O
Sainete
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
Um dos problemas que mais preocupavam a Rua
do Ouvidor, entre as da Quitanda e Gonçalves Dias, das duas às quatro horas da
tarde, era a profunda e súbita melancolia do Dr. Maciel. O Dr. Maciel tinha
apenas vinte e cinco anos, idade em que geralmente se compreende melhor o Cântico dos Cânticos do que as
Lamentações de Jeremias. Sua índole mesma era mais propensa ao riso dos
frívolos do que ao pesadume dos filósofos. Pode-se afirmar que ele preferia um
dueto da Grã— Duquesa a um teorema geométrico, e os domingos do Prado Fluminense
aos domingos da Escola da Glória. Donde vinha pois a melancolia que tanto
preocupava a Rua do Ouvidor?
Pode o leitor coçar o nariz, à procura da
explicação; a leitora não precisa desse recurso para adivinhar que o Dr. Maciel
ama, que uma “seta do deus alado” o feriu mesmo no centro do coração. O que a
leitora não pode adivinhar, sem que eu lho diga, é que o jovem médico ama a
viúva Seixas, cuja maravilhosa beleza levava após si os olhos dos mais
consumados pintalegretes. O Dr. Maciel gostava de a ver como todos os outros;
amou-a desde certa noite e certo baile, em que ela, andando a passeio pelo seu
braço, perguntou-lhe de repente com a mais deliciosa languidez do mundo:
— Doutor, por que razão não quer honrar a
minha casa? Estou visível todas as quintas-feiras para a turbamulta; os sábados
pertencem aos amigos. Vá lá aos sábados.
Maciel prometeu que iria no primeiro sábado,
e foi. Pulava-lhe o coração ao subir as escadas. A viúva estava só.
— Venho cedo, disse ele, logo depois dos
primeiros cumprimentos.
— Vem tarde demais para a minha natural
ansiedade, respondeu ela sorrindo.
O que se passou na alma de Maciel excede a
todas as conjeturas. Num só minuto pôde ele ver juntas todas as maravilhas da
terra e do céu, — todas concentradas naquela elegante e suntuosa sala cuja
dona, a Calipso daquele Telêmaco, tinha cravados nele um par de olhos, não
negros, não azuis, não castanhos, mas dessa rara cor, que os homens atribuem à
mais duradoura felicidade do coração, à esperança. Eram verdes, de um verde
igual ao das folhas novas, e de uma expressão ora indolente, ora vivaz, — arma
de dois gumes, — que ela sabia manejar como poucas.
E não obstante aquele introito, o Dr. Maciel
andava triste, abatido, desconsolado. A razão era que a viúva, depois de tão amáveis
preliminares, não cuidou mais das condições em que seria celebrado um tratado
conjugal. No fim de cinco ou seis sábados, cujas horas eram polidamente
bocejadas a duo, a viúva adoeceu semanalmente naquele dia, e o jovem médico
teve de contentar-se com a turbamulta das quintas-feiras.
A quinta-feira em que nos achamos é de
Endoenças. Não era dia próprio de recepção. Contudo, Maciel dirigiu-se a
Botafogo, a fim de pôr em execução um projeto, que ele ingenuamente supunha ser
fruto do mais profundo maquiavelismo, mas que eu, na minha fidelidade de
historiador, devo confessar que não passava de verdadeira infantilidade. Notara
ele os sentimentos religiosos da viúva; imaginou que, indo fazer-lhe naquele
dia a declaração verbal do seu amor, por meio de invocações pias, alcançaria
facilmente o prêmio de seus trabalhos.
A viúva achava-se no toucador. Acabara de
vestir-se; e de pé, calçando as luvas, em frente do espelho, sorria para si
mesma, como satisfeita da toilette.
Não ia passear, como se poderia supor; ia visitar as igrejas. Queria alcançar
por sedução a misericórdia divina.
Era boa devota aquela senhora de vinte e seis
anos, que frequentava as festas religiosas, comia peixe durante toda a
quaresma, acreditava alguma coisa em Deus, pouco no diabo e nada no inferno.
Não acreditando no inferno, não tinha onde meter o diabo; venceu a dificuldade,
agasalhando-o no coração. O demo assim alojado fora algum tempo o nosso
melancólico Maciel. A religião da viúva era mais elegante que outra coisa.
Quando ela se confessava era sempre com algum padre moço; em compensação só se
tratava com médico velho. Nunca escondeu do médico o mais íntimo defluxo, nem
revelou ao padre o mais insignificante pecado.
— O Dr. Maciel? disse ela lendo o cartão que
a criada lhe entregou. Não o posso receber; vou sair. Espera, — continuou
depois de relancear os olhos para o espelho; manda-o entrar para aqui.
