O traidor
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Não estava ali há muitas horas.
Fora preso de manhã e, pelo cálculo aproximado do tempo, pois estava sem
relógio e mesmo se o tivesse não poderia consultá-lo à fraca luz da masmorra,
imaginava que podiam ser onze nas horas.
Por que o fora? Ao certo não
sabia; o policial que o prendera nada lhe quisera dizer; e, desde que saíra lá
da ilha das Enxadas para a das Cobras, não trocara palavra com ninguém; não
vira nenhum conhecido no caminho. Nem o próprio Ricardo que lhe podia por um
olhar levar sossego às suas dúvidas. Ele atribuía a prisão à carta que
escrevera ao presidente, protestava contra a cena que presenciara na véspera.
Levara ao conhecimento da alta autoridade a desconfiança que tinha que aquelas
execuções não foram autorizadas por ele, as quais denunciava e contra as quais
protestava. Nada omitiu do seu pensamento; falou claro, pouco e nitidamente.
Devia ser por isso que ele estava ali naquela masmorra, como uma fera, como um
criminoso, sepultado na treva, sofrendo a umidade, misturado com os seus
dejetos, quase sem carne. Como acabaria?
Não havia base para qualquer
hipótese. Era de conduta tão desigual e incerta o governo, que tudo ele poderia
esperar: a liberdade ou a morte, mais esta talvez que aquela.
Ia morrer, quem sabe se aquela noite
mesmo, e que tinha ele feito de sua vida?
Nada. Levara toda ela atrás da
miragem, de estudar a pátria, por amá-la, por querê-la, de contribuir para a
sua prosperidade. A sua mocidade gastara nisso, a sua visibilidade também, e
agora que estava na velhice, como ela o recuperava? Matando-o. E o que não
deixara de gozar e de ver na vida, tudo.
Não brincara, não pandegara, não
amara, todo esse lado da existência que parece fugir um pouco à sua tristeza
necessária, ele não via, ela não passara, ele não experimentara. Desde dezoito
anos que o tal patriotismo lhe absorvera e por ele fizera tolice e estudara
inutilidades. Lembrava-se das suas coisas, de tupi, das suas tentativas
agrícolas... Restavam delas em sua alma uma satisfação? Nenhuma, nenhuma.
O tupi encontrava a incredulidade
geral, o uso, a mofa, o escárnio, o folclore foi aquela decepção, e ambos o
levaram à loucura. E a agricultura? Nada. As terras não eram ferozes e ela não
era fácil como diziam os livros; as inclemências e irregularidades do clima
trouxeram-lhe decepções. E quando o seu patriotismo se fizera combatente, o que
achara? Decepções. A sua vida era uma decepção, uma série, um encadeamento de
decepções.
A pátria que quisera ter era um
mistério; era um fantasma criado por ele no silêncio do seu gabinete. A que
existia era do tenente Antônio, do Dr. Campos, essa é que era exata e era real.
Mas como é que ele tão sereno, tão lúcido, empregara sua vida, gastara o seu
tempo, envelhecera atrás de tal quimera? Como é que não viu nitidamente a
realidade, não a pressentiu logo e se deixou enganar por esse falaz ídolo,
absorvendo-se nele, dar-lhe em holocausto toda a sua existência?
Ia para a cova, como a irmã, sem
deixar traço seu, sem um filho, sem um amor, sem uma asneira, nada que
afirmasse a sua passagem na terra, na sociedade. Entretanto, outros que lhe
seguissem as pegadas, quem sabe se? Mas como, se não se fizera comunicar, se
nada dissera e ficara como maníaco a tracejar para si mesmo e para o seu sonho?
E esse seguimento adiantaria
alguma coisa? Essa continuidade traria enfim para a terra alguma felicidade? Há
quantos anos vidas mais valiosas que a dele, se ofereciam, se sacrificavam e as
coisas ficavam na mesma.
E ele se lembrava que há quase
cem anos, ali, no mesmo lugar, talvez naquela mesma prisão, homens generosos e
ilustres, estiveram presos por quererem melhorar o estado de coisas de seu
tempo. Tinha havido vantagem, as condições gerais tinham melhorado?
Aparentemente sim; mas bem examinado, não. Tudo continuava o mesmo e aquele
imposto com o qual eles contavam para levantar a população, talvez fosse mínimo
à vista dos que atualmente ela paga.
Aqueles homens, acusados de crime
tão nefando em face da legislação do tempo, tinham levado dois anos a ser
julgados; e ele, que não tinha crime algum, que não havia código da lei que o
acusasse de crime, nem era julgado; seria simplesmente executado.
E ele que fora bom, que fora
generoso, que fora honesto, que fora virtuoso, ia para casa, sem o
acompanhamento de um parente, de um amigo, de um camarada.
Onde estariam eles? Sobre o
Ricardo Coração dos Outros, tão singular e tão dedicado, tão inocente na sua
mania de violão, ele não poria mais os olhos?
