O relógio de ouro
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)
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Agora contarei a história do relógio de ouro. Era um grande cronômetro, inteiramente novo, preso a uma elegante cadeia. Luís Negreiros tinha muita razão em ficar boquiaberto quando viu o relógio em casa, um relógio que não era dele, nem podia ser de sua mulher. Seria ilusão dos seus olhos? Não era; o relógio ali estava sobre uma mesa da alcova, a olhar para ele, talvez tão espantado, como ele, do lugar e da situação.
Clarinha não estava na alcova quando Luís
Negreiros ali entrou. Deixou-se ficar na sala, a folhear um romance, sem
corresponder muito nem pouco ao ósculo com que o marido a cumprimentou logo à
entrada. Era uma bonita moça esta Clarinha, ainda que um tanto pálida, ou por
isso mesmo. Era pequena e delgada; de longe parecia uma criança; de perto, quem
lhe examinasse os olhos, veria bem que era mulher como poucas. Estava molemente
reclinada no sofá, com o livro aberto, e os olhos no livro, os olhos apenas,
porque o pensamento, não tenho certeza se estava no livro, se em outra parte.
Em todo o caso parecia alheia ao marido e ao relógio.
Luís Negreiros lançou mão do relógio com uma
expressão que eu não me atrevo a descrever. Nem o relógio, nem a corrente eram
dele; também não eram de pessoas suas conhecidas. Tratava-se de uma charada.
Luís Negreiros gostava de charadas, e passava por ser decifrador intrépido; mas
gostava de charadas nas folhinhas ou nos jornais. Charadas palpáveis ou
cronométricas, e sobretudo sem conceito, não as apreciava Luís Negreiros.
Por esse motivo, e outros que são óbvios,
compreenderá o leitor que o esposo de Clarinha se atirasse sobre uma cadeira,
puxasse raivosamente os cabelos, batesse com o pé no chão, e lançasse o relógio
e a corrente para cima da mesa. Terminada esta primeira manifestação de furor,
Luís Negreiros pegou de novo nos fatais objetos, e de novo os examinou. Ficou
na mesma. Cruzou os braços durante algum tempo e refletiu sobre o caso,
interrogou todas as suas recordações, e concluiu no fim de tudo que, sem uma
explicação de Clarinha qualquer procedimento fora baldado ou precipitado.
Foi ter com ela.
Clarinha acabava justamente de ler uma página
e voltava a folha com o ar indiferente e tranquilo de quem não pensa em
decifrar charadas de cronômetro. Luís Negreiros encarou-a; seus olhos pareciam
dois reluzentes punhais.
— Que tens? perguntou a moça com a voz doce e
meiga que toda a gente concordava em lhe achar.
Luís Negreiros não respondeu à interrogação
da mulher; olhou algum tempo para ela; depois deu duas voltas na sala, passando
a mão pelos cabelos, por modo que a moça de novo lhe perguntou:
— Que tens?
Luís Negreiros parou defronte dela.
— Que é isto? disse ele tirando do bolso o
fatal relógio e apresentando-lho diante dos olhos. Que é isto? repetiu ele com
voz de trovão.
Clarinha mordeu os beiços e não respondeu.
Luís Negreiros esteve algum tempo com o relógio na mão e os olhos na mulher, a
qual tinha os seus olhos no livro. O silêncio era profundo. Luís Negreiros foi
o primeiro que o rompeu, atirando estrepitosamente o relógio ao chão, e dizendo
em seguida à esposa:
— Vamos, de quem é aquele relógio?
Clarinha ergueu lentamente os olhos para ele,
abaixou-os depois, e murmurou:
— Não sei.
Luís Negreiros fez um gesto como de quem
queria esganá-la; conteve-se. A mulher levantou-se, apanhou o relógio e pô-lo
sobre uma mesa pequena. Não se pôde conter Luís Negreiros. Caminhou para ela,
e, segurando-lhe nos pulsos com força, lhe disse:
— Não me responderás, demônio? Não me
explicarás esse enigma?
