O
Segredo do Bonzo
CAPÍTULO INÉDITO DE FERNÃO MENDES PINTO
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Atrás deixei narrado o que se passou nesta cidade Fuchéu, capital do reino de Bungo, com o Padre-mestre Francisco, e de como el-rei se houve com o Fucarandono e outros bonzos, que tiveram por acertado disputar ao padre as primazias da nossa santa religião. Agora direi de uma doutrina não menos curiosa que saudável ao espírito, e digna de ser divulgada a todas as repúblicas da cristandade.
Um dia, andando a passeio com Diogo Meireles,
nesta mesma cidade Fuchéu, naquele ano de 1552, sucedeu deparar-se-nos um
ajuntamento de povo, à esquina de uma rua, em torno a um homem da terra, que
discorria com grande abundância de gestos e vozes. O povo, segundo o esmo mais
baixo, seria passante de cem pessoas, varões somente, e todos embasbacados.
Diogo Meireles, que melhor conhecia a língua da terra, pois ali estivera muitos
meses, quando andou com bandeira de veniaga (agora ocupava-se no exercício da
medicina, que estudara convenientemente, e em que era exímio) ia-me repetindo
pelo nosso idioma o que ouvia ao orador, e que em resumo, era o seguinte: — Que
ele não queria outra coisa mais do que afirmar a origem dos grilos, os quais
procediam do ar e das folhas de coqueiro, na conjunção da lua nova; que este
descobrimento, impossível a quem não fosse, como ele, matemático, físico e
filósofo, era fruto de dilatados anos de aplicação, experiência e estudo,
trabalhos e até perigos de vida; mas enfim, estava feito, e todo redundava em
glória do reino de Bungo, e especialmente da cidade Fuchéu, cujo filho era; e,
se por ter aventado tão sublime verdade, fosse necessário aceitar a morte, ele
a aceitaria ali mesmo, tão certo era que a ciência valia mais do que a vida e
seus deleites.
A multidão, tanto que ele acabou, levantou um
tumulto de aclamações, que esteve a ponto de ensurdecer-nos, e alçou nos braços
o homem bradando: “Patimau, Patimau, viva Patimau, que descobriu a origem dos
grilos!” E todos se foram com ele ao alpendre de um mercador, onde lhe deram
refrescos e lhe fizeram muitas saudações e reverências, à maneira deste gentio,
que é em extremo obsequioso e cortesão.
Desandando o caminho, vínhamos nós, Diogo
Meireles e eu, falando do singular achado da origem dos grilos, quando, a pouca
distância daquele alpendre, obra de seis credos, não mais, achamos outra
multidão de gente, em outra esquina, escutando a outro homem. Ficamos
espantados com a semelhança do caso, e Diogo Meireles, visto que também este
falava apressado, repetiu-me da mesma maneira o teor da oração. E dizia este
outro, com grande admiração e aplauso da gente que o cercava, que enfim descobrira
o princípio da vida futura, quando a terra houvesse de ser inteiramente
destruída, e era nada menos que uma certa gota de sangue de vaca; daí provinha
a excelência da vaca para habitação das almas humanas, e o ardor com que esse
distinto animal era procurado por muitos homens à hora de morrer; descobrimento
que ele podia afirmar com fé e verdade, por ser obra de experiências repetidas
e profunda cogitação, não desejando nem pedindo outro galardão mais que dar
glória ao reino de Bungo e receber dele a estimação que os bons filhos merecem.
O povo, que escutara esta fala com muita veneração, fez o mesmo alarido e levou
o homem ao dito alpendre, com a diferença que o trepou a uma charola; ali
chegando, foi regalado com obséquios iguais aos que faziam a Patimau, não
havendo nenhuma distinção entre eles, nem outra competência nos banqueteadores,
que não fosse a de dar graças a ambos os banqueteados.