A ordem foi cumprida; alguns minutos depois
fazia Maciel a sua entrada no toucador da viúva.
— Recebo-o no santuário, disse ela sorrindo
logo que ele assomou à porta; prova de que o senhor pertence ao número dos
verdadeiros fiéis.
— Oh! não é da minha fidelidade que eu
duvido; é...
— E recebo-o de pé! Vou sair; vou visitar as
igrejas.
— Sei; conheço os seus sentimentos de
verdadeira religião, — disse Maciel com a voz a tremer-lhe; — vim até com
receio de não a encontrar. Mas vim; era preciso que viesse; neste dia,
sobretudo.
A viúva recolheu a abazinha de um sorriso que
indiscretamente ia traindo o seu pensamento, e perguntou friamente ao médico
que horas eram.
— Quase oito. Sua luva está calçada; falta só
abotoá-la. É o tempo necessário para lhe dizer, neste dia tão solene, que eu
sinto...
— Está abotoada. Quase oito, não? Não há
tempo de sobra; é preciso ir a sete igrejas. Quer fazer o favor de
acompanhar-me até o carro?
Maciel tinha espírito em quantidade
suficiente para não perdê-lo todo com a paixão. Calou-se; e respondeu à viúva
com um gesto de assentimento. Saíram do toucador e desceram, ambos silenciosos.
No trajeto planeou Maciel dizer-lhe uma só palavra, mas que contivesse todo o
seu coração. Era difícil; o lacaio, que abrira a portinhola do coupé, ali estava como um emissário do
seu mau destino.
— Quer que o leve até a cidade? perguntou a
viúva.
— Obrigado, respondeu Maciel.
O lacaio fechou a portinhola e correu a tomar
o seu lugar; foi nesse rápido instante que o médico, inclinando o rosto, disse
à viúva:
— Eulália...
Os cavalos começaram a andar; o resto da
frase perdeu-se para a viúva e para nós.
Eulália sorriu da familiaridade e
perdoou-lhe. Reclinou-se molemente nos coxins do veículo e começou um monólogo
que só acabou à porta de São Francisco de Paula.
“Pobre rapaz! dizia ela consigo; vê-se que
morre por mim. Não desgostei dele a princípio... Mas tenho eu culpa de que seja
um maricas? Agora sobretudo, com aquele ar de moleza e abatimento, é... não é
nada... é uma alma de cera. Parece que vinha disposto a ser mais atrevido; mas
a alma faltou-lhe com a voz, e ficou apenas com as boas intenções. Eulália! Não
foi mau este começo. Para um coração daqueles... Mas qual!c’est le genre ennuyeux!”
Esta é a glosa mais resumida que posso dar do
monólogo da viúva. O coupé estacionou
na Praça da Constituição; Eulália, seguida do lacaio, encaminhou-se para a
igreja de São Francisco de Paula. Ali, depositou a imagem de Maciel nas
escadas, e atravessou o adro toda entregue ao dever religioso e aos cuidados de
seu magnífico vestido preto.
A visita foi curta; era preciso ir a sete
igrejas, fazendo a pé todo o trajeto de uma para outra. A viúva saiu sem
preocupar-se mais com o jovem médico, e dirigindo-se para a igreja da Cruz.
Na Cruz achamos uma personagem nova, ou antes
duas, o Desembargador Araújo e sua sobrinha D. Fernanda Valadares, viúva de um
deputado deste nome, que falecera um ano antes, não se sabe se da hepatite que
os médicos lhe acharam, se de um discurso que proferiu na discussão do
orçamento. As duas viúvas eram amigas; seguiram juntas na visitação das
igrejas. Fernanda não tinha tantas acomodações com o céu, como a viúva Seixas;
mas a sua piedade estava sujeita, como todas as coisas, às vicissitudes do
coração. Em vista do que, logo que saíram da última igreja, disse ela à amiga
que no dia seguinte iria vê-la e pedir-lhe uma informação.
— Posso dar já, respondeu Eulália. Vá embora,
desembargador; eu levo Fernanda no meu carro.
No carro, disse Fernanda:
— Preciso de uma informação importante. Sabes
que estou um pouco apaixonada?
— Sim?
— É verdade. Eu disse um pouco, mas devia
dizer muito. O Dr. Maciel...
— O Dr. Maciel? interrompeu vivamente
Eulália.
— Que pensas dele?
A viúva Seixas levantou os ombros e riu com
um ar de tamanha piedade, que a amiga corou.
— Não te parece bonito? perguntou Fernanda.
— Não é feio.
— O que mais me seduz nele é o seu ar triste,
um certo abatimento que me faz crer que padece. Sabes de alguma coisa a seu
respeito?