Clarinha fez um gesto de dor, e Luís
Negreiros imediatamente lhe soltou os pulsos que estavam arrochados. Noutras
circunstâncias é provável que Luís Negreiros lhe caísse aos pés e pedisse
perdão de a haver machucado. Naquela, nem se lembrou disso; deixou-a no meio da
sala e entrou a passear de novo, sempre agitado, parando de quando em quando,
como se meditasse algum desfecho trágico.
Clarinha saiu da sala.
Pouco depois veio um escravo dizer que o
jantar estava na mesa.
— Onde está a senhora?
— Não sei, não, senhor.
Luís Negreiros foi procurar a mulher, achou-a
numa saleta de costura, sentada numa cadeira baixa, com a cabeça nas mãos a
soluçar. Ao ruído que ele fez na ocasião de fechar a porta atrás de si,
Clarinha levantou a cabeça, e Luís Negreiros pôde ver-lhe as faces úmidas de
lágrimas. Esta situação foi ainda pior para ele que a da sala. Luís Negreiros
não podia ver chorar uma mulher, sobretudo a dele. Ia enxugar-lhe as lágrimas
com um beijo, mas reprimiu o gesto, e caminhou frio para ela; puxou uma cadeira
e sentou-se em frente de Clarinha.
— Estou tranquilo, como vês, disse ele,
responde-me ao que te perguntei com a franqueza que sempre usaste comigo. Eu
não te acuso nem suspeito nada de ti. Quisera simplesmente saber como foi parar
ali aquele relógio. Foi teu pai que o esqueceu cá?
— Não.
— Mas então...
— Oh! não me perguntes nada! exclamou
Clarinha; ignoro como esse relógio se acha ali... Não sei de quem é...
deixa-me.
— É demais! urrou Luís Negreiros,
levantando-se e atirando a cadeira ao chão.
Clarinha estremeceu, e deixou-se ficar aonde
estava. A situação tornava-se cada vez mais grave; Luís Negreiros passeava cada
vez mais agitado, revolvendo os olhos nas órbitas, e parecendo prestes a
atirar-se sobre a infeliz esposa. Esta, com os cotovelos no regaço e a cabeça
nas mãos, tinha os olhos encravados na parede. Correu assim cerca de um quarto
de hora. Luís Negreiros ia de novo interrogar a esposa, quando ouviu a voz do
sogro, que subia as escadas gritando:
— Ó seu Luís! ó seu malandrim!
— Aí vem teu pai! disse Luís Negreiros; logo
me pagarás.
Saiu da sala de costura e foi receber o
sogro, que já estava no meio da sala, fazendo viravoltas com o chapéu de sol,
com grande risco das jarras e do candelabro.
— Vocês estavam dormindo? perguntou o Sr.
Meireles tirando o chapéu e limpando a testa com um grande lenço encarnado.
— Não, senhor, estávamos conversando...
— Conversando?... repetiu Meireles.
E acrescentou consigo:
“Estavam de arrufos... é o que há de ser”.
— Vamos justamente jantar, disse Luís
Negreiros. Janta conosco?
— Não vim cá para outra coisa, acudiu
Meireles; janto hoje e amanhã também. Não me convidaste, mas é o mesmo.
— Não o convidei?...
— Sim, não fazes anos amanhã?
— Ah! é verdade...
Não havia razão aparente para que, depois
destas palavras ditas com um tom lúgubre, Luís Negreiros repetisse, mas desta
vez com um tom descomunalmente alegre:
— Ah! é verdade!...
Meireles, que já ia pôr o chapéu num cabide
do corredor, voltou-se espantado para o genro, em cujo rosto leu a mais franca,
súbita e inexplicável alegria.
— Está maluco! disse baixinho Meireles.
— Vamos jantar, bradou o genro, indo logo
para dentro, enquanto Meireles seguindo pelo corredor ia ter à sala de jantar.
Luís Negreiros foi ter com a mulher na sala
de costura, e achou-a de pé, compondo os cabelos diante de um espelho:
— Obrigado, disse.
A moça olhou para ele admirada.
— Obrigado, repetiu Luís Negreiros; obrigado
e perdoa-me.
Dizendo isto, procurou Luís Negreiros
abraçá-la; mas a moça, com um gesto nobre, repeliu o afago do marido e foi para
a sala de jantar.