Era tão bom que o pudesse, para
poder mandar à sua irmã o último recado: do preto Anastácio um adeus, à sua
afilhada um abraço.
Quaresma se enganava, entretanto,
quando pensava assim. Ricardo soubera de sua prisão e procurava tomar
providências. Teve notícias do motivo exato; era aquele mesmo que ele pensava.
A indignação contra a sua carta fora geral no palácio. A vítima tinha feito os
vitoriosos inclementes e aquele protesto não teve um defensor. O trovador não
perderia tempo: procurou modos de soltá-lo; procurou influências, foi ao
general Breves, a Bustamante; mas ninguém quis envolver-se.
Ele não desesperou; lembrou-se da
afilhada e a foi procurar na Real Grandeza. A sua esperança não era grande, mas
lá foi.
A moça estava só, pois o marido
cada vez mais trabalhava para aproveitar os despojos da vitória. Ele lhe narrou
o fato e ela não conteve uma exclamação dolorosa.
— Mas que fazer, meu caro senhor
Ricardo. Eu não conheço ninguém, eu não tenho amizades poderosas... Minhas
amigas... A Alice, a mulher do doutor Brandão, está fora... a Camila, a filha
do senador Cariolano, não pode... Não sei...
E a continuar essas últimas
palavras com um grande desespero, os dois ficaram calados e a moça enterrou as
mãos nos cabelos muitos negros.
— Que hei de fazer, meu Deus? —
dizia ela.
Pela primeira vez, ela sentiu que
a vida tinha coisas miseráveis e desesperadoras.
Ela tinha todas as disposições,
para salvá-lo; faria sacrifício de tudo, mas não lhe aparecia um caminho, um
meio.
— Talvez, seu marido — disse
Ricardo.
Ela pensou um pouco, demorou-se
mais no exame do caráter do seu esposo; mas, em breve, viu bem que o seu
egoísmo, a sua ambição não permitiriam passo tão arriscado, e disse:
— Qual, esse...
Ricardo não sabia o que
aconselhá-la e olhava para os móveis e que se dá na sala de jantar. Ele
imaginava um alvitre, um empenho; mas nada.
Por fim, pareceu atinar em si.
Teve uma grande alegria no olhar e falou:
— Se a senhora fosse lá...
Um instante a fisionomia da moça
pareceu espantada: os seus olhos se dilataram e o rosto ficou rígido. Esteve
assim segundos e logo disse com firmeza:
— Vou.
Ricardo ficou só e Lúcia foi
vestir-se.
Ele pensou com admiração naquela
moça que por simples amizade se entregava a tal sacrifício; vai bem a seriedade
de seu caráter, a profunda amizade que tinha por aquele bom Quaresma a quem,
como ele, fosse a única a admirar, a prezar as suas qualidades, a elevação das
suas ideias e a sua grande sinceridade.
Não tardou que ela ficasse pronta
e ainda abotoava as luvas, na sala de jantar, quando o marido entrou. Ele nem
fez menção de ter visto Ricardo e foi logo direto à mulher:
— Vais sair?
Ela, afogueada pela ânsia
desesperada, disse com certa vivacidade:
— Vou.
Armando ficou admirado de vê-la
falar com aquela vivacidade:
— Onde vais? — e logo,
voltando-se para Ricardo,
— Que faz o senhor aqui?
Coração dos Outros não teve ânimo
de responder; adiantava uma cena violenta que ele teria querido evitar; mas
Lúcia disse com firmeza:
— Vai acompanhar-me ao Itamaraty.
O marido pareceu acalmar-se um
pouco quando ela lhe disse a que ia, e foi com doçura que ele disse:
— Mas fazes mal.
— Por quê?
— Vais comprometer-me. Tu
sabes...
Ela não lhe respondeu logo e
mirou-o um instante com os seus grandes olhos cheios de escárnio. Riu-se um
pouco e disse:
— É isto! Eu, por que eu, por que
eu, e se eu, para aqui eu para ali... não pensas noutra coisa. A vida é feita
para ti, todos só devem viver para ti... Muito engraçado! De forma que eu
(agora digo eu também) não tenho direito de me sacrificar, de provar uma
amizade, de ter na vida um traço vigoroso? É interessante! Não sou nada, nada,
sou alguma coisa, um cafundó qualquer, mas levando para a cova inteiramente
intacto o seu orgulho, a doçura, a sua bondade, sua generosidade, sem a mancha
de um engenho que diminuísse a injustiça de sua morte.
Ela saiu. Olhou o céu, as aves e
as casas de Santa Teresa e se lembrou que por estas paragens já moraram tribos
selvagens, das quais um dos chefes se orgulhou de ter domado dez mil inimigos.
Tinha quase quatrocentos anos. Tinha havido grandes modificações nesses quatro
séculos... Esperemos ainda... E seguia serenamente a encontro de Ricardo
Coração dos Outros.
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