— Eu?
— Ele dá-se muito contigo; tenho-o visto lá
em tua casa. Sabes se haverá alguma paixão...
— Pode ser.
— Oh! conta-me tudo!
Eulália não contou nada; disse que nada
sabia.
Concordou, entretanto, que o jovem médico,
talvez andasse namorado, porque realmente não parecia gozar boa saúde. O amor,
disse ela, era uma espécie de pletora, o casamento uma sangria sacramental.
Fernanda precisava sangrar-se do mesmo modo que Maciel.
— Sobretudo nada de remédios caseiros,
concluiu ela; nada de olhares e suspiros, que são paliativos destinados menos a
minorar que a entreter a doença. O melhor boticário é o padre.
Fernanda tirou a conversa deste terreno
farmacêutico e cirúrgico para subi-la às regiões do eterno azul. Sua voz era
doce e comovida: o coração pulsava-lhe com força; e Eulália, ao ouvir os
méritos que a amiga achava em Maciel, não pôde reprimir esta observação:
— Não há nada como ver as coisas com amor.
Quem suporia nunca o Maciel que me estás pintando? Na minha opinião não passa
de um bom rapaz; e ainda assim... Mas um bom rapaz é alguma coisa neste mundo?
— Pode ser eu me engane, Eulália, replicou a
viúva do deputado, mas creio que há ali uma alma nobre, elevada e pura.
Suponhamos que não. Que importa? O coração empresta as qualidades que deseja.
A viúva Seixas não teve tempo de examinar a
teoria de Fernanda. O carro chegara à Rua de Santo Amaro, onde esta morava.
Despediram-se; Eulália seguiu para Botafogo.
— Parece que ama deveras, pensou Eulália logo
que ficou só. Coitada! Um moleirão!
Eram nove horas da noite quando a viúva
Seixas entrou em casa. Duas criadas — camareiras, — foram com ela para o
toucador, onde a bela viúva se despiu; dali passou ao banho; enfiou depois um
roupão e dirigiu-se para o quarto de dormir. Levaram-lhe uma taça de chocolate,
que ela saboreou lentamente, tranquilamente, voluptuosamente; saboreou-a e
saboreou-se também a si própria, contemplando, da poltrona em que estava, a sua
bela imagem no espelho fronteiro. Esgotada a taça, recebeu de uma criada o seu
livro de orações, e foi dali a um oratório, diante do qual com devoção se
ajoelhou e rezou. Voltando ao quarto, despiu-se, meteu-se no leito, e pede-me
que lhe cerre as cortinas; feito o que, murmurou alegremente:
— Ora o Maciel!
E dormiu.
A noite foi muito menos tranquila para o
nosso apaixonado Maciel, que, logo depois das palavras proferidas à portinhola
do carro, ficara furioso contra si mesmo. Tinha razão em parte; a familiaridade
do tratamento dado à viúva precisava de mais detida explicação. Não era, porém,
a razão que lhe fazia ver claro; nele exerciam maior ação os nervos que o
cérebro.
Nem sempre “depois de uma noite procelosa,
traz a manhã serena claridade”. A do dia seguinte foi tétrica. Maciel gastou-a
toda na loja do Bernardo, a fumar em ambos os sentidos, — o natural e o
figurado, — a olhar sem ver as damas que passavam, estranho à palavra dos
amigos, aos boatos políticos, às anedotas de
ocasião.
— Fechei a porta para sempre! dizia ele com
amargura.
Pelas quatro horas da tarde, apareceu-lhe um
alívio, debaixo da forma de um colega seu, que lhe propôs ir clinicar em
Carangola, donde recebera cartas muito animadoras. Maciel aceitou com ambas as
mãos o oferecimento. Carangola nunca entrara no itinerário de suas ambições; é
até possível que naquele momento ele não pudesse dizer a situação exata da
localidade. Mas aceitou Carangola, como aceitaria a coroa de Inglaterra ou as
pérolas todas de Ceilão.
— Há muito tempo, disse ele ao colega, que eu
sentia necessidade de ir viver em Carangola. Carangola exerceu sempre em mim
uma atração irresistível. Não podes imaginar como eu, já na Academia, me sentia
arrastado para Carangola. Quando partimos?
— Não sei: dentro de três semanas, talvez.
Maciel achou que era muito, e propôs o prazo
máximo de oito dias. Não foi aceito; não teve remédio senão curvar-se às três
semanas prováveis. Quando ficou só, respirou.
— Bem! disse ele, irei esquecer e ser
esquecido.