— Tem razão! murmurou Luís Negreiros.
Daí a pouco achavam-se todos três à mesa do jantar,
e foi servida a sopa, que Meireles achou, como era natural, de gelo. Ia já
fazer um discurso a respeito da incúria dos criados, quando Luís Negreiros
confessou que toda a culpa era dele, porque o jantar estava há muito na mesa. A
declaração apenas mudou o assunto do discurso, que versou então sobre a
terrível coisa que era um jantar requentado, — qui ne valut jamais rien.
Meireles era um homem alegre, pilhérico,
talvez frívolo demais para a idade, mas em todo o caso interessante pessoa.
Luís Negreiros gostava muito dele, e via correspondida essa afeição de parente
e de amigo, tanto mais sincera quanto que Meireles só tarde e de má vontade lhe
dera a filha. Durou o namoro cerca de quatro anos, gastando o pai de Clarinha
mais de dois em meditar e resolver o assunto do casamento. Afinal deu a sua
decisão, levado antes das lágrimas da filha que dos predicados do genro, dizia
ele.
A causa da longa hesitação eram os costumes
pouco austeros de Luís Negreiros, não os que ele tinha durante o namoro, mas os
que tivera antes e os que poderia vir a ter depois. Meireles confessava
ingenuamente que fora marido pouco exemplar, e achava que por isso mesmo devia
dar à filha melhor esposo do que ele. Luís Negreiros desmentiu as apreensões do
sogro; o leão impetuoso dos outros dias, tornou-se um pacato cordeiro. A
amizade nasceu franca entre o sogro e o genro, e Clarinha passou a ser uma das
mais invejadas moças da cidade.
E era tanto maior o mérito de Luís Negreiros
quanto que não lhe faltavam tentações. O diabo metia-se às vezes na pele de um
amigo e ia convidá-lo a uma recordação dos antigos tempos. Mas Luís Negreiros
dizia que se recolhera a bom porto e não queria arriscar-se outra vez às
tormentas do alto mar.
Clarinha amava ternamente o marido, e era a
mais dócil e afável criatura que por aqueles tempos respirava o ar fluminense.
Nunca entre ambos se dera o menor arrufo; a limpidez do céu conjugal era sempre
a mesma e parecia vir a ser duradoura. Que mau destino lhe soprou ali a
primeira nuvem?
Durante o jantar Clarinha não disse palavra —
ou poucas dissera, ainda assim as mais breves e em tom seco.
“Estão de arrufo, não há dúvida”, pensou
Meireles ao ver a pertinaz mudez da filha. “Ou a arrufada é só ela, porque ele
parece-me lépido.”
Luís Negreiros efetivamente desfazia-se todo
em agrados, mimos e cortesias com a mulher, que nem sequer olhava em cheio para
ele. O marido já dava o sogro a todos os diabos, desejoso de ficar a sós com a
esposa, para a explicação última, que reconciliaria os ânimos. Clarinha não parecia
desejá-lo; comeu pouco e duas ou três vezes soltou-se-lhe do peito um suspiro.
Já se vê que o jantar, por maiores que fossem
os esforços, não podia ser como nos outros dias. Meireles sobretudo achava-se
acanhado. Não era que receasse algum grande acontecimento em casa; sua ideia é
que sem arrufos não se aprecia a felicidade, como sem tempestade não se aprecia
o bom tempo. Contudo, a tristeza da filha sempre lhe punha água na fervura.
Quando veio o café, Meireles propôs que
fossem todos três ao teatro; Luís Negreiros aceitou a ideia com entusiasmo.
Clarinha recusou secamente.
— Não te entendo hoje, Clarinha, disse o pai
com um modo impaciente. Teu marido está alegre e tu pareces-me abatida e
preocupada. Que tens?
Clarinha não respondeu; Luís Negreiros, sem
saber o que havia de dizer, tomou a resolução de fazer bolinhas de miolo de
pão. Meireles levantou os ombros.
— Vocês lá se entendem, disse ele. Se amanhã,
apesar de ser o dia que é, vocês estiverem do mesmo modo, prometo-lhes que nem
a sombra me verão.
