O único assassinato de Cazuza
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Hildegardo Brandão, conhecido
familiarmente por Cazuza, tinha chegado aos seus cinquenta anos e poucos,
desesperançado; mas não desesperado. Depois de violentas crises de desespero,
rancor e despeito, diante das injustiças, que tinha sofrido em todas as coisas
nobres que tentara na vida, viera-lhe uma beatitude de santo e uma calma grave
de quem se prepara para a morte.
Tudo tentara e em tudo mais ou
menos falhara. Tentara formar-se, foi reprovado; tentara o funcionalismo, foi
sempre preterido por colegas inferiores em tudo a ele, mesmo no burocracismo;
fizera literatura e se, de todo, não falhou, foi devido à audácia de que se
revestiu, audácia de quem " queimou os seus navios". Assim mesmo,
todas as picuinhas lhe eram feitas. As vezes, julgavam-no inferior a certo
outro, porque não tinha pasta de marroquim; outras vezes tinham-no por inferior
a determinado " antologista", porque semelhante autor havia, quando
" encostado" ao Consulado do Brasil, em Paris, recebido como presente
do Sião, uma bengala de legítimo junco da Índia. Por essas do rei e outras ele
se aborreceu e resolveu retirar-se da liça. Com alguma renda, tendo uma pequena
casa, num subúrbio afastado, afundou-se nela, aos quarenta e cinco anos, para
nunca mais ver o mundo, como o herói de Jules Verne, no seu
"Náutilus". Comprou os seus últimos livros e nunca mais apareceu na
Rua do Ouvidor. Não se arrependeu nunca de sua independência e da sua
honestidade intelectual.
Ao cinquenta e três anos, não
tinha mais um parente próximo junto de si. Vivia, por assim dizer, só, tendo
somente a seu lado um casal de pretos velhos, aos quais ele sustentava e dava,
ainda por cima, algum dinheiro mensalmente.
A sua vida, nos dias de semana,
decorria assim: pela manhã, tomava café e ia até a venda, que supria a sua
casa, ler os jornais sem deixar de servir-se, com moderação de alguns cálices
de parati, de que infelizmente abusara na mocidade. Voltava para a casa,
almoçava e lia os seus livros, porque acumulara uma pequena biblioteca de mais
de mil volumes. Quando se cansava, dormia. Jantava e, se fazia bom tempo,
passeava a esmo pelos arredores, tão alheio e soturno que não perturbava nem um
namoro que viesse a topar.
Aos domingos, porém, esse seu
viver se quebrava. Ele fazia uma visita, uma única e sempre a mesma. Era também
a um desalentado amigo seu. Médico, de real capacidade, nunca o quiseram
reconhecer porque ele escrevia "propositalmente" e não
"propositadamente", "de súbito" e não — "às
súbitas", etc., etc.
Tinham sido colegas de
preparatórios e, muito íntimos, dispensavam-se de usar confidências mútuas. Um
entendia o outro, somente pelo olhar.
Pelos domingos, como já foi dito,
era costume de Hildegardo ir, logo pela manhã, após o café, à casa do amigo,
que ficava próximo, ler lá os jornais e tomar parte no " ajantarado",
da família.
Naquele domingo, o Cazuza, para
os íntimos, foi fazer a visita habitual a seu amigo doutor Ponciano.
Este comprava certos jornais; e
Hildegardo, outros. O médico sentava-se a uma cadeira de balanço; e o seu amigo
numa dessas a que chamam de bordo ou; de lona. De permeio, ficava-lhes a
secretária. A sala era vasta e clara e toda ela adornada de quadros anatômicos.
Liam e depois conversavam. Assim fizeram, naquele domingo.
Hildegardo disse, ao fim da
leitura dos quotidianos:
— Não sei como se pode viver no
interior do Brasil.
— Por quê?
— Mata-se à toa por dá cá aquela
palha. As paixões, mesquinhas paixões políticas, exaltam os ânimos de tal modo,
que uma facção não teme eliminar o adversário por meio do assassinato, às vezes
o revestindo da forma mais cruel. O predomínio, a chefia da política local é o
único fim visado nesses homicídios, quando não são questões de família, de
herança, de terras e, às vezes, causas menores. Não leio os jornais que não me
apavore com tais notícias. Não é aqui, nem ali; é em todo o Brasil, mesmo às
portas do Rio de Janeiro. É um horror! Além desses assassinatos, praticados por
capangas — que nome horrível! — há os praticados pelos policiais e semelhantes
nas pessoas dos adversários dos governos locais, adversários ou tidos como
adversários. Basta um boquejo, para chegar uma escolta, varejar fazendas, talar
plantações, arrebanhar gado, encarcerar ou surrar gente que, pelo seu trabalho,
devia merecer mais respeito. Penso, de mim para mim, ao ler tais notícias, que
a fortuna dessa gente que está na câmara, no senado, nos ministérios, até na
presidência da república se alicerça no crime, no assassinato. Que acha você?
— Aqui, a diferença não é tão
grande para o interior nesse ponto. Já houve quem dissesse que, quem não mandou
um mortal deste para o outro mundo, não faz carreira na política do Rio de
Janeiro.
