstituintes, passeios, boas alimentações, prazeres, etc.: nada, porém,
matava as saudades do meu instinto animal. Comecei de padecer do estômago, ora
por excesso de alimentação, ou por escassez... Fui um dispéptico, padeci de insônias,
tornei-me um narcoticômano. Na insônia, senti faltas de ar: novos médicos e fui
um cardíaco, um arteriosclerótico... Abusaram de iodetos e tive hemoptises. Um
Esculápio chamado às pressas, levando em conta a minha magreza, o sangue
esvaziado dos meus pulmões e o histórico dos meus sofrimentos, num rápido
prognóstico, anunciou a minha morte breve, por força de adiantadíssima
tuberculose. Quando os doutos senhores me interpelavam, nunca tiveram o
escrúpulo de ouvir-me no que sofria somente: sugeriam-me coisas que só dali por
diante eu começava de sentir. E veio um curador homeopata: os seus remédios
ingeri com facilidade, pela falta de sabor. Cai num abatimento nervoso, e um
vizinho, que se enforcou dias depois porque se sentiu arruinado nas suas forças
comerciais, lembrou que os maus espíritos encostados aos corpos de pessoas
novas, faziam artes do demo... E não só apresentou a conveniência de ser eu
rezado, como também foi buscar uma velhinha, encarquilhada e brônzea, que, de
sobre o meu corpo, deitado de bruços na cama, esconjurou o meu malfeitor, com
um galho da famosa arrudeira...
— E nem
rezado, Sr. Estefânio?
— Para o
doutor ver! Nem rezado!
— É única
a sua história.
— Creio
que sim, mas verdadeira. Notou-se, ao depois, que eu tinha mau funcionamento
renal... E foi quando o senhor foi chamado.
— Assim
acaeceu.
— E inda
pensa o doutor que eu tivesse afeção nos rins?
— Se me
não falha a memória, efetivamente.
— Pois
escute: logo depois de sua intervenção, repudiando eu os medicamentos que o
doutor indicou largamente, dois colegas seus foram trazidos em conferência.
— Que
disseram eles?
— Discordaram
preliminarmente do doutor, e discordaram entre eles mesmos. Do doutor
discordaram reputando sãos os meus rins.
— Sãos,
ou curados?
— Curados,
não. Inatingidos até àquela data. E firmaram o diagnóstico de uma hepatite
aguda, um encontrando atrofia do órgão e o outro hipertrofia.
— Mas,
afinal, acertaram?
— Supõem
que sim, porque ao depois da assistência deles recuperei a saúde.
— É
espantoso, meu caro senhor.
— Não é,
não, doutor. Ao tempo em que descri dos médicos, tinha reaparecido a mulher que
eu amara. Visitou-me. Inflamamo-nos, e... estamos casados, não foi assim,
Judite?
— Parece-me!
***
Assim exclamou, apenas, a sedutora mulher,
com os olhos espelhando o enfeitiçamento de um lindo manteau exposto no
mostruário de modas e confecções... enquanto o velho Doutor enrugava
solenemente a espaçosa fronte...
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