Ficamos sem saber nada daquilo, porque nem
nos parecia casual a semelhança exata dos dois encontros, nem racional ou
crível a origem dos grilos, dada por Patimau, ou o princípio da vida futura,
descoberto por Languru, que assim se chamava o outro. Sucedeu, porém,
costearmos a casa de um certo Titané, alparqueiro, o qual correu a falar a
Diogo Meireles, de quem era amigo. E, feitos os cumprimentos, em que o
alparqueiro chamou as mais galantes coisas a Diogo Meireles, tais como — ouro
da verdade e sol do pensamento, — contou-lhe este o que víramos e ouvíramos
pouco antes. Ao que Titané acudiu com grande alvoroço: — Pode ser que eles
andem cumprindo uma nova doutrina, dizem que inventada por um bonzo de muito
saber, morador em umas casas pegadas ao monte Coral. E porque ficássemos
cobiçosos de ter alguma notícia da doutrina, consentiu Titané em ir conosco no
dia seguinte às casas do bonzo, e acrescentou: — Dizem que ele não a confia a
nenhuma pessoa, senão às que de coração se quiserem filiar a ela; e, sendo
assim, podemos simular que o queremos unicamente com o fim de a ouvir; e se for
boa, chegaremos a praticá-la à nossa vontade.
No dia seguinte, ao modo concertado, fomos às
casas do dito bonzo, por nome Pomada, um ancião de cento e oito anos, muito
lido e sabido nas letras divinas e humanas, e grandemente aceito a toda aquela
gentilidade, e por isso mesmo mal visto de outros bonzos, que se finavam de
puro ciúme. E tendo ouvido o dito bonzo a Titané quem éramos e o que queríamos,
iniciou-nos primeiro com várias cerimônias e bugiarias necessárias à recepção
da doutrina, e só depois dela é que alçou a voz para confiá-la e explicá-la.
— Haveis de entender, começou ele, que a
virtude e o saber têm duas existências paralelas, uma no sujeito que as possui,
outra no espírito dos que o ouvem ou contemplam. Se puserdes as mais sublimes
virtudes e os mais profundos conhecimentos em um sujeito solitário, remoto de
todo contato com outros homens, é como se eles não existissem. Os frutos de uma
laranjeira, se ninguém os gostar, valem tanto como as urzes e plantas bravias,
e, se ninguém os vir, não valem nada; ou, por outras palavras mais enérgicas,
não há espetáculo sem espectador. Um dia, estando a cuidar nestas coisas,
considerei que, para o fim de alumiar um pouco o entendimento, tinha consumido
os meus longos anos, e, aliás, nada chegaria a valer sem a existência de outros
homens que me vissem e honrassem; então cogitei se não haveria um modo de obter
o mesmo efeito, poupando tais trabalhos, e esse dia posso agora dizer que foi o
da regeneração dos homens, pois me deu a doutrina salvadora.
Neste ponto, afiamos os ouvidos e ficamos
pendurados da boca do bonzo, o qual, como lhe dissesse Diogo Meireles que a
língua da terra me não era familiar, ia falando com grande pausa, porque eu
nada perdesse. E continuou dizendo: — Mal podeis adivinhar o que me deu ideia
da nova doutrina; foi nada menos que a pedra da lua, essa insigne pedra tão
luminosa que, posta no cabeço de uma montanha ou no píncaro de uma torre, dá
claridade a uma campina inteira, ainda a mais dilatada. Uma tal pedra, com tais
quilates de luz, não existiu nunca, e ninguém jamais a viu; mas muita gente crê
que existe e mais de um dirá que a viu com os seus próprios olhos. Considerei o
caso, e entendi que, se uma coisa pode existir na opinião, sem existir na
realidade, e existir na realidade, sem existir na opinião, a conclusão é que
das duas existências paralelas a única necessária é a da opinião, não a da
realidade, que é apenas conveniente. Tão depressa fiz este achado especulativo,
como dei graças a Deus do favor especial, e determinei-me a verificá-lo por
experiências; o que alcancei, em mais de um caso, que não relato, por vos não
tomar o tempo. Para compreender a eficácia do meu sistema, basta advertir que
os grilos não podem nascer do ar e das folhas de coqueiro, na conjunção da lua
nova, e por outro lado, o princípio da vida futura não está em uma certa gota
de sangue de vaca; mas Patimau e Languru, varões astutos, com tal arte souberam
meter estas duas ideias no ânimo da multidão, que hoje desfrutam a nomeada de
grandes físicos e maiores filósofos, e têm consigo pessoas capazes de dar a
vida por eles.
Não sabíamos em que maneira déssemos ao bonzo
as mostras do nosso vivo contentamento e admiração. Ele interrogou-nos ainda
algum tempo, compridamente, acerca da doutrina e dos fundamentos dela, e depois
de reconhecer que a entendíamos, incitou-nos a praticá-la, a divulgá-la
cautelosamente, não porque houvesse nada contrário às leis divinas ou humanas,
mas porque a má compreensão dela podia daná-la e perdê-la em seus primeiros
passos; enfim, despediu-se de nós com a certeza (são palavras suas) de que
abalávamos dali com a verdadeira alma de pomadistas; denominação esta que, por
se derivar do nome dele, lhe era em extremo agradável.
