O tal negócio de “prestações”
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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O Sr. José de Andrade era
contramestre3 de uma oficina do Estado, situada nos subúrbios.
Era ele o único homem da casa,
pois, do seu casamento com d. Conceição, só lhe nasceram filhas, que eram
quatro: Vivi, Loló, Ceci e Lili.
Era homem morigerado, sem vícios,
exemplar chefe de família, que ele governava com acerto e honestidade. Só tinha
um fraco: jogar no bicho; mas, isso mesmo, não era diariamente; fazia-o de
longe em longe.
Um belo dia, ganhou na centena.
Adquiriu, por quinhentos mil-réis, um terreno, em Inhaúma; comprou algumas
peças de uso doméstico e distribuiu cem mil-réis, igualmente, entre a mulher e
as quatro filhas. D. Conceição tinha visto nas mãos do Benjamim, vendedor
ambulante, por prestações, uma saia de casimira muito boa. Quis comprá-la, mas
não tinha de mão a quantia que devia dar de sinal. Entretanto, agora, com
aqueles vinte mil-réis, estava de posse dela.
Nem de propósito! No dia
seguinte, Benjamim passa, e ela adquire a saia, dando o sinal e obrigando-se a
pagar doze mil-réis, mensalmente.
Vivi também tinha visto nas mãos
de Sárak uns borzeguins de cano alto, de pelica, muito bons; mas não tivera o
dinheiro na ocasião, para fazer o primeiro adiantamento.
Esperou Sárak e adquiriu dois
pares: um preto e outro amarelo.
Estava no dever de pagar doze
mil-réis por mês, que ela esperava obter com o produto de suas costuras.
Loló, essa gostava de joias e
vivia sonhando com um relogiozinho-pulseira que o Nicolau lhe quisera vender a
prestações de quinze mil-réis. Avisou a sua amiga Eurídice que, quando ele lhe
fosse cobrar, o mandasse falar com ela, Loló.
Assim foi feito; e, no domingo
seguinte, ia ao cinema com o adorno cobiçado que logo se desarranjou.
Pagaria as prestações com o
dinheiro que os bordados lhe dariam.
Ceci e Lili não eram lá muito
inclinadas para esse negócio de prestações; mas o exemplo das irmãs animou-as.
Ceci tinha uma linda saia de voile azul-marinho, que o papai lhe dera
no mês passado, quando fizera dezessete anos; mas não gostava da blusa que era
branca. Queria uma creme; e, justamente, o Ivã, um ambulante de prestações, que
lhe não deixava a porta, tinha uma em condições, e magnífica. Ficou com ela; e
a sua contribuição era modesta: seis mil-réis mensais, quantia ínfima que o pai
lhe daria certamente.
Lili, a mais moça, não tendo
ainda dezesseis anos, parecia resistir à atração, à fascinação de obter um
adorno ou uma peça de vestuário, por meio de quotas mensais.
Guardou, durante uma semana, os
vinte mil-réis intactos; mas apareceu-lhe no portão, pela primeira vez, um
vendedor ambulante de joias, a prestações; e ela, dando-lhe o dinheiro, que
tinha reservado, fez-se dona de umas “africanas” com a promessa de pagar dez
mil-réis por mês. Chama-se o ambulante José Síky.
Ela ajudava a mais velha, a Vivi,
nas costuras e, por isso, lhe dava esta uma parte do que ganhava.
O mês correu e não bem para os
cálculos das moças, pois Vivi adoeceu e não pudera trabalhar na “Singer”. A
moléstia da mais velha refletiu-se em toda a economia da família, pois houve
aumento de despesas com medicamentos, dieta etc. D. Conceição não pôde fazer
economias nas compras, pois tinha que atender ao acréscimo de despesa com o
aleitamento de Vivi; à segunda, Loló, tendo que cuidar da irmã, não foi
permitido bordar; ao pai, devido aos dispêndios com o tratamento da mais velha,
não foi dado oferecer qualquer dinheiro à sua filha de estimação, Ceci; e,
finalmente, não tendo Vivi trabalhado, Lili não ganhava a gorjeta que a
primogênita lhe dava.
No começo do mês seguinte, um
atrás do outro, lá batiam à porta, Benjamim, Sárak, Nicolau, Ivã, José Síky , a
cobrar as prestações de d. Conceição, de Vivi, de Loló, de Ceci e de Lili.
Desculparam-se do melhor modo e
os homens se foram resignadamente. No mês que se seguiu, as coisas não correram
tão bem como elas esperavam. Fizeram alguma coisa, mas insuficiente para pagar
aos russos as prestações.
Não ficaram estes contentes e
procuraram indagar quem era o dono da casa. José de Andrade não sabia da
história de prestações e ficou espantado quando eles o procuraram, para a
cobrança. No começo pensou que era só um; mas quando viu que eram cinco, e que
as prestações alcançavam a respeitável soma de cinquenta e nove mil-réis,o
pobre homem quase ficou louco.
Ainda quis restituir os objetos;
mas as peças de vestuário estavam usadas, o relógio desarranjado e até as
“africanas” precisavam de consertos no fecho.
Não houve remédio senão pagar, e,
ainda hoje, quando o modesto operário encontra um homem de prestações, diz com
os seus botões:
— Não sei como a polícia deixa
essa gente andar solta... Só se lembra de perseguir o “bicho” que é coisa
inocente.
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