O velho couraçado
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Abril
chegara com os seus dias frescos e suaves. O sol tinha já na sua luz profusa e
de ouro um empalidecimento hibernal. As madrugadas mostravam-se agora, pelas
encostas das serras ou sobre os planos do mar, envoltas em vastas faixas de
gaze, de uma brancura ideal. As tardes, muito límpidas e despidas de nuvens,
expiravam lirialmente em rosados esmaecidos ou em leves barras douradas. Os
ocasos não tinham mais as galas pomposas do estio, mas nuances esbatidas de
aqua-marina ou de nácar. E a cada Ave-Maria, no alto azul do firmamento, corria
um bafejo álgido.
Havia quase
um mês que o desolado ecoar dos bombardeios tinha cessado de todo, trazendo a
paz e o esplendor dos dias felizes à grande capital, tão longamente agitada
durante os meses lutuosos da guerra civil. Mas a tempestade tremenda rugia
ainda para o sul, juntando o furor dos seus raios ao dos ciclones austrais,
estourando já sobre os mares em torvelinhos de espuma. Em breve, talvez,
esmagado pela fatalidade, um dos dois adversários pujantes ia rolar para
sempre, vencido, numa medonha hecatombe...
À maneira da
capital, Niterói, que durante os seis meses da luta sofrera os mais vivos
tiroteios, tornava agora à tranquilidade primitiva. Já na sua maior parte, como
uma tribo de andorinhas felizes, vinham chegando alegremente aos seus ninhos as
famílias que, atemorizadas com os horrores da guerra, se haviam asilado em
tumulto pelos sítios interiores. Pelas ruas restabelecia-se pouco a pouco o
movimento de uma cidade, que, abandonada por instantes, se repovoa de repente,
reentrando na sua atividade pacífica. E por tudo pairava como que o alvoroço
triunfal de uma nova vida.
Naquele dia,
entre as últimas famílias que voltavam, contava-se a do Barão de Sant’Ana, antigo e abastado fazendeiro, cujo palacete ficava
situado num arrabalde litoral, de onde se dominava a baía. Colocado para os
lados da Armação, o belo solar tivera por vezes o vasto terraço da frente e as
altas cimalhas rendilhadas ameaçados de ruína pelos disparos dos navios e
lanchas nos pequenos desembarques da arrojada marinhagem. Mas os pontos
atingidos já haviam sido reparados e a magnífica habitação parecia mais nova
que nunca nas suas brancas colunatas de mármore e nos seus ricos ornatos,
vazados em estilo coríntio.
A tarde, na
alegria daquela reinstalação sossegada e na plena posse de seus domínios, as
filhas do Sr. Barão, um bando de moças adoráveis, ao receberem as primeiras
visitas das amigas da vizinhança, que há tanto tempo não viam, irromperam pelo
jardim e o pomar em grazinada festiva. Foram então brinquedos e correrias,
álacres ao longo dos canteiros floridos e pelas sinuosas áleas areadas,
pitorescamente ensombradas pelas altas frondes ramalhosas das árvores
frutíferas.
À noite,
após o jantar, reuniram-se todos nos grandes salões iluminados, cujas largas
janelas de mármore abriam sobre a baía. O rico piano de cauda foi desde logo
assaltado pelas moças que, no seu constante alvoroço de júbilo, sucediam-se na
execução de variadas peças comuns, em geral valsas e polcas brasileiras, muito
dançantes, de um ritmo e graça característicos. De vez em quando, porém, os ritornellos simples dessas músicas
ligeiras cessavam. Havia uma pausa, em que se ouvia somente o doce gorjear
amoroso das vozes femininas.
Aproveitando
um desses fugidios instantes, uma das moças vizinhas destacou-se do grupo das
outras, e, muito alegre, numa pressa galante, dirigiu-se à Sra. Baronesa,
pedindo-lhe para se fazer ouvir num dos trechos da Gioconda, que ela cantava tão bem. A Sra. Baronesa, que apesar dos
seus cinquenta e três anos conservava ainda muito viva a sua antiga paixão pelo
canto, um dos triunfos maiores da sua encantada mocidade pelos salões
aristocráticos de então, ergueu-se logo a sorrir, e, atravessando rapidamente a
sala, foi sentar-se ao piano.
As meninas
correram imediatamente para as estantes de música, a procurar a ópera. Álbuns e
libretos de ricas capas douradas foram então folheados febrilmente por mãos
delicadas e brancas, em cujos dedos faiscavam anéis. Mas o livro onde estava a Gioconda ninguém atinava com ele. E na
impaciência da procura, fez-se uma alegre confusão, em que as folhas se
voltavam tumultuosamente, por entre exclamações e risadas.