Com efeito, antes de cair a tarde, tínhamos
os três combinado em pôr por obra uma ideia tão judiciosa quão lucrativa, pois
não é só lucro o que se pode haver em moeda, senão também o que traz
consideração e louvor, que é outra e melhor espécie de moeda, conquanto não dê
para comprar damascos ou chaparias de ouro. Combinamos, pois, à guisa de experiência,
meter cada um de nós, no ânimo da cidade Fuchéu, uma certa convicção, mediante
a qual houvéssemos os mesmos benefícios que desfrutavam Patimau e Languru; mas,
tão certo é que o homem não olvida o seu interesse, entendeu Titané que lhe
cumpria lucrar de duas maneiras, cobrando da experiência ambas as moedas, isto
é, vendendo também as suas alparcas: ao que nos não opusemos, por nos parecer
que nada tinha isso com o essencial da doutrina.
Consistiu a experiência de Titané em uma
coisa que não sei como diga para que a entendam. Usam neste reino de Bungo, e
em outros destas remotas partes, um papel feito de casca de canela moída e
goma, obra mui prima, que eles talham depois em pedaços de dois palmos de
comprimento, e meio de largura, nos quais desenham com vivas e variadas cores,
e pela língua do país, as notícias da semana, políticas, religiosas, mercantis
e outras, as novas leis do reino, os nomes das fustas, lancharas, balões e toda
a casta de barcos que navegam estes mares, ou em guerra, que a há frequente, ou
de veniaga. E digo as notícias da semana, porque as ditas folhas são feitas de
oito em oito dias, em grande cópia, e distribuídas ao gentio da terra, a troco
de uma espórtula, que cada um dá de bom grado para ter as notícias primeiro que
os demais moradores. Ora, o nosso Titané não quis melhor esquina que este
papel, chamado pela nossa língua Vida e
claridade das coisas mundanas e celestes, título expressivo, ainda que um
tanto derramado. E, pois, fez inserir no dito papel que acabavam de chegar
notícias frescas de toda a costa de Malabar e da China, conforme as quais não
havia outro cuidado que não fossem as famosas alparcas dele Titané; que estas
alparcas eram chamadas as primeiras do mundo, por serem mui sólidas e
graciosas; que nada menos de vinte e dois mandarins iam requerer ao imperador
para que, em vista do esplendor das famosas alparcas de Titané, as primeiras do
universo, fosse criado o título honorífico de “alparca do Estado”, para
recompensa dos que se distinguissem em qualquer disciplina do entendimento; que
eram grossíssimas as encomendas feitas de todas as partes, às quais ele Titané
ia acudir, menos por amor ao lucro do que pela glória que dali provinha à
nação; não recuando, todavia, do propósito em que estava e ficava de dar de graça
aos pobres do reino umas cinquenta corjas das ditas alparcas, conforme já
fizera declarar a el-rei e o repetia agora; enfim, que apesar da primazia no
fabrico das alparcas assim reconhecida em toda a terra, ele sabia os deveres da
moderação, e nunca se julgaria mais do que um obreiro diligente e amigo da
glória do reino de Bungo.
A leitura desta notícia comoveu naturalmente
a toda a cidade Fuchéu, não se falando em outra coisa durante toda aquela
semana. As alparcas de Titané, apenas estimadas, começaram de ser buscadas com
muita curiosidade e ardor, e ainda mais nas semanas seguintes, pois não deixou
ele de entreter a cidade, durante algum tempo, com muitas e extraordinárias
anedotas acerca da sua mercadoria. E dizia-nos com muita graça: — Vede que obedeço
ao principal da nossa doutrina, pois não estou persuadido da superioridade das
tais alparcas, antes as tenho por obra vulgar, mas fi-lo crer ao povo, que as
vem comprar agora, pelo preço que lhes taxo. — Não me parece, atalhei, que
tenhais cumprido a doutrina em seu rigor e substância, pois não nos cabe
inculcar aos outros uma opinião que não temos, e sim a opinião de uma qualidade
que não possuímos; este é, ao certo, o essencial dela.