No sábado houve duas aleluias, uma na
Cristandade, outra em casa de Maciel, aonde chegou uma cartinha perfumada da
viúva Seixas contendo estas simples palavras: — “Creio que hoje não terei a
enxaqueca do costume; espero que venha tomar uma xícara de chá comigo”. A
leitura desta carta produziu na alma do jovem médico uma Glória in excelsis Deo. Era o seu perdão; era talvez mais do que
isso. Maciel releu meia dúzia de vezes aquelas poucas linhas; nem é fora de
propósito crer que chegou a beijá-las.
Ora, é de saber que na véspera, sexta-feira,
às onze horas da manhã, recebera Eulália uma carta de Fernanda, e que às duas
horas foi a própria Fernanda à casa de Eulália. A carta e a pessoa tratavam do
mesmo assunto com a expansão natural em situações daquelas. Tem-se visto muita
vez guardar um segredo do coração; mas é raríssimo que, uma vez revelado, deixe
de o ser até à sociedade. Fernanda escreveu e disse tudo o que sentia; sua
linguagem, apaixonada e viva, era uma torrente de afeto, tão volumosa que
chegou talvez a alagar, — a molhar pelo menos — o coração de Eulália. Esta
ouviu-a a princípio com interesse, depois com indiferença, afinal com
irritação.
— Mas que queres tu que eu te faça? perguntou
no fim de uma hora de confidência.
— Nada, respondeu Fernanda. Uma só coisa: que
me animes.
— Ou te auxilie?
Fernanda respondeu com um aperto de mão tão
significativo, que a viúva Seixas
compreendeu facialmente a impressão que lhe
causara. No sábado enviou a carta acima transcrita. Maciel recebeu-a como
vimos, e à noite, à hora habitual, estava à porta de Eulália. A viúva não
estava só. Havia umas quatro senhoras e uns três cavalheiros, visitas habituais
das quintas-feiras.
Maciel entrou na sala um pouco acanhado e
comovido. Que expressão leria no rosto de Eulália? Não tardou sabê-lo; a viúva
recebeu-o com o seu melhor sorriso, — o menos faceiro e intencional, o mais
espontâneo e sincero, um sorriso que Maciel, se fosse poeta, compararia a um
íris de bonança, rimado com esperança ou bem-aventurança. A noite correu
deliciosa; um pouco de música, muita conversa, muito espírito, um chá familiar,
alguns olhares animadores, e um aperto de mão significativo no fim. Com estes
elementos era difícil não ter os melhores sonhos do mundo. Teve-os Maciel, e o
domingo da Ressurreição também o foi para ele.
Na seguinte semana viram-se três vezes.
Eulália parecia mudada; a solicitude e a graça com que lhe falava estavam longe
da tal ou qual frieza e indiferença dos últimos tempos. Este novo aspecto da
moça produziu os seus naturais efeitos. Sentiu-se outro o jovem médico;
reanimou-se, colheu confiança, fez-se homem.
A terceira vez que a viu nessa semana foi em
uma soirée. Acabaram de valsar e dirigiram-se para o terraço da casa, donde se
via um magnífico panorama, capaz de fazer poeta o mais soez espírito do mundo.
Ali foi declaração, inteira, cabal, expressiva do que sentia o namorado;
ouviu-lha Eulália com os olhos embebidos nele, visivelmente encantada com a
palavra de Maciel.
— Poderei crer no que me diz? perguntou ela.
A resposta do jovem médico foi apertar-lhe
muito a mão, e cravar nela uns olhos mais eloquentes que duas catilinárias. A
situação estava definida, a aliança feita. Bem o percebeu Fernanda, quando os
viu regressar à sala. Seu rosto cobriu-se de um véu de tristeza; dez minutos
depois e o desembargador interrompia a partida de whist para acompanhar a sobrinha a Santo Amaro.
A leitora espera decerto ver casados os dois
namorados e espaçada a viagem a Carangola até o fim do século. Quinze dias
depois da declaração iniciou Maciel os passos necessários ao consórcio. Não têm
número os corações que estalaram de inveja ao saber da preferência da viúva
Seixas. Esta pela sua parte sentia-se mais orgulhosa do que se desposasse o
primeiro dos heróis da terra.
Donde veio este entusiasmo e que varinha
mágica operou tamanha mudança no coração de Eulália? Leitora curiosa, a
resposta está no título. Maciel pareceu insosso, enquanto lhe faltou o sainete
de outra paixão. A viúva descobriu-lhe os méritos com os olhos de Fernanda; e
bastou vê-lo preferido para que ela o preferisse. Se me miras, me miram, era a
divisa de um célebre relógio do sol. Maciel podia invertê-la: se me miram, me
miras; e mostraria conhecer o coração humano, — o feminino, pelo menos.
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