De repente,
uma das moças, erguendo às mãos um livro de capa de veludo azul, saiu a correr
em direção ao piano, com gritinhos alvissareiros:
— Achei, Sra. Baronesa! Está aqui a Gioconda!
E colocando
o livro sobre a pequena estante do teclado, abriu-o na ária que canta o tenor,
um príncipe genovês disfarçado em marinheiro dálmata, a bordo do seu bergantim
romanesco, onde se improvisara corsário.
Então a bela
voz de soprano da Sra. Baronesa começou a ondular na sala, em notas de uma
encantadora melodia saudosa, que exprimiam vivamente as incertezas e as
interrogações amorosas que Enzo, enlouquecido da paixão pela divina Laura,
lançava desoladamente à imensidade e ao vago, de pé, à tolda balouçante
do Hecate, singrando o mar de
Fusina ao clarão triste da lua:
Cielo e mar!
L’etereo velo
Splende come
un Santo altare...
L’angiol mio verra dal cielo?!
L’angiol mio verra dal mare?!...
E a ária
findou pelo alvoroço de uma atracação em pleno mar. Era uma galeota iluminada,
que surgira de repente à popa, vindo de terra a toda a força, ao cantar ritmado
dos remos, em demanda do navio. Enzo depara com o vulto da amante adorada,
vaporoso e feérico como uma visão edênica, à luz vermelhante dos archotes
ensanguentando estranhamente as águas. Emocionado e ansioso por apertá-la em
seus braços, corre para o espelho de ré e joga um cabo à galeota, num tumulto
febril de palavras
Qua la fune...
aggrappa... annoda
Le tue mani...
un passo ancor...
Non cadere! approda! approda!...
As moças,
entusiasmadas pelo canto e a magistral execução, aplaudiam alegremente. Mas
Cecília, uma das filhas mais novas da Sra. Baronesa, tinha os seus negros olhos
cismadores cobertos de um véu de lágrimas. Aquela música melancólica, que há
tanto tempo não ouvia, avivara-lhe subitamente no espírito a dolorosa saudade
daquele a quem de muito votara a sua alma. Desde que rebentara a revolta que
nunca mais o pudera ver, porque ele, seguindo os seus companheiros de armas, se
fora enfileirar entre as suas falanges guerreiras, em o navio onde se achava...
Uma semana depois, no receio daquela luta terrível, ela partia com a família
para um sítio do interior, e não tivera mais notícias dele, nem mais soubera o
destino que levara! Dizia-lhe, porém, o coração que ele vivia ainda, e pelejava
lá pelos mares do sul, de onde certamente deveria em breve voltar...
E sob o
pungir destas recordações, a moça encaminhou-se para o amplo terraço que ditas
grandes lâmpadas verdes alumiavam com um vago e fosco clarão de esmeralda. Aí,
para não ser perturbada pela alacridade buliçosa das irmãs ou das amigas, que a
não deixavam um instante quando a viam imersa nas profundezas daqueles
cismares, foi acomodar-se num recanto escuso, entre a folhagem rendilhada de
alguns arbustos e de pequenas palmeiras, que ali cresciam prisioneiros em
grandes tinas pintadas.
A noite
arrastava-se serenamente no espaço azulado, que estrelas rareadas picavam com a
sua pontilhação tremeluzente e dourada. Para um lado a cidade estadeava-se na
sua casaria branca toda cortada pelas infindáveis linhas flamantes dos combustores
de gás, aqui e ali empalidecidos pelo clarão astral de uma ou outra lâmpada
elétrica; para o outro, eram as pequenas cordas em sombra das colunas da
Armação; e, defronte, estendendo-se entre o bordado em relevo das pontas
litorais, as águas escuras da baía ondulando vastamente para além até as
enfiadas de luzes infinitas dos planos e montes da capital, desdobrando-se
depois para a barra até aos páramos indecisos e empastados de treva das
vastidões do mar alto.
Com o
pensamento no amado, e tão somente nele, numa vaga palpitação que a fazia
suspirar, Cecília investigava com um olhar melancólico a superfície imensa das
vagas, buscando distinguir entre a leve mancha negra dos numerosos cascos
flutuantes o perfil querido dos navios da esquadra, que ela conhecia por ele
lhos haver mostrado muitas vezes, quando, nas frequentes idas à capital,
atravessavam juntos na barca. Mas, em meio à multidão das frotas estrangeiras
fundeadas no porto, desconhecendo totalmente a posição em que teria ficado a
armada revoltosa ao ser abandonada, embalde procurava descobrir os seus navios,
que a legalidade vencedora dispersara para o fundo da rade, e que, além de tudo, a escuridão da noite cruelmente lhe
ocultava.
E nessa
ânsia de incerteza e desejo insatisfeito, lembrou-se de repente do Sete de Setembro, o belo e velho
couraçado, que, segundo lhe constara lá no interior, onde se achava; os
revolucionários haviam propositalmente afundado ali, em frente à cidade, a
poucas braças do cais. Quando recebera essa notícia experimentara uma grande
tristeza e derramara mesmo algumas lágrimas, porque amava esse navio como a um
velho símbolo sagrado, que entrara acidental mas significativamente na sua
existência, pois fora a bordo dele que pela primeira vez vira o Álvaro, o seu
noivo adorado, quando, ainda segundo tenente, chegara de uma viagem ao Prata.
Já lá se iam dez anos, tinha ela apenas treze! Mas lembrava-se tão bem do velho
couraçado como se ainda o houvesse visto na véspera!
Nesse tempo
conservava o couraçado a sua alta e magnífica mastreação de fragata. O seu
longo costado de aço, onde a proa se desenhava na linha característica dos
navios de aríete, erguia-se a meio numa grande casamata, onde os temerosos
canhões espreitavam sinistramente para um e outro lado do mar, por quatro
grossas portinholas abertas. Percorrera esse compartimento com toda a família,
ao lado de Álvaro, que lhes mostrava tudo minuciosamente. Vira de perto esses
canhões, tão limpos e polidos que pareciam
de prata. E o camarote do comandante? e a praça de armas?... Parecia que os
estava ainda a ver, esses departamentos, com as suas pequenas salas ouro e
branco, os seus espelhos, os seus tapetes, os seus aparelhos e instrumentos de
guerra, os seus quadros de batalhas navais. A praça de armas a encantara
sobretudo, porque era nela que o Álvaro tinha o seu camarotes um quartinho
quase de bonecas, com um beliche esguio, tão estreito e tão baixo que ela não
sabia conto unta pessoa podia ali dormir sem morrer sufocada! Recordava-se
também do tombadilho, um lugar muito vasto, tão bem assoalhado e asseado como
um grande salão. O que, porém, aí mais a impressionara tinha sido o largo pano
claro que tremia ao vento, esticado horizontalmente em grandes varões de ferro,
e que dava uma tão doce frescura ao navio, protegendo-o contra o sol da tarde.
E fora à sombra deliciosa dessa espécie de teto de tenda marinha que o Álvaro,
de pé ao seu lado, num recanto da borda, aproveitando um rápido instante de
isolamento, lhe dissera, num vago enleio, as suas primeiras, inolvidáveis
palavras de amor...
E neste
triste desfiar de saudades, Cecília percorria a baía com os seus olhos
lacrimosos, buscando, por todos os pontos, o vulto do velho couraçado, ou a sua
mastreação, que deveria plainar ainda acima das ondas bravas. A escuridão sobre
as águas era, porém, naquela altura, de uma grande intensidade, devido ao forte
contraste das luzes vivas do cais; de sorte que ela só podia descobrir os
cascos altos das barcas, que chegavam ou que partiam, num grande silvo metálico...
No entanto,
uma vaga claridade láctea apontou saudosamente por sobre os montes de leste.
Malhas rútilas de vidrilhos acenderam-se sobre o mar, lá contra a costa
fronteira. Então, a meio do golfo, os navios entraram a destacar-se pouco a
pouco, em vagos debruns de alvaiade, sobre um fundo de fusain. E por fim a
lua surgiu, triunfal, abrindo um leque de prata sobre a negrura das águas.
Nesse
instante, justamente, o olhar triste da moça pairava num ponto das vagas onde
havia um casco negro. Era o velho couraçado. Estava já desmastreado e sem
cabos, as bordas despedaçadas. Ela julgou a princípio que não fosse ele, mas
alguma velha barcaça que ali se houvesse afundado.
— Não, não é
possível! dizia de si para si. O belo navio não pode estar assim tão desfeito,
tão desmantelado...
E
esquadrinhava todo o porto, a ver se algum outro casco seria o belo vaso de
guerra, onde encontrara o seu noivo e lhe falara pela primeira vez, numa emoção
que constituíra para sempre a sua maior felicidade. Mas nenhuma outra
embarcação grande se via ali que pudesse ser o Sete de Setembro. Era ele portanto aquele casco informe e negro,
que as ondas amavam e iam esconder para sempre, decerto, no seu seio de
esmeralda...
E enquanto
no vasto salão iluminado o canto e a música prosseguiam festivamente, ela, numa
infinita saudade do noivo, contemplava sem cessar os últimos destroços perdidos
do velho couraçado, que a lua, galgando agora o zênite, fazia destacar mais e
mais sob o seu clarão nostálgico.
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