Dito isto, assentaram os dois que era a minha
vez de tentar a experiência, o que imediatamente fiz; mas deixo de a relatar em
todas as suas partes, por não demorar a narração da experiência de Diogo
Meireles, que foi a mais decisiva das três, e a melhor prova desta deliciosa
invenção do bonzo. Direi somente que, por algumas luzes que tinha de música e
charamela, em que aliás era mediano, lembrou-me congregar os principais de
Fuchéu para que me ouvissem tanger o instrumento; os quais vieram, escutaram e
foram-se repetindo que nunca antes tinham ouvido coisa tão extraordinária. E
confesso que alcancei um tal resultado com o só recurso dos ademanes, da graça
em arquear os braços para tomar a charamela, que me foi trazida em uma bandeja
de prata, da rigidez do busto, da unção com que alcei os olhos ao ar, e do
desdém e ufania com que os baixei à mesma assembleia, a qual neste ponto rompeu
em um tal concerto de vozes e exclamações de entusiasmo, que quase me persuadiu
do meu merecimento.
Mas, como digo, a mais engenhosa de todas as
nossas experiências, foi a de Diogo Meireles. Lavrava então na cidade uma
singular doença, que consistia em fazer inchar os narizes, tanto e tanto, que
tomavam metade e mais da cara ao paciente, e não só a punham horrenda, senão
que era molesto carregar tamanho peso. Conquanto os físicos da terra propusessem
extrair os narizes inchados, para alívio e melhoria dos enfermos, nenhum destes
consentia em prestar-se ao curativo, preferindo o excesso à lacuna, e tendo por
mais aborrecível que nenhuma outra coisa a ausência daquele órgão. Neste
apertado lance mais de um recorria à morte voluntária, como um remédio, e a
tristeza era muita em toda a cidade Fuchéu. Diogo Meireles, que desde algum
tempo praticava a medicina, segundo ficou dito atrás, estudou a moléstia e
reconheceu que não havia perigo em desnarigar os doentes, antes era vantajoso
por lhes levar o mal, sem trazer fealdade, pois tanto valia um nariz disforme e
pesado como nenhum; não alcançou, todavia, persuadir os infelizes ao
sacrifício. Então ocorreu-lhe uma graciosa invenção. Assim foi que, reunindo
muitos físicos, filósofos, bonzos, autoridades e povo, comunicou-lhes que tinha
um segredo para eliminar o órgão; e esse segredo era nada menos que substituir
o nariz achacado por um nariz são, mas de pura natureza metafísica, isto é,
inacessível aos sentidos humanos, e contudo tão verdadeiro ou ainda mais do que
o cortado; cura esta praticada por ele em várias partes, e muito aceita aos
físicos de Malabar. O assombro da assembleia foi imenso, e não menor a
incredulidade de alguns, não digo de todos, sendo que a maioria não sabia que
acreditasse, pois se lhe repugnava a metafísica do nariz, cedia entretanto à
energia das palavras de Diogo Meireles, ao tom alto e convencido com que ele
expôs e definiu o seu remédio. Foi então que alguns filósofos, ali presentes,
um tanto envergonhados do saber de Diogo Meireles, não quiseram ficar-lhe
atrás, e declararam que havia bons fundamentos para uma tal invenção, visto não
ser o homem todo outra coisa mais do que um produto da idealidade
transcendental; donde resultava que podia trazer, com toda a verossimilhança,
um nariz metafísico, e juravam ao povo que o efeito era o mesmo.
A assembleia aclamou a Diogo Meireles; e os
doentes começaram de buscá-lo, em tanta cópia, que ele não tinha mãos a medir.
Diogo Meireles desnarigava-os com muitíssima arte; depois estendia
delicadamente os dedos a uma caixa, onde fingia ter os narizes substitutos,
colhia um e aplicava-o ao lugar vazio. Os enfermos, assim curados e supridos,
olhavam uns para os outros, e não viam nada no lugar do órgão cortado; mas,
certos e certíssimos de que ali estava o órgão substituto, e que este era
inacessível aos sentidos humanos, não se davam por defraudados, e tornavam aos
seus ofícios. Nenhuma outra prova quero da eficácia da doutrina e do fruto dessa
experiência, senão o fato de que todos os desnarigados de Diogo Meireles
continuaram a prover-se dos mesmos lenços de assoar. O que tudo deixo relatado
para glória do bonzo e benefício do mundo.
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