— Oh! há de vir, ia dizendo Luís Negreiros,
mas foi interrompido pela mulher que desatou a chorar.
O jantar acabou assim triste e aborrecido.
Meireles pediu ao genro que lhe explicasse o que aquilo era, e este prometeu
que lhe diria tudo em ocasião oportuna.
Pouco depois saía o pai de Clarinha
protestando de novo que, se no dia seguinte os achasse do mesmo modo, nunca
mais voltaria à casa deles, e que se havia coisa pior que um jantar frio ou
requentado, era um jantar mal digerido. Este axioma valia o de Boileau, mas
ninguém lhe prestou atenção.
Clarinha fora para o quarto; o marido, apenas
se despediu do sogro, foi ter com ela. Achou-a sentada na cama, com a cabeça
sobre uma almofada, e soluçando. Luís Negreiros ajoelhou-se diante dela e
pegou-lhe numa das mãos.
— Clarinha, disse ele, perdoa-me tudo. Já
tenho a explicação do relógio; se teu pai não me fala em vir jantar amanhã, eu
não era capaz de adivinhar que o relógio era um presente de anos que tu me
fazias.
Não me atrevo a descrever o soberbo gesto de
indignação com que a moça se pôs de pé quando ouviu estas palavras do marido.
Luís Negreiros olhou para ela sem compreender nada. A moça não disse uma nem
duas; saiu do quarto e deixou o infeliz consorte mais admirado que nunca.
“Mas que enigma é este?” perguntava a si
mesmo Luís Negreiros. “Se não era um mimo de anos, que explicação pode ter o
tal relógio?”
A situação era a mesma que antes do jantar.
Luís Negreiros assentou de descobrir tudo naquela noite. Achou, entretanto, que
era conveniente refletir maduramente no caso e assentar numa resolução que
fosse decisiva. Com este propósito recolheu-se ao seu gabinete, e ali recordou
tudo o que se havia passado desde que chegara à casa. Pesou friamente todas as
razões, todos os incidentes, e buscou reproduzir na memória a expressão do
rosto da moça, em toda aquela tarde. O gesto de indignação e a repulsa quando
ele a foi abraçar na sala de costura, eram a favor dela; mas o movimento com
que mordera os lábios no momento em que ele lhe apresentou o relógio, as
lágrimas que lhe rebentaram à mesa, e mais que tudo o silêncio que ela
conservava a respeito da procedência do fatal objeto, tudo isso falava contra a
moça.
Luís Negreiros, depois de muito cogitar,
inclinou-se à mais triste e deplorável das hipóteses. Uma ideia má começou a
enterrar-se-lhe no espírito, à maneira de verruma, e tão fundo penetrou, que se
apoderou dele em poucos instantes. Luís Negreiros era homem assomado quando a
ocasião o pedia. Proferiu duas ou três ameaças, saiu do gabinete e foi ter com
a mulher.
Clarinha recolhera-se de novo ao quarto. A
porta estava apenas cerrada. Eram nove horas da noite. Uma pequena lamparina
alumiava escassamente o aposento. A moça estava outra vez assentada na cama,
mas já não chorava; tinha os olhos fitos no chão. Nem os levantou quando sentiu
entrar o marido.
Houve um momento de silêncio.
Luís Negreiros foi o primeiro que falou.
— Clarinha, disse ele, este momento é solene.
Responde-me ao que te pergunto desde esta tarde?
A moça não respondeu.
— Reflete bem, Clarinha, continuou o marido.
Podes arriscar a tua vida.
A moça levantou os ombros.
Uma nuvem passou pelos olhos de Luís
Negreiros. O infeliz marido lançou as mãos ao colo da esposa e rugiu:
— Responde, demônio, ou morres!
Clarinha soltou um grito.
— Espera! disse ela.
Luís Negreiros recuou.
— Mata-me, disse ela, mas lê isto primeiro.
Quando esta carta foi ao teu escritório já te não achou lá: foi o que o
portador me disse.
Luís Negreiros recebeu a carta, chegou-se à
lamparina e leu estupefato estas linhas:
Meu
nhonhô. Sei que amanhã fazes anos; mando-te esta lembrança. Tua Iaiá.
Assim acabou a história do relógio de ouro.
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