O tropeiro
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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O casamento do Sr. Antônio
Moreira, comerciante e fazendeiro em São Bernardo das Russas, cidade cearense a
duzentos e quarenta quilômetros de Fortaleza, estava anunciado para a véspera
de Natal, que distava, apenas, oito dias. Há um mês, quase, não se falava em
outra coisa. A festa devia ser estrondosa, com banda de música e danças por uma
semana, e o que era mais, com uma abundância de comidas e bebidas como não
havia notícia de outra na
redondeza. Antegozando o sucesso daquele acontecimento, o Sr. Antônio chamou,
uma tarde, um antigo tropeiro, e ordenou:
— João, você vai, amanhã, à
capital. Daqui lá são quarenta léguas, das grandes. Você ponha a cangalha na
burra preta; escanche, em cima, o jogo de malas, e, chegando à cidade, receba,
na casa da modista para quem vai esta carta, o vestido da noiva.
E olhando o tropeiro,
significativamente:
Mas, olhe: você deve estar aqui
no sábado, à tarde. Se não, já sabe!
O caboclo correu ao cercado, pôs
a cangalha na burra, atirou-lhe por cima o jogo das malas de couro, e partiu.
Chegando a Fortaleza, recebeu a encomenda, e, para estar em São Bernardo no dia
determinado, retrocedeu na mesma hora.
O prazo que o Sr. Moreira lhe
havia dado para a viagem era, francamente, curto. O caminho não era bom, a
burra era velha, e, sexta-feira, à tardinha, faltando ainda dezoito léguas,
estava completamente estropiada. Debalde o caboclo, sacudindo o cabresto, lhe
metia o relho, rogando-lhe pragas: a alimária reunia as forças, tentava um
choto manhoso, e voltava ao mesmo passo triste, lento, fatigado.
De repente, surgiu à margem da
estrada uma palhoça de lavrador. João bateu:
— Ôi, de casa!
— Ôi, de fora!
E apareceu à porta de esteira um
sertanejo cobreado, dando as "boas-tardes".
O tropeiro, que era mais ou menos
conhecido por ali, perguntou, interessado, se não havia um cavalo, um burro, um
jumento, que lhe pudessem alugar. O dono da casa foi franco: animais, não
tinha; informado, porém, do compromisso do viajante, lembrou-lhe, experiente,
um remédio:
— Homem, você quer um conselho? E
ensinou:
— Olhe, ali, atrás da casa, tem
uma pimenteira. Está encarnada de pimenta. Você apanha uma porção delas,
machuca num caco, faz uma bolota de pano, e... e... passa!
O João aceitou a receita:
machucou as pimentas, enrolou alguns molambos à ponta de um pau, ensopou-os no
molho, e passou.
Passou e despediu-se.
Daí a pouco, a burra começou a
aumentar a marcha. Momentos depois, principiou a trotar; e, finalmente, largou,
de malas às costas, numa carreira brutal, furiosa, desabalada, caminho em fora.
Seguro à ponta do cabresto, o
caboclo, a princípio, acompanhou o quadrúpede. Quando, porém, este abalou na
correria desbragada pela estrada silenciosa, não houve mais recurso: estava,
ele também, cansado, fatigado, estropiado. Mas, recordando-se que tinha
prometido estar com o animal em São Bernardo das Russas, e este se podia
transviar com a roupa da noiva, reuniu, num supremo esforço todas as suas
energias de inteligência e de músculos, arrancou, num movimento rápido, o
cinturão de couro, e, fazendo em si mesmo o que havia feito com a burra,
largou-se, também, pelo caminho soturno, numa carreira desenfreada!
No dia seguinte, pela manhã, oito
horas antes da que lhe fora marcada, atravessavam os dois, o tropeiro e a
burra, em disparada, as últimas ruas de São Bernardo das Russas.
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