O soneto
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Sala de família remediada. Retratos pelas paredes e uma vista do Rio,
tirada de Santa Teresa. Há três janelas de sacada dando para um pequeno jardim,
São Cristóvão, Anastácio Fragoso, noivo de d. Cecília, filha dos donos da casa,
acaba de chegar. A sua futura sogra, D. Apa, está furiosa.
D. APA
Mas, então, o senhor ainda tem a
coragem de pôr os pés nesta casa?
ANASTÁCIO (admirado)
Não atino com a razão de seu
espanto. Julgo que...
D. APA (furiosa)
Então não sabe que endoideceu
minha filha, seu biltre?
ANASTÁCIO (delicado)
Minha senhora, por quem é, não
diga tal... Era lá possível que eu...
D. APA
Sim, o senhor, com os seus
sonetos...
ANASTÁCIO
Como? Como sonetos podem lá
enlouquecer alguém?
D. APA
Os seus pelo menos tiveram esse
efeito. Diga-me uma coisa: que quer dizer isto: “O teu pálido olhar, espraiado
em dois rios verdes, da cor azul dos desesperos áureos”?
ANASTÁCIO (calmo)
Não entende? E fácil...
D. APA (furiosa)
Fácil! Como é que os rios são
verdes da cor azul? São azuis ou verdes, afinal?
ANASTÁCIO (esforçando-se por explicar)
São uma coisa e outra. No mesmo
tempo que são verdes, são também azuis...
D. APA (indignada)
Mas onde é que se via rio... O
senhor é doido e a sua loucura pega... Veja o estado em que pôs minha filha!
(Entra vagamente d. Cecília, e lendo um papel faz alteração ao meio.
Olhe para tudo sem ver. Para na sala).
D. CECÍLIA (declamando)
Não entendo... Eu queria dizer
isto (lê):
“Deram-lhe prata branca as
lágrimas em fios
de pérolas, e, vivendo em campos
suaves
Lindas virgens cristãs cantam o
Senhor, reclamais
A canção paternal das perdas e
seu tempo.” (Continuando)
“Prata branca as lágrimas em fios
de pérolas”...
Que será? Hum... Mas não é... Há
de querer dizer alguma coisa...
D. APA (intervindo)
Deixa disso, minha filha. Ninguém
pode compreender isso...
D. CECÍLIA (teimosa)
Não é possível... Isso significa
alguma coisa... É preciso pensar... Já me tinha dito que inteligência das moças
não era para a alta poesia — não é assim, Anastácio?
ANASTÁCIO (gaguejando)
Às... ve... Às vezes.
D. APA (saltando que nem uma víbora)
Cale-se, seu traste.
D. CECÍLIA (lacrimejante)
Que é isso, mamãe. Não maltrate
Anastácio. Ele é tão bom... Veja o que ele diz dos meus olhos:
“Os teus olhos, ó musa
eucaristial,
deploram Soluços de tristeza ou
dão alegres urros
— A desgraça teatral de quantos
os namoram.
Resumindo pincel, batuta, lira e
Melancolicamente entristecidos
A pulverização simbólica das...”
D. APA
Mas, minha filha, como é possível
você achar isto bom quando ele te chama de animal, dizendo que dás urros?
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