— É verdade; mas, aqui, ao menos,
as naturezas delicadas se podem abster de política; mas, no interior, não. Vêm
as relações, os pedidos e você se alista. A estreiteza do meio impõe isso, esse
obséquio a um camarada, favor que parece insignificante. As coisas vão bem;
mas, num belo dia, esse camarada, por isso ou por aquilo, rompe com o seu
antigo chefe. Você, por lealdade, o segue; e eis você arriscado a levar uma
estocada em uma das virilhas ou a ser assassinado a pauladas como um cão
danado. E eu quis ir viver no interior!. De que me livrei, santo Deus.
— Eu já tinha dito a você que
esse negócio de paz na vida da roça é história. Quando cliniquei, no interior,
já havia observado esse prurido, essa ostentação de valentia de que os caipiras
gostam de fazer e que, as mais das vezes, é causa de assassinatos estúpidos.
Poderia contar a você muitos casos dessa ostentação de assassinato, que parte
da gente da roça, mas não vale a pena. É coisa sem valia e só pode interessar a
especialistas em estudos de criminologia.
— Penso — observou Hildegardo —
que esse êxodo da população dos campos para as cidades, pode ser em parte
atribuído à falta de segurança que existe na roça. Um qualquer cabo de
destacamento é um César naquelas paragens — que fará então um delegado ou
subdelegado É um horror!
Os dois calaram-se e,
silenciosos, se puseram a fumar. Ambos pensavam numa mesma coisa: em encontrar
remédio para um tão deplorável estado de coisas. Mal acabavam de fumar,
Ponciano disse desalentado:
— E não há remédio.
Hildegardo secundou-o.
— Não acho nenhum.
Continuaram calados alguns
instantes, Hildegardo leu ainda um jornal e, dirigindo-se ao amigo, disse:
— Deus não me castigue, mas eu
temo mais matar do que morrer. Não posso compreender como esses políticos, que
andam por aí, vivam satisfeitos, quando a estrada de sua ascensão é marcada por
cruzes. Se porventura matasse creia que eu, a que não tem deixado passar pela
cabeça sonhos de Raskólnikoff, sentiria como ele: as minhas relações com a
humanidade seriam de todo outras, daí em diante. Não haveria castigo que me
tirasse semelhante remorso da consciência, fosse de que modo fosse, perpetrado
o assassinato. Que acha você?
— Eu também; mas você sabe o que
dizem esses políticos que sobem às alturas com dezenas de assassinatos nas
costas?
— Não.
— Que todos nós matamos.
Hildegardo sorriu e fez para o
amigo com toda a serenidade:
— Estou de acordo. Já matei
também.
O médico espantou-se e exclamou:
— Você, Cazuza!
— Sim, eu! — confirmou Cazuza.
— Como? Se você ainda agora
mesmo...
— Eu conto a coisa a você. Tinha
eu sete anos e minha mãe ainda vivia. Você sabe que, a bem dizer, não conheci
minha mãe.
— Sei.
— Só me lembro dela no caixão
quando meu pai, chorando, me carregou para aspergir água benta sobre o seu
cadáver. Durante toda a minha vida, fez-me muita falta. Talvez fosse menos
rebelde, menos sombrio e desconfiado, mais contente com a vida, se ela vivesse.
Deixando-me ainda na primeira infância, bem cedo firmou-se o meu caráter; mas,
em contrapeso, bem cedo, me vieram o desgosto de viver, o retraimento, por
desconfiar de todos, a capacidade de ruminar mágoas sem comunicá-las a ninguém
— o que é um alívio sempre; enfim, muito antes do que era natural, chegaram-me
o tédio, o cansaço da vida e uma certa misantropia.
Notando o amigo que Cazuza dizia
essas palavras com emoção muito forte e os olhos úmidos, cortou-lhe a confissão
dolorosa com um apelo alegre:
— Vamos, Carleto; conta o
assassinato que você perpetrou.
Hildegardo ou Cazuza conteve-se e
começou a narrar.
— Eu tinha sete anos e minha mãe
ainda vivia. Morávamos em Paula Matos... Nunca mais subi a esse morro, depois
da morte de minha mãe...
— Conte a história, homem! — fez
impaciente o doutor Ponciano.
— A casa, na frente, não se
erguia, em nada, da rua; mas, para o fundo, devido à diferença de nível,
elevava-se um pouco, de modo que, para se ir ao quintal, a gente tinha que
descer uma escada de madeira de quase duas dezenas de degraus. Um dia, descendo
a escada, distraído, no momento em que punha o pé no chão do quintal, o meu pé
descalço apanhou um pinto e eu o esmaguei. Subi espavorido a escada, chorando,
soluçando e gritando: "Mamãe, mamãe! Matei, matei..." Os soluços me
tomavam a fala e eu não podia acabar a frase. Minha mãe acudiu, perguntando:
"O que é, meu filho!. Quem é que você matou?" Afinal, pude dizer:
"Matei um pinto, com o pé."
E contei como o caso se havia
passado. Minha mãe riu-se, deu-me um pouco de água de flor e mandou-me sentar a
um canto: "Cazuza, senta-te ali, à espera da polícia." E eu fiquei
muito sossegado a um canto, estremecendo ao menor ruído que vinha da rua, pois
esperava de fato a polícia. Foi esse o único assassinato que cometi. Penso que
não é da natureza daqueles que nos erguem às altas posições políticas, porque,
até hoje, eu...
Dona Margarida, mulher do doutor
Ponciano, veio interromper-lhes a conversa, avisando-os que o
"ajantarado" estava na